Quando estou em São Paulo e passo em frente a uma banca de jornal, compro uma revista piauí. Levo para casa já sabendo que um único exemplar será lido por dez ou doze pessoas – mulher, filhos, namoradas dos filhos, sobrinhos. A revista passa de mão em mão, às vezes viaja, retorna sempre e fica disponível para mais leitores. E eu coleciono as impressões de quem leu. A revista só recebe elogios, deixa a todos fascinados. É o melhor investimento que faço na compra de conteúdos periódicos.
Não tenho informações sobre como a revista vai do ponto de vista econômico e financeiro. Espero que vá bem. Torço para que vá bem. É desses raros casos de mídia que, sem exagero, transforma-se quase num patrimônio cultural de um país por sua qualidade editorial. O último exemplar que li trouxe pelo menos dois assuntos fascinantes: no primeiro, Dorrit Harazim acompanha o deputado Marcelo Freixo, hoje candidato a prefeito do RJ, no seu dia-a-dia de quase confinamento determinado pela segurança que tenta evitar que seja assassinado pelas milícias; no outro, o repórter Raffi Khatchadourian faz um relato amplo e minucioso da saga do americano Dallas Wiens, que realizou um dos primeiros transplantes de rosto do mundo.
Um simples exemplar da piauí serve, em resumo, para derrubar antigos mitos que se estabeleceram no jornalismo, ninguém sabe exatamente nem como e nem porquê. O primeiro deles é a velha história de que o leitor de jornal não lê matéria grande. Mentira com cara de verdade que se estabeleceu nas redações com a força de um dogma. Jornais e revistas encurtaram seus materiais de modo drástico. Diriam que se tornaram apenas mais superficiais. O mito serviu para acomodar a tendência de se investir menos na qualidade da informação, menos em reportagens, em apurar menos, em cobrir territórios cada vez menores.
No balcão da cozinha
Não tenho o exemplar da piauí em mãos, mas sei dizer que a reportagem sobre o transplante de rosto tem cerca de 16 páginas daquele formato grande e traz poucos espaços em branco ou ilustrações. É um texto denso, mas que prende a atenção dos leitores da primeira à última linha. É material para cinco ou seis horas de leitura compenetrada. Leitor não lê matéria grande? Gostaria que alguém me explicasse por que essa reportagem de Khatchadourian foi lida por mais de 12 pessoas só em casa, onde ninguém leu por imposição ou por obrigação e ninguém leu por interesse profissional. Todos foram – eis a verdade – cativados por um texto de boa qualidade, por uma narrativa de ótima qualidade e por um tema – a evolução da medicina – de grande atualidade.
Outro mito destruído, também uma mentira com cara de verdade que tem sido disseminada com grande força em nossos dias, é de que o jovem não consome mais informação em papel; saiu do papel e foi para o computador, sai agora do computador e vai para o celular e o tablet.
Em casa, os exemplares da piauí que eu às vezes compro são hoje disputados por jovens, de 20 a 35 anos, que vivem plugados nos meios eletrônicos, embora não revelem nenhum preconceito em consumir informações em papel. Tenho disponíveis em casa exemplares de dois grandes jornais paulistas e exemplares das duas maiores revistas de atualidades. A não ser eu mesmo, pela manhã, ninguém sequer folheia mais os jornais. Colocados em ordem sobre o balcão da cozinha, os jornais lá ficam de manhã à noite. Os jovens perderam a curiosidade em folheá-los. Buscam as informações que precisam na internet e prestam um pouco de atenção na TV. As revistas de atualidades – Veja, Época – ainda são folheadas, mas é cada vez mais raro encontrarem nelas mais do que um único assunto de seu interesse por edição. Penso que, se eu desistir de assiná-los, esses jornais e essas revistas simplesmente desapareceriam de minha casa.
A revista acompanha os leitores
Alguém poderia também me explicar por que a piauí exerce tão grande fascínio entre os jovens da minha casa? Eu mesmo criei uma frase, há algum tempo atrás, e gostaria de repeti-la para tentar alguma explicação para o fenômeno da piauí: “O papel – escrevi em artigo para este Observatório da Imprensa – não vai desaparecer como mídia por obsoletismo, e sim, por inadequação de uso.” Podemos afirmar, desse modo, que a vitalidade da piauí está justamente no bom uso que faz do papel com as características que o distinguem entre todos os meios.
Em outras palavras, o papel é sem dúvida o meio ideal para transmissão dos conteúdos da piauí por sua densidade. É difícil imaginar um outro meio que supere a portabilidade do papel na leitura de um texto tão extenso como esse, da reportagem sobre o transplante de rosto. Leitor da vez, um dos meus filhos levou a revista para uma viagem ao Nordeste numa semana e a trouxe na outra semana para entregá-la ao leitor seguinte. A revista acompanhou seus leitores por todos os cômodos da casa.
Invenções extraordinárias
Diria também que a revista, durante seus poucos anos de edição, já conseguiu consolidar sua marca. O nome Piauí está associado a produto de mídia de boa qualidade, a textos de ótima qualidade, a leitura agradável e a uma certa capacidade de fazer revelações que vão muito além da própria notícia. Eu mesmo acompanhei por alto, pelos jornais, as informações sobre o transplante realizado pelo infausto Dallas Wiens. Foram para mim notícias de mais um transplante. Apenas isso. A reportagem da piauí levou-me para um mundo que eu nem sonhava existir: o da extrema infelicidade das pessoas sem rosto; o da extrema ousadia da medicina de ponta. Nos damos conta, por assim dizer, o quanto pode ser cansativa a leitura pelo meio eletrônico e o quanto amena e agradável pode ser a leitura em papel, de uma narrativa que desdobra os interesses do leitor a cada parágrafo.
O papel e o jornalismo de qualidade são invenções extraordinárias. Vieram para atravessar os séculos e os séculos. A chave da sobrevivência de um e de outro está nas mãos dos empreendedores. Me deem um jornal e uma revista de qualidade que eu lhes darei doze leitores ou até mais.
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[Dirceu Martins Pio é ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil e atual consultor em comunicação corporativa]