Hoje, 17 de agosto, a França faz 80 anos. Claro que o país é bem mais antigo do que isso, mas um de seus monumentos, aquele que traduz de forma quase perfeita o que faz da França o que ela é, poeticamente falando, virou hoje um octogenário. Seu nome é Jean-Jacques Sempé, e seus trabalhos vêm sendo vistos ao longo dos anos tanto em livrinhos inesquecíveis quanto nas capas de algumas revistas felizardas, muito atraentes porque exibem os desenhos maravilhosos de Sempé.
Os livros de Sempé escondem alguns tesouros disfarçados no que se chama com certa pompa de graphic novel. De fato, seus desenhos estão muito próximos do conto e da poesia. Mas, muitas vezes, funcionam melhor do que eles.
Sempé não desenha apenas personagens inesquecíveis. Seu traçado, aliás, está tão entranhado na imagem que as pessoas têm da França que fica difícil enxergar neles características excepcionais. As figuras são construídas em linhas finíssimas, descompromissadas, mas também disfarçadamente exatas. São elegantes e engraçadas e, quando dão a impressão de que vão se repetir, eis que revelam outro universo. Raul Taburin (2010), por exemplo, um dos livrinhos do desenhista-escritor lançados pela Cosac Naify, equilibra figuras típicas (bicicleteiros, açougueiros, populares) com paisagens francesas características, com chaminés no alto das casas, profusão de boinas, cafés ao ar livre e mercadinhos. Eis que a surpresa aparece nas páginas 44 e 45, em que um bloco compacto de ciclistas faz uma curva no meio do campo, deixando para trás, desolado e só, um dos personagens da história. Daria, fácil, uma capa da revista The New Yorker, na qual, por sinal, Sempé bate ponto regularmente há décadas. A revista o chama de “tesouro nacional da França”.
Lançamentos no Brasil
A história de Raul Taburin já é por si só, uma obra-prima. Taburin é um mecânico de bicicletas que se orgulha do trabalho, embora guarde um segredo constrangedor: não sabe andar de bicicleta. Se pensarmos no significado da bicicleta para a cultura francesa, que tem em seu Tour de France um dos grandes momentos desportivos do mundo, não saber andar de bicicleta para um bicicleteiro que tudo entende do riscado é como ser perna de pau no país do futebol. Ou pior. A fábula de Sempé fala de amizade, mas a trata sem muitas papas na língua, em momentos cômicos inesquecíveis, cheios de poesia e ironia desprovida de sarcasmo. É como se ele olhasse para seus compatriotas com a lente bem lavada da compreensão, indo direto ao ponto. Poucos artistas têm esse olhar no reino dos cartuns. Sem contar que Sempé desenha bicicletas como ninguém.
O desenhista nasceu em Bordeaux e deve ter sido um menino da pá virada, expulso da principal escola da cidade por indisciplina. Vai aí uma pitada do Pequeno Nicolau, o personagem que o notabilizou em vários livros divertidos, coassinados por René Goscinny, o roteirista de “Asterix”. O Pequeno Nicolau parece ter herdado as feições do seu criador – o nariz grande, a cara despreocupada, o sorriso fácil e endiabrado. Nicolau também não é uma criança comum.
Vivo e sorridente, Sempé sempre sonhou em ilustrar as capas da New Yorker. Sua visão do poder dos desenhos tem a ver com música. “Cartuns são como o jazz: eles acertam no alvo quando só sugerem”, ele já disse. “Em meus desenhos, eu procuro a beleza das elipses que encontro em Debussy ou em Count Basie.” Que outro cartunista tem um background adulto e uma sensibilidade tão acentuados no universo ou sério ou infantil demais que caracteriza a profissão?
De Sempé vale procurar tudo. Pela Rocco, sai a série altamente colecionável do Pequeno Nicolau. A Cosac Naify lançou outros dois lindos volumes do autor, além de Raul Taburin (todos traduzidos por Mario Sergio Conti).
Marcelino Pedregulhoconta a história de amizade entre um garoto que fica vermelho em todas as ocasiões e um outro que espirra sem motivo. A sutileza típica de Sempé também pode ser conferida no mais recente lançamento da editora, o álbum Senhor Lambert, uma maravilha de elipse em forma de desenho.
Literatura sutil
Num restaurante clássico de Paris, os fregueses se encontram para discutir os pontos altos da agenda francesa: política, esportes e mulheres. A política invade o espaço naturalmente, bem como o futebol, assuntos que rendem em qualquer ponto da Terra, embora sem o molho característico de um bistrô parisiense. Mas a ironia delicada de Sempé aparece com toda força quando o assunto é mulher. O tal senhor Lambert, um dos fregueses do estabelecimento, altera a rotina dos almoços diários depois que se apaixona. E essa paixão reverbera em todo o ambiente, fazendo os companheiros de refeição relembrarem suas aventuras tão verdadeiras quanto a imaginação pode permitir.
Sempé extrai o máximo de situações mínimas, jogando com o silêncio e a alusão de maneira primorosa. O que vemos ali no espaço reduzido do Chez Picard – entalado no coração de uma Paris povoada pelos Citröen Deux Chevaux, tão típicos de uma cidade que é outra coisa a cada visita – é um exercício completo e comprimido da mais pura poesia. Fazendo par com os traços finos de um Saul Steinberg, que também transformava suas visões numa espécie de literatura sutil, Sempé, aos 80 anos, ainda é a cara de uma França que existe em algum lugar.
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[Cadão Volpato, para o Valor Econômico]