No final dos anos 1920, com as limitações da indústria gráfica, os jornais raramente traziam aos leitores notícias ilustradas. A fotografia era praticada sob limitações, como o formato das câmeras, as chapas de vidro e o uso necessário de tripés. Os lentos processos de revelação e copiagem eram seguidos pela transposição da imagem para o clichê e pela impressão nos jornais.
O fotógrafo, que operava sob condições precárias – chapas de baixa sensibilidade, iluminação gerada pelo pó de magnésio e, frequentemente, com a câmera apoiada –, raramente obtinha um flagrante. As fotos eram posadas, tirando-lhes o encanto do momento, da espontaneidade.
Na virada da década, o Brasil experimentava um quadro político de transição, às vésperas da Revolução de 1930. A criação de uma publicação com características modernas para a época foi uma sugestão de Getúlio Vargas, ainda presidente do Estado do RS, a José Bertaso. Nascia, assim, em Porto Alegre, em 1929, a Revista do Globo.
Alguns anos antes, Getúlio, então ministro da Fazenda, em troca de apoio político, havia financiado a iniciativa de Assis Chateaubriand de criar a revista O Cruzeiro. A imprensa brasileira ganhava uma nova linguagem gráfica, complementando as reportagens, até então, pobremente ilustradas. Nascia, ao mesmo tempo, o fotojornalismo, ferramenta que daria dinâmica ímpar à informação. O fotojornalismo chegou ao Brasil à sombra de uma aventura política que mudou o país. E a ela permaneceria próxima, tão parte do nosso dia a dia.
A grande mostra dessa proximidade estava nas imagens – hoje de grande valor histórico – de um grupo de gaúchos amarrando seus cavalos no obelisco existente na avenida Rio Branco, no Rio. Imagem dinâmica que se seguiu à emblemática fotografia do carro oficial que transportava em seu interior o já ex-presidente Washington Luís para fora do Palácio do Catete, a caminho do exílio.
Em um dos seus primeiros números, na edição de 10 de novembro de 1928, O Cruzeiro publicara um anúncio que instituía um prêmio de 500 mil-réis destinado ao fotógrafo, profissional ou amador, que apresentasse o instantâneo inédito de um acontecimento que pudesse ser considerado sensacional pelo assunto e pela técnica de execução.
Aventura
A partir desse espírito, pela objetiva de fotojornalistas da equipe de O Cruzeiro, começou a ser ilustrada a história dessa grande aventura brasileira. Pautado pelo chefe de reportagem, lá vai ele, mundo afora, o andarilho dotado de coragem e criatividade: não sabe o que lhe aguarda, prefere mesmo não saber.
Hoje numa cidade moderna, ontem no sertão, antes numa tribo de índios, com os xavantes, por exemplo, fotografados pela primeira vez, frente a frente, por José Medeiros. Ou com os ianomâmis, que hospedaram o fotógrafo por 40 dias, numa aldeia de onde ficou impossível sair pela força das águas numa cheia de um rio.
Um dia, sem comida, entrou em confronto com o colega Arlindo Silva, velhos amigos, os dois armados, pela disputa de uma coxa de macaco. Fome faz dessas. Depois, riram muito e dividiram a pouca carne. Ou fechado numa camarinha, como nos 15 dias em que Medeiros acompanhou a iniciação de iaôs, as filhas de santo, na Bahia. Ou fotografando estoicamente o colega José Leal ser surrado pela polícia, em Pernambuco, a mando de um chefe de polícia cuja mulher foi delatada pelo jornalista, nas páginas de O Cruzeiro, por ostentar joias roubadas.
Na Assembleia Legislativa de Alagoas, José Medeiros estranhou que, numa tarde de sol e imenso calor, vários deputados entrassem na casa com pesadas capas de chuva: as metralhadoras só foram reveladas quando o tiroteio começou. Orlando Villas-Bôas estranhou um grupo de índios xavantes cantando de forma diferente do habitual. Foi na direção da cantoria e se deparou com José Medeiros deitado numa rede, cercado de uns dez índios, a quem ensinava a letra de “Nature Boy”.
Por aí afora, as aventuras de uns e outros foram se sucedendo. Contar todas é impossível. Eugênio Silva, do bureau de MG, exercia suas folgas pescando no rio das Velhas e devolvendo às águas os peixes que fisgava. Acompanhou Guimarães Rosa, a cavalo, para documentar as andanças do escritor pelos “grandes sertões veredas”. Ficaram grandes amigos, e Eugênio chorou a morte do acadêmico, três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras.
Indalécio Wanderley, especialista em concursos de misses, propôs casamento a uma candidata desde que ela abandonasse a disputa. Casaram-se e tiveram filhos.
Luciano Carneiro veio para o Rio pilotando um teco-teco, tirou brevê de paraquedista com Charles Astor e partiu para o aventureirismo que a fotografia brasileira esperava. Foi procurar, África adentro, o dr. Schweitzer, médico que mantinha uma colônia de leprosos em Lambarene. De lá, trouxe magistral documentário, operado com câmera Leica, em preto e branco, fotos feitas com a luz ambiente.
Viajou para a Coreia para cobrir a guerra. Para convencer um coronel que poderia saltar com as tropas americanas – por sugestão do militar –, Luciano subiu numa mesa e mostrou como se jogar no espaço. Foi aprovado, saltou, fotografou durante o tempo em que esteve solto no espaço. Foi à frente de batalha e voltou para o Rio, são e salvo. Morreu num acidente como passageiro de voo comercial, voltando de Brasília, onde fora fotografar um desfile de debutantes.
Henri Ballot, que trabalhava no escritório da revista em São Paulo, fazendo dupla com Jorge Ferreira, era dotado de grande coragem. Acompanhando Orlando Villas-Bôas, legou ao arquivo da revista os melhores momentos de um Brasil central sendo descoberto. Na juventude, foi membro da Força Aérea da França Livre, braço de pilotos franceses da RAF, a Força Aérea Real, da Inglaterra.
Ballot voava num Spitfire quando foi abatido sobre a Alemanha. Levado para um hospital americano, foi pela mão de uma enfermeira que tomou contato com a sua primeira câmera fotográfica. Saiu da convalescença, meses depois, já fotógrafo. Depois, trouxe para a aventura fotojornalística a mesma coragem de piloto de guerra. […]
Meias verdades
A revista trazia em seu trajeto uma série de assuntos nunca bem explicados – Jean Manzon, autor de fotos posadas; verdades somadas a meias verdades, estas assinadas por David Nasser – e que comprometiam o que era esperado de uma publicação que havia conquistado alto grau de credibilidade junto ao público de todo o país.
Luiz Carlos Barreto, junto com Indalécio Wanderley, jovens cearenses, começaram na redação da revista A Cigarra, editada pela Empresa Gráfica O Cruzeiro. Tinham a ideia de formar uma dupla, Indalécio, fotógrafo amador, e Barreto, recém-saído das fileiras da Polícia do Exército.
A convivência nos corredores da redação os levou para as páginas da grande revista. Finalmente integrados na equipe de O Cruzeiro, cada um foi para o seu lado, amadurecidos para o dia a dia que a pauta da redação determinava.
Numa viagem à França, Barreto acompanhou Chateaubriand a Cannes para um almoço oferecido a grandes nomes da imprensa internacional pela proprietária do Grupo Life-Time, Clare Boothe Luce. Como Chatô dormia a qualquer momento, em qualquer lugar e a qualquer hora, pediu que o fotógrafo, dispensado de fotografar, sentasse à mesa, à sua frente, para acordá-lo caso fosse tomado pelo infalível sono.
“Seu Barreto”, Chatô nos tratava a todos desta forma cordial, “essa americana é uma chata, fala demais, vou ter que sentar ao lado dela. Se eu dormir, cutuque a minha canela para me acordar.” Dito e feito, no decorrer do almoço, Chatô dormiu e acordou várias vezes, resultado da prosaica ação praticada por Barreto.
No Rio, ao voltar, Leão Gondim ouviu do grande chefe a reclamação de que Barreto poderia ter sido “mais delicado”, mostrando a canela marcada pelas cicatrizes deixadas pela boa ação praticada pelo jovem repórter.
Indalécio ocupou-se em fotografar para capas de O Cruzeiro, em especial a cantora Dóris Monteiro, à época mais um caso amoroso de Assis Chateaubriand.
Trotsky
Mário de Moraes teve sua aventura internacional no México, em 1956, ao tentar entrevistar o assassino do ex-comissário soviético Leon Trotsky, o “profeta armado da Revolução Russa de 1917”, tarefa até então tida como impossível, já que ele, conhecido como Jacques Monard, nunca havia dado entrevista. Quando um repórter insistia, ele ficava furioso, tendo até agredido alguns jornalistas. Na penitenciária mexicana onde Monard se encontrava, Mário de Moraes conseguiu uma entrevista com o diretor-geral. Disse que estava fazendo uma reportagem para O Cruzeiro sobre o sistema penitenciário mexicano, tido como um exemplo mundial em organização:
“Levou-me a conhecer o estabelecimento, e, na visita, acabamos nas oficinas, onde Monard trabalhava, e fomos apresentados. Não lhe dei a menor importância, já que isso fazia parte do meu plano. Conversamos um pouco, até que, levado por uma vaidade mórbida, o assassino de Trotsky me indagou se eu sabia quem era ele, disse que não, e ele foi contundente:
“– Sou Jacques Monard, o assassino de Leon Trotsky.
“Eu chegara aonde queria, fui arrancando-lhe informações, e Monard foi claro, matara Trotsky porque ficara desiludido com ele. A história provou que isso era falso: Monard conseguira aproximar-se de Trotsky por meio de uma secretária do ex-comissário soviético, e, cumprindo ordens (possivelmente de Stálin), matou-o com uma picareta de alpinista, que levara escondida debaixo de seu sobretudo. Quando percebi que já tinha o suficiente para dar um “furo” internacional, contei a Monard que era jornalista. Ele ficou a ponto de me atacar, mas terminou aceitando o fato, afinal reconheceu que revelara para mim o que não havia dito e nenhum outro jornalista. Poucas fotos foram discretamente feitas, a meu pedido, com a minha Leica, por um funcionário da penitenciária.”
Jacques Monard chamava-se realmente Ramón Mercader e era agente da polícia secreta de Stálin. Ele fora condenado a 20 anos de prisão no México. Quando saiu da cadeia, foi para a União Soviética, mas faleceu em Cuba.
Ubiratan de Lemos era um repórter investigativo e foi dos poucos que nunca se arvorou a fotografar. Mário de Moraes, também redator, fotografava. Numa época em que o bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, era o reduto/destino de retirantes vindos do Nordeste, viajando, penosamente, em caminhões apelidados de pau de arara, os dois voaram para Fortaleza e, de lá, acompanharam uma leva de gente que vinha buscar uma nova oportunidade de vida no sul. A matéria – com fotos de forte dramaticidade – foi publicada com grande destaque em seis páginas. Deu à dupla de repórteres o primeiro Prêmio Esso de Reportagem, instituído naquele ano.
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[Flávio Damm, 84, é fotógrafo. Trabalhou por uma década e meia na revista O Cruzeiro e fundou, com José Medeiros, a agência Image. Uma seleção de seu trabalho pode ser conhecida no livro Flávio Damm (Editora Senac)]