O mês de dezembro ofereceu duas excelentes oportunidades para se pôr em causa os critérios de avaliação das nossas universidades: primeiro, em 6/12, quando o ministro da Educação prometeu punir os cursos que haviam tirado notas baixas; duas semanas depois, quando anunciou a punição a ser aplicada. Entre os “cursos ruins” figuravam os de algumas federais, duas das quais do Rio de Janeiro: a UFRJ e a UFF.
Talvez por isso, entre os três principais jornais do país, apenas O Globo tenha dedicado espaço, em suas edições de 20 e 21 de dezembro, ao ocorrido com essas duas instituições. Especialmente à UFF, que viveria situação mais grave, com a hipótese – entretanto apresentada como certeza – de suspensão da abertura de vestibular nos cursos de Arquitetura e Ciências Sociais, em 2013. O jornal ouviu diversas fontes que apontaram o boicote dos alunos ao Enade – o “Exame Nacional de Desempenho de Estudantes”, substituto do “Exame Nacional de Cursos”, ou Provão, instituído por lei em fins de 1995 – como o principal responsável pelo mau resultado.
Nem seria preciso recorrer a essas fontes para saber disso. Muitos dos atuais repórteres estudaram em instituições públicas. Se foram alunos atentos, deveriam saber que o boicote existe desde o Provão, embora hoje tenha alcance muito mais reduzido do que no início.
A qualidade da avaliação
Se o Enade corresponde a 55% do total da nota de cada curso, seria interessante verificar a qualidade da prova. Procurei fazer isso em 2009, neste Observatório (ver “O provão da marolinha”), a segunda vez em que o exame foi aplicado aos alunos de jornalismo. (Como se sabe, cada curso passa por esse tipo de avaliação a cada três anos.) Na época, houve muito alvoroço em torno das acusações, reverberadas intensamente na mídia, sobre a utilização da prova como instrumento de propaganda política. A análise, porém, revelaria algo bem pior: a absoluta inépcia dos avaliadores, acrescida do espantoso número de questões anuladas – não apenas na prova de jornalismo, mas na dos demais cursos, como se podia verificar no site do Inep.
Indagar como se escolhem os responsáveis pela elaboração dos exames e quanto se gasta em todo esse processo seria uma pauta ao mesmo tempo elementar e muito relevante, embora aparentemente não esteja entre as preocupações dos jornalistas. Mas o Enade é apenas parte do problema: o que deveria estar em discussão, desde sempre, são os critérios de avaliação propostos pelo governo – este e os anteriores –, que desconhecem as diferenças essenciais entre instituições públicas e privadas e procuram estabelecer um modelo único, voltado – como não poderia deixar de ser – para a estrutura das particulares, que tanto podem ser faculdades isoladas como centros universitários ou universidades. Além, é claro, dos critérios de escolha e qualificação dos avaliadores escalados para visitar os cursos.
As distorções do modelo único
Seria impossível detalhar aqui as inúmeras distorções que esse modelo causa. Fiquemos apenas com o básico: nas públicas, os professores ingressam necessariamente por concurso, nenhum é horista – como é comum nas particulares –, a maioria tem dedicação exclusiva, desenvolve atividades de pesquisa e/ou extensão além do magistério e todos passam por avaliações periódicas de seus pares, para efeito de progressão funcional. Sua produção e demais atividades são expostas em relatórios anuais encaminhados ao setor administrativo próprio.
Em síntese, e como é óbvio, professores de universidades públicas são funcionários públicos, seus dados e suas ações estão à disposição permanente das autoridades do Estado. Ao mesmo tempo, é esse Estado o responsável pela destinação da verba necessária à manutenção, ampliação e melhoria das instalações necessárias ao bom funcionamento dos cursos – embora, é claro, a gestão dessa verba por cada instituição deva ser sempre objeto de análise.
Um modelo único de avaliação apaga essas diferenças, embora seja muito útil para o estabelecimento de rankings das “melhores” e “piores” instituições, como os jornais adoram fazer.
A falta de analistas qualificados
E então temos, mais uma vez, as notícias sobre os “cursos ruins”, que precisam ser “saneados”, sem que se saiba exatamente como os números negativos foram produzidos. E assim se nivelam cursos de longa tradição e outros cuja precariedade notória não permitiria sequer que tivessem sido abertos, a não ser que outros interesses prevaleçam – e aqui não devemos jamais esquecer dos parlamentares que atuam nessa lucrativa área.
Há cerca de três meses, a Folha de S.Paulo arvorou-se em produzir seu próprio critério de avaliação de universidades, o que foi objeto de muitas críticas, algumas publicadas neste Observatório (ver, por exemplo, “Sobre universidades, campeonatos e reportagem”, “O método, os alhos e os bugalhos” e “132 universidades com zero em qualidade de ensino”). Como comentei na ocasião, teria sido melhor se tivesse investido em reportagem, para verificar in loco a condição de funcionamento dos cursos, tanto os privados quanto os resultantes da expansão promovida pelo governo através do Reuni. Daria, no mínimo, uma bela reportagem fotográfica. Mas, em paralelo, seria importante contar com analistas qualificados nessa área, ainda mais que tanto se fala na relevância do investimento em educação para o desenvolvimento do país.
Os jornais estão cheios de colunistas de política, economia e esportes. Os de educação, onde estão?
Leia também
Nota oficial da Pró-Reitoria de Graduação da UFF sobre Conceitos Preliminares de Curso (CPC) do MEC (19/12/2012)
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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]