Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O fim de um tempo no jornalismo cultural

Faz pouco mais de um ano que Daniel Piza morreu. Lembro que ele foi um dos primeiros a comentar, em 2000, em sua coluna na Gazeta Mercantil, sobre o lançamento deste caderno cultural. Era uma observação crítica, como se a estampa “Eu&” que nomeia o suplemento contivesse algum vestígio de autoajuda. Em seguida, na mesma coluna, seguia com os livros e discos e filmes de praxe, comentando ainda, não faço a menor ideia do motivo, que tomava água Perrier todos os dias em taças de cristal.

Eu tinha 22 anos em 2000 e dava os primeiros passos como repórter cultural. Ler Daniel Piza – e não gostar dele – era, portanto, uma obrigação. Para quem tinha pretensões acadêmicas, vivia a entrevistar doutos professores universitários e considerava raso qualquer crítico cultural que não citasse Adorno, desdenhar daquelas colunas era um passo necessário para ser admitido nos círculos que me pareciam esclarecidos.

Secretamente, contudo, ficava a invejar o espaço de que ele dispunha para opinar sobre o que quisesse. Aquilo não teria sido conquistado sem algum mérito. Lia as matérias que ele escrevia e achava em geral pertinentes, sobretudo as que tratavam de literatura e artes plásticas. Não havia voos interpretativos, mas o texto era claro e bem informado. Tinha sempre mais fôlego que a média do noticiário e às vezes trazia boas provocações.

No inicio dos anos 1990, comprou briga com os artistas do grupo Casa Sete, já naquele tempo tratados como heróis pela imprensa cultural. Mais recentemente, foi dos primeiros a apontar a qualidade de Milton Hatoum como prosador e a revelar bons títulos do calendário literário estrangeiro, como A Lebre dos Olhos de Âmbar, que jornalistas menos atentos descartariam como mera prosa comercial. Era, em suma, jornalismo de bom nível.

Sua morte gerou um mal-estar difícil de definir. Aos 41 anos, tinha uma presença tão ubíqua – depois passou a escrever sobre futebol, a falar no rádio, em blogs, a publicar livros infantis e até a fazer uma biografia de Machado de Assis – que era difícil imaginar que não atuaria de forma regular na imprensa até a velhice, a exemplo de Paulo Francis, um de seus modelos profissionais.

Realidade inegável

Entrevistei Daniel Piza uma vez, em 2002, para um trabalho de mestrado. Ele me recebeu na sua sala no Estadão em meio a pilhas de livros. Queixou-se da falta de densidade da crítica cultural no Brasil – “kulturkritik”, segundo a expressão que usou naquele dia. E comparou a leitura que havia feito em coluna recente do quadro de Velázquez (“As Meninas”) às analises da mesma tela feitas por Foucault, de quem discordava.

Na mesma conversa, revelou seu projeto de um livro sobre Ayrton Senna (seria publicado no ano seguinte, pela Ediouro). A morte do piloto, ele argumentava, coincidia com um momento de virada na vida política brasileira – a estabilização econômica e o Plano Real – e, como tal, representava um modelo de país que tentava se modernizar.

A morte precoce de Piza sugere uma associação parecida. No fim de 2011, foi como se morresse com ele uma forma de fazer jornalismo da qual ele foi representante dileto. Piza gostava de reivindicar o legado de Francis, de quem fora pupilo no início da carreira. Francis referia-se com carinho ao colega mais novo, que chamou de “Schopenhauer” numa entrevista ao Roda Viva, pois o considerava “muito cansado da vida aos 23 anos”. Piza escreveu um livro sobre o mestre, publicado pela Relume Dumará em 2004.

As semelhanças eram muitas. O estilo provocador, a inclinação liberal-conservadora, a emulação de mestres do jornalismo americano, o tom personalista e fragmentado das colunas, a falta de modéstia, a inspiração em pautas de revistas estrangeiras, o escopo inesgotável de temas, o esnobismo cultural, a apuração nem sempre precisa das informações, a altíssima produtividade, a veleidade literária, todos esses atributos de Francis estavam presentes de algum modo no trabalho de Piza.

Com a eleição de Lula em 2002, mais candidatos a herdeiro de Francis obtiveram destaque. Diogo Mainardi virou a estrela dos colunistas da Veja. Reinaldo Azevedo transferiu-se para as hostes da mesma revista. Na Folha de S. Paulo, João Pereira Coutinho e Luiz Felipe Pondé ganharam colunas e começaram a exercitar um tipo de provocação cultural e política que passou a repercutir. Revistas de ensaios de corte liberal e católico ganharam voz e apoio de arautos em posição de destaque.

Claro que não formavam um bloco homogêneo. Mainardi era o mais estridente e ferino, com a vantagem de que caprichava na autoironia. Azevedo assumiu a linha de frente da indignação moral com a corrupção. Coutinho trouxe leituras de liberais ingleses e afetava uma superioridade dândi capaz de irritar os leitores mais serenos. Pondé veio com sua teologia à moda antiga temperada por Dostoiévski e citações de filósofos de prestígio.

Em 2005, com o mensalão, esses nomes vieram ao proscênio e engrossaram a linhagem de jornalismo “à Paulo Francis” que Daniel Piza era dos únicos a encarnar até ali. Os escândalos políticos e o desmanche moral de quadros importantes do PT conferiram um rosto, deram combustível e legitimidade a esse grupo, que acabou respondendo por uma parte importante da identidade assumida pelo jornalismo brasileiro na segunda metade dos anos 2000.

A morte de Piza serve de emblema para o fim dessa era. Ao cabo de 2011, o governo Dilma encerrava seu primeiro ano. Não havia muito a celebrar, mas tampouco escândalos. O PT no poder federal era uma realidade ainda mais inegável que após a reeleição de Lula. A figura de Dilma, menos personalista, não despertava tanta antipatia quanto a do antecessor. (Francis, lembre-se, referia-se a ele como “o sapo barbudo”. Azevedo, como “o apedeuta”. Mainardi deu a um de seus livros o título Lula é Minha Anta).

Presença que falta

A saída de Lula do centro do poder dissolveu o grupo. A competição para lançar petardos ao mandatário e ao que ele representava perdeu sentido. A resistência do Brasil à crise de 2008 e a queda nos índices de desigualdade social se tornaram trunfos fortes. E a entrada em cena na “nova classe C” trouxe um elemento aos quais os dirigentes da imprensa não podiam ficar indiferentes.

Com o fim do governo Lula, Mainardi deixou sua coluna na Veja. O jornalista Mario Sabino, que ao lado dele e de Azevedo imprimia o tom ácido da revista, também abandonou a publicação. Coutinho e Pondé continuam em seus postos, mas suas colunas não repercutem como naquele período. Jornais e revistas fizeram reformas gráficas para ganhar apelo visual, os textos ficaram menores, caderno cultural de perfil acadêmico foi extinto, portais de internet assumiram estética popularesca. Agora a ordem é descobrir a fisionomia e a linguagem do novo leitor da classe C.

Nos últimos anos de atuação, Piza seguia a praticar um tipo de jornalismo que começava a sair de cena. Defesa da alta cultura, ecletismo e topete liberal perderam espaço nesse novo cenário. Ninguém parece seguro sobre o que colocar no lugar. Mas o fato é que a leitura dos jornais de domingo perdeu parte da graça sem a presença de Daniel Piza.

(Agradeço as leituras e comentários de André Conti, Maria Emília Bender, Maria Rita Palmeira e Matinas Suzuki)

***

[Flávio Moura é jornalista, editor de livros e doutor em sociologia pela USP]