Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bom dia… Vietnã?

“Bom dia, comunidade!” Assim começa a matéria veiculada no site da Folha de S.Paulo (11/10) que se propôs a apresentar aos leitores os atrativos do Vidigal, morro carioca pacificado há menos de um ano. Inserida na editoria de Turismo, trouxe logo em seu subtítulo o que poderia parecer a um leitor mais desconfiado uma confissão em caracteres maiúsculos: “No Rio, o morro do Vidigal reúne atrações até mais conhecidas dos estrangeiros do que dos próprios turistas brasileiros”. Turistas… e jornalistas também, provavelmente, pois embora o texto fosse destinado à edição eletrônica de um jornal tupiniquim, teve uma repórter espanhola, María Martín, destacada para a missão expedicionária de colonização.

Já em suas primeiras linhas surgem indícios do que está por vir: Maria afirma que estrangeiros“só visualizam o que é uma favela por meio de cenas de filmes e a imaginam como um labirinto de becos onde crianças crescem com as ambições de Zé Pequeno”, personagem de Cidade de Deus. Para quem não assistiu à obra de Fernando Meirelles, registre-se que a maior ambição de Zé Pequeno na trama, senão a única, era tornar-se bandido. A repórter prossegue:

“Vistas assim, as comunidades cariocas tinham a troca de tiros como trilha sonora, e o visitante era afastado sem conversa. Talvez por isso, quando um gringo chega ao Vidigal (…) é invadido por uma inconfessável decepção ao comprovar que, agora, os fuzis são só visíveis nas mãos da polícia, e que a trepidante ação mostrada no filme (…) acabou.”

Não parece ter relevância a Martín que, talvez, as crianças nascidas na comunidade possam ter sonhos outros que não a gerência de uma boca de fumo, ou que a rotina pré-UPP beirasse o insuportável – ainda que caibam ponderações acerca dos resultados obtidos pela polícia nas comunidades por ela ocupadas, assim como quanto à política de segurança estadual que garante a dita pacificação tão somente às favelas próximas à Zona Sul e a instalações que servirão como palco para os jogos esportivos que se aproximam, em detrimento de outras tantas incontáveis favelas. (Qual seria o antônimo de uma favela pacificada? Violentada?)

O que importa é a frustração do turista por não ter sua busca por violência urbana saciadain loco, fingindo não saber que a realidade é muito mais terrível que a ficção (por mais que esta última seja baseada em fatos). O gringo acometido pela “inconfessável decepção” se personifica na própria jornalista.

“Gringos descobrem o que é que a favela tem”

Em defesa de María Martín poder-se-ia dizer que se trata de matéria para a seção de Turismo do veículo, e não para as editorias de Poder ou Cotidiano. Afinal, que mal há em fazer uma reportagem cuja pretensão é atrair visitantes a determinado lugar e não ouvir seus moradores?, perguntaria um incauto. Caso tenham sido ouvidos, qual a necessidade de dar-lhes voz na matéria?

María Martín limita-se a reproduzir uma senhora anônima a queixar-se do serviço de mototáxi como meio de transporte no sobe-e-desce do morro. Nenhuma linha sobre o tráfico, que continua ativo apesar da atuação da polícia. Tampouco sobre a opinião dos habitantes locais em relação à cada vez maior presença de estrangeiros, que aumenta a pressão inflacionária sobre o mercado imobiliário da área.

A presença de turistas ali não é novidade, ao contrário do que se pode supor depois da leitura da matéria, que tenta caracterizar o turismo em favelas como diferenciado do turismo-padrão. Muitos visitaram e passaram mesmo a morar no Vidigal antes da criação da UPP. Os que iam a passeio raramente desciam de seus jipes em safári, suas câmeras fotográficas em riste apontadas para os selvagens, que retribuíam as expressões de espanto com olhares igualmente curiosos: os visitantes eram a atração.

Os que decidiam ficar recrudesciam a mudança paradigmática na relação espetáculo/espectador, estranhas criaturas com seus cabelos dourados, olhos azuis e rostos vermelho-pimentão. Quais insondáveis desígnios levavam tais seres exógenos a abandonar o admirável mundo novo gringo e fixar residência no morro que o papa abençoou – sim, o próprio Karol Wojtyla esteve no Vidigal antes que a visita virasse moda –, os que ali nasceram não sabiam. Mas logo os recém-chegados passavam a compor o “cenário”; fossem eles de outros bairros, estados ou países, eram absorvidos pela cultura local. Com o tempo tornavam-se, junto com os moradores, protagonistas na trama urdida por escadarias e vielas.

Para tanto, bem como para se livrar de certos condicionamentos do olhar e projeções, é desejável permanecer na comunidade por um período maior do que uma semana, tempo despendido por Martín em sua visita. Uma maior imersão propiciaria um relato fidedigno e o combate ao determinismo dos estereótipos, mas tal aprofundamento poderia ser tachado de inviável caso se confirmasse a suspeita de que boa parte do roteiro de apuração se deu na garupa de uma moto.

À sombra dos Dois Irmãos

Nesse interstício de sete dias, a repórter da Folha de S.Paulo visitou a Prainha do Vidigal, onde sentiu a “areia fofa, salpicada de rochas” com os próprios pés – pode-se concluir que o local é inacessível a motocicletas, portanto – e observou que “moradores da região pacificada dividem espaço à beira-mar com hóspedes de cinco-estrelas”. Afora a ambiguidade contida na expressão “hóspedes de cinco-estrelas” (quem tem cinco estrelas, o hotel ou os hóspedes?; quantas estrelas teriam aqueles que se hospedam nos albergues instalados nos becos da favela?; sobraria alguma estrela para o morro e seus moradores?), caberia à repórter elucidar como o espaço propagadamente democrático da praia aos pés do morro Dois Irmãos é dividido na prática: protegidos por seguranças, turistas hospedados no Sheraton de um lado; moradores no outro, entregues à proteção de Iemanjá.

Segundo a repórter, “o ambiente é tranquilo”, e “com otimismo, tem quem tome banho de mar despreocupadamente, deixando os seus pertences em cima da toalha”. Faltou contar que quem mergulha sem temores são os moradores. Os hóspedes geralmente preferem a piscina do hotel, provavelmente para evitar as águas poluídas da praia e preocupações desnecessárias. Esqueça o azul-caribe na prainha do Vidigal: mesmo em alta temporada, é mais frequente o marrom-emissário.

A questão com os hóspedes do Sheraton também parece menor aos moradores no momento em que, sob a égide da gradual incorporação do morro à indústria cultural e, em alguns aspectos, econômica – o que não implica cidadania plena a seus habitantes, como se atesta na leitura dos comentários à matéria –, o Vidigal vive a expectativa de significativas transformações e anseia pela perenidade de seus efeitos. Além da presença da polícia, os moradores “ainda carecem de serviços mínimos”, como notou María Martín, sem enumerá-los, contudo: talvez não caibam no caderno de turismo.

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[Evandro Silva é estudante de jornalismo da Universidade Federal Fluminense e servidor público. Morou no Vidigal por 28 anos.]