Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A influência da estupidez

A degola que a grande mídia perpetrou em suas antigas estruturas de cobertura nacional jamais poderá ser vista como sensata e racional. Foi provocada, sem qualquer dúvida, por influência da estupidez. Quem cortou sucursais e correspondentes nestes últimos 20 anos era péssimo em visão estratégica, ruim de visão de futuro e um desastre em cálculos econômicos e financeiros. Em resumo, era mesmo um estúpido.

A desativação dessas estruturas – fulminante em alguns casos, lenta e gradual em outros – teve início no começo dos anos 1990, quando já se prenunciavam no Brasil as grandes transformações desencadeadas pelo desenvolvimento das novas e revolucionárias tecnologias de informação. A grande mídia brasileira entrava em crise. Cada qual viveu suas próprias circunstâncias. Umas se endividaram para investir em telefonia celular; outras por investir em internet e outras mais em função de planos mirabolantes em TV fechada. A chamada “economia de custos”, traduzida por redução atrás de redução da folha de pagamento, virou rotina nas empresas de mídia. As estruturas de cobertura nacional foram decepadas e ninguém parou para analisar os benefícios que elas traziam e poderiam trazer às organizações. Foi como matar a galinha de ovos de ouro.

O Grupo Estado de S.Paulo, por exemplo, tinha uma rede de sucursais e de correspondentes de primeira linha, esculpida que foi, ao longo do tempo, por Raul Bastos. Até o início dos anos 1990, essa rede oferecia material de qualidade para que o Grupo introduzisse diferenciais relevantes em seus dois jornais (Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde); abastecia a Agência Estado, que começava a faturar alto com a venda de informações tanto para a mídia (reprodução simultânea com os jornais do grupo) como para mesas financeiras (consumo final); colaborava com a rádio Eldorado (pertencente ao grupo), que se posicionava em jornalismo de ótima qualidade; servia ainda como balcão de publicidade regional, que eram lucrativos porque o mercado de publicidade local respondia bem ao volume de informações regionais que os dois grandes jornais paulistas publicavam.

Noticiário concentrado

Quem decepou a estrutura, olhou apenas para o orçamento de uma das unidades do grupo (Estado de S. Paulo) e enxergou a rede como centro de custos, e não por sua excepcional condição de provedora de receitas (na metade da década de 1990, as receitas anuais obtidas pela Agência Estado com a venda de informações apenas para a mídia nacional ultrapassavam os R$ 10 milhões, ou seja, eram quase o dobro dos “custos” eliminados). Quer dizer, por estupidez, enxergou a árvore e não conseguiu enxergar a floresta.

A mutilação dessas estruturas ainda reverbera forte sobre a economia das grandes empresas de mídia. Perderam posição nos mercados regionais dinâmicos (interior Paulista, Paraná, Triângulo Mineiro para ficarmos em três exemplos eloquentes), perderam força institucional, perderam influência e perderam – o que tem gravidade maior – as condições básicas para concorrer no mercado de informações nos meios digitais. Não vai ser fácil para os grandes jornais brasileiros emular o bem sucedido programa de venda de informações na internet produzido pelo New York Times.

O Brasil que descentralizou seu desenvolvimento ficou descoberto pelos grandes jornais, cujo noticiário hoje está superconcentrado no triângulo São Paulo-Rio-Brasília. Eles precisam – e com urgência – resgatar essa cobertura, mas não sabem disso e não pensam nisso. A tiragem dos jornais de economia e negócios – Valor Econômico, Brasil Econômico – também não cresce talvez porque sua cobertura é restrita aos eixos tradicionais de desenvolvimento. A notícia que importa – oportunidades de trabalho, de negócio, novos investimentos, o andamento das obras governamentais, o desenho de um novo país – já está também fora desses eixos.

De costas viradas

Alguns espaços da internet, como o do portal do Google, tentam apresentar uma cobertura de Brasil via acordos com jornais regionais. Não é a mesma cobertura que o Brasil já teve via rede de sucursais e correspondentes dos grandes jornais. A hierarquia que um jornal regional estabelece sobre a informação é diferente. O jornal regional tem de perseguir o noticiário local pelo que possui, às vezes, de mais provinciano. Sucursais e correspondentes dos grandes jornais davam cobertura a fatos regionais que tinham importância nacional.

É claro que uma parte da cobertura nacional é suprida pelas grandes redes de TV, que têm emissoras coligadas e afiliadas bem distribuídas por todo o território nacional. Há que considerarmos que a prioridade de TV não está na relevância dos assuntos, mas em sua capacidade de produzir imagens em movimento. No noticiário nacional, as imagens de um pivete roubando a bolsa de uma mulher nas ruas centrais de Salvador tiram o espaço de uma notícia sobre atrasos numa das grandes obras do PAC. A bem da verdade, a TV continua a ser a mídia da rapidez e da superfície.

“A conta não fecha”, costumam repetir os financistas de plantão a serviço dos grandes jornais a quem pleiteia investir na captação de informações por fora dos antigos eixos da economia. Nos momentos de tempestade, como este, determinado pela pressão do mundo digital sobre os meios tradicionais, o destino da mídia não deveria ficar nas mãos dos financistas, se não tiverem olhos para enxergar os riscos desse caminhar em direção ao futuro sem conteúdos de qualidade e estratégicos. O jornalista empreendedor, com visão moderna de marketing, tem de ser o responsável pela definição da estratégia.

Quem viaja pelo país se espanta com a efervescência econômica de cidades como Jundiaí (SP), Curitiba (PR), Itapema (SC), João Pessoa (PB), Uberlândia (MG) etc., etc. etc. São cidades que hoje ninguém consegue fotografar sem que apareça, ao fundo, a imagem de pelo menos um edifício em construção. É provável que os grandes jornais brasileiros não sobrevivam por estarem de costas viradas para aspectos de tão grande relevância.

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[Dirceu Martins Pio é ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil e atual consultor em comunicação corporativa]