Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Reinventando tradição

“Eu tenho desprezo por quem fala de tendências”, disse a convidada e pausou, olhando fixo o anfitrião no palco. A plateia do pequeno teatro lotado por 250 pessoas, riu, o jornalista entrevistador se desculpou, um tanto nervoso, pela pergunta que é tão comum, mas exposta ali como tão crassa.

A reação de Jill Abramson, a primeira mulher a ocupar o cargo de editora executiva do New York Times – portanto, a figura mais influente do jornalismo tradicional em língua inglesa –, foi apenas uma das que desafiaram a promessa da noite, oferecida para um público seleto como uma conversa sobre “O Futuro Inesperado da Mídia”.

O título mais apropriado teria sido “O futuro imediato da revista centenária comprada por um zilionário que ajudou a fundar o Facebook ainda adolescente”. Na segunda-feira (28/1), a New Republic está sendo relançada em papel e múltiplas plataformas depois de ter sido comprada por Chris Hughes. Ele saiu do Facebook para dirigir a mídia social da primeira campanha presidencial de Barack Obama em 2008. Hughes tem cara de bebê, é intenso e invariavelmente cordial, aos 29 anos. Ao abrir a noite, ele se apresentou como alguém que quer retomar a missão expressa pelo fundador da New Republic, em 1914: “Iniciar pequenas insurreições no território das convicções dos leitores”. A julgar por parte do elenco editorial mantido pelo empresário que dividia o quarto com Mark Zuckerberg em Harvard, é esperar para ver.

Mais que marca

No fim do ano passado, Hughes disse à revista New York que há muito tem fascínio pela ideia de “como o jornalismo sério poderia sobreviver na era digital”. Quando a ironia reina sobre boa parte da nossa cultura, por que não ter o nosso ofício resgatado em alto-mar por um dos arquitetos do planeta do “curtir” e do exibicionismo patológico, da informação sob medida, o inventor do “cutucar” que, por essas façanhas, acumulou uma fortuna de US$ 600 milhões?

Estou com a Blanche Dubois, de Um Bonde Chamado Desejo. Não me importo de depender da bondade de estranhos, ainda que minha profissão não seja tão antiga quanto a dela.

A escolha dos dois convidados da noite destinada a atrair atenção para a reinvenção da New Republic não poderia ser mais “velha mídia”. Além de Jill Abramson, do Times, o outro entrevistado era Richard Plepler, presidente da HBO, a rede pioneira da TV a cabo, com mais de 140 milhões de espectadores em todo o mundo. Ao escolher o mais influente jornal americano e a produtora do melhor conteúdo da TV americana como termômetros do tal futuro inesperado, Hughes dá um recado sobre a qualidade que não faz concessões.

E Abramson se encarregou de martelar a mensagem em comentários como, “Eu me recuso a me referir ao New York Times como uma marca. O meu papel e falar do jornal”, mesmo admitindo que o Times é visto como marca em jornalismo.

Para a próxima

Por ter comprado uma revista quase moribunda, com um público restrito ao eixo de poder Nova York-Washington e cujo declínio está diretamente ligado à revolução digital, Hughes se posiciona, no conforto de sua fortuna, como um empresário quase na contramão de seus pares muito mais velhos e frequentemente mais dados a previsões apocalípticas. Prefiro um milionário, mesmo um milionário ingênuo, disposto a bancar o jornalismo que ele identifica como sério, a jornalistas arfando na corrida para descobrir o que querem seus caprichosos e volúveis leitores, como certa editora que acaba de enterrar uma revista semanal.

Mas Jill Abramson deixou claro que mesmo o destino do New York Times está cada vez mais nas mãos do público. A receita de anunciantes só cobre metade dos custos do jornal. Alguém na plateia perguntou a Abramson se o discurso cívico e a circulação democrática de informação podem ser afetados num futuro em que, por causa da tecnologia digital, haverá castas de informados, dependendo de quem pagar mais por doses de conteúdo. Ela disse que tem esse dilema em mente. Mas a noite foi logo encerrada. A conversa sobre o futuro incerto da mídia ficou para outra noite, quem sabe, num futuro próximo ou distante.

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[Lúcia Guimarães é jornalista, colunista do Estado de S.Paulo em Nova York]