O Financial Times, de Londres, um dos poucos jornais que está fazendo a travessia da versão impressa para o mundo digital com resultados positivos, completou em fevereiro 125 anos com boa saúde e planos ousados para o futuro. Isso não impediu, porém, o retorno dos antigos e insistentes boatos de que a Pearson, o grupo controlador, estava colocando o jornal à venda. No passado, dame Marjorie Scardino, a principal executiva, disse que o FT só seria vendido “por cima do meu cadáver”. [Marjorie Scardino recebeu o título de “dame of the British Empire" (dama do Império Britânico). Dame é o equivalente feminino de sir.] Mas ela deixou o cargo em janeiro e os boatos retornaram com mais força, inclusive com nomes de eventuais interessados, as agências Bloomberg e Thomson Reuters, e até o preço da eventual transação, em torno de 1 bilhão de libras esterlinas (cerca de R$ 3 bilhões).
John Fallon, o novo executivo da Pearson, precisou divulgar um contundente desmentido: “O FT é uma parte valiosa e valorizada da Pearson. Tenho dito que o negócio não está à venda e não temos iniciado, conduzido, encorajado de nenhuma maneira qualquer iniciativa, nem tenho tido qualquer conversação com qualquer pessoa sobre a venda do FT.” Os boatos, porém, podem voltar a qualquer momento.
O interesse pelo FT é compreensível. É moderado, pragmático, equilibrado, confiável; o mais global dos jornais de economia, e extremamente influente e respeitado, no mundo financeiro, nas chancelarias, na alta administração, nos gabinetes ministeriais e na academia. Serviu de modelo para dezenas de jornais e suplementos de economia.
Indispensável para o coração industrial do país
O presidente Barack Obama disse que é um antigo leitor e que “agora está na moda e todo mundo anda com o Financial Times”. O ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan afirma ser um ardente leitor, não só por sua cobertura equilibrada dos fatos, mas pelas reflexões penetrantes e desafiadoras sobre a situação da comunidade global. A designer de moda Diane von Fürstenberg: “Sou uma leitora muito leal do FT.” Segundo François-Henri Pinault, controlador do grupo de luxo PPR, “é, sans pareil, a fonte procurada pelos líderes de opinião”, “A não ser o Financial Times, não leio a imprensa há muitos anos”, disse a atriz Gwyneth Paltrow. Robert Rubin, que foi chairman do Citigroup e secretário do Tesouro, afirmou que o FT era invariavelmente mais útil que o boletim de notícias que recebia da CIA. Para Warren Buffett, é guia essencial para assuntos de câmbio e comércio.
O jornal que tanta admiração desperta nasceu em janeiro de 1888 com o nome de London Financial Guide e circulava três dias por semana; em 13 de fevereiro, foi relançado como Financial Times, publicado de segunda-feira a sábado. Competia com o Financial News, lançado quatro anos antes. Além de informarem os leitores sobre a bolsa, ajudavam seus donos a especular com ações. Cinco anos depois, o FT se diferenciaria, ao ser impresso no papel cor salmão que o caracteriza até hoje.
A grande arrancada se deu em 1945. O Financial News comprou o Financial Times. Na fusão, o nome adotado não foi o do jornal comprador, mas do comprado, dadas sua maior circulação e influência. O novo Financial Times cresceu em circulação, lucro e prestígio, com a expansão econômica do pós-guerra. Mas ainda era visto como um jornal de nicho. A marcha para ser considerado um “jornal” de fato foi lenta e constante. Começou com Gordon Newton como editor, de 1959 a 1972, visto até hoje como a pessoa mais importante na história do jornal. Com ele, o FT deixou de ser uma folha para o “gueto da City” e passou a cobrir outras áreas, como indústria, transportes, comércio, tecnologia, macroeconomia e as mudanças da sociedade. Tornou-se indispensável para o coração industrial da Inglaterra.
Influência e prestígio
Outro passo foi uma excelente cobertura das letras e das artes. Os críticos do jornal estavam entre os melhores da imprensa inglesa. Cobria de dança a arquitetura e cinema, além de esportes e corridas de cavalos. Mas Newton sabia qual era a razão de ser do FT e dizia que de nada adiantava ter uma boa cobertura de artes se errava nas cotações. Começou uma discussão na redação sobre o difícil equilíbrio entre ser um jornal especializado e ampliar a variedade de assuntos. Havia o medo de avançar demasiado na diversificação e perder a identidade. O ritmo do jornal era pausado, mais preocupado em dar melhor a notícia do que em ser o primeiro. Dizia-se que o FT publicava a informação correta um dia depois dos outros jornais terem errado.
Com a ampliação do foco, o jornal contratou mulheres na redação e passou a dar mais atenção aos consumidores e a tratar de temas polêmicos. Quando o FT publicou um artigo sobre a pílula anticoncepcional, um leitor indignado escreveu que o título adequado teria sido “como ser uma prostituta sem sofrer as consequências”. Por sugestão da autora, Newton respondeu que o título não caberia, era demasiado longo.
Em 1957, o jornal foi vendido à S. Pearson & Sons, um conglomerado que começou como empreiteira de obras e descobriu petróleo no México. Controlava empresas tão diversas como a vinícola Château Latour de Bordeaux, o Museu de Cera Madame Tussaud, os bancos Lazard Brothers de Londres e Nova York e Lazard Frères de Paris, o zoológico de Londres, a Ashland Oil de petróleo, nos Estados Unidos. Todos esses negócios já foram vendidos. A Pearson cuida basicamente de educação, edição e informação econômica.
Uma das medidas mais acertadas do jornal foi a ênfase na informação internacional. Nomeou correspondentes permanentes em Paris e Washington, depois Tóquio e Bruxelas. Em alguns anos, o FT tinha mais correspondentes no exterior do que qualquer outro jornal, com exceção do New York Times. Essa decisão de dar aos leitores uma visão crítica, equilibrada e bem informada da cena global é hoje, talvez, o principal fator de sua influência e prestígio. A circulação, que era de 35 mil exemplares em 1945, o ano da fusão, saltou para 80 mil em 1955 e 150 mil dez anos mais tarde. O jornal já era considerado um dos mais influentes do país, com grande prestígio no exterior.
Receitas publicitárias
A maioria dos jornais de economia circula cinco dias por semana, de segunda a sexta-feira. O FT saía também aos sábados. As vendas nesse dia eram maiores, mas o perfil do público era indefinido e atraía poucos anúncios. Foi relançado com dois cadernos, o primeiro de economia, negócios e política. O segundo, com temas de lazer, estilo de vida e investimentos; uma das seções era “How to spend it” (Como gastar), que depois foi transformada em revista de luxo e hoje tem seu próprio site na internet. Atraiu elevada leitura feminina e grande volume de anúncios. Foi um grande sucesso e modelo para as edições dos sábados dos jornais ingleses.
O FT, como toda a Fleet Street, a rua dos jornais de Londres, teve que enfrentar o monopólio e as pressões dos sindicatos gráficos. Era obrigado a contratar um número de pessoas muito acima das necessidades e pagar salários que não tinham relação com a complexidade das tarefas realizadas. As greves eram contínuas. Durante várias décadas, o custo de produção e impressão do jornal representava quase metade de todas as despesas. Apesar do grande aumento da receita, os lucros caíram continuamente, para menos de 5%, chegando a 2%, margem que era, ainda assim, superior à da maioria dos jornais ingleses. Seu equivalente nos Estados Unidos, The Wall Street Journal, tinha margens de 20% a 30%. O problema dos custos gráficos foi resolvido na Inglaterra nos anos 80 por Rupert Murdoch, dono de vários jornais, que enfrentou e quebrou a espinha dos sindicatos. Só em 1988 os jornalistas do FT puderam escrever diretamente num terminal de computador; antes, seu uso tinha sido impedido pelos sindicatos.
A expansão do FT se deu de cara para o exterior. Seu prestígio lhe permitiu aumentar as vendas de exemplares, principalmente na Europa, e publicar suplementos sobre países e temas internacionais, atraindo receita publicitária. Quando, em 1973, o Reino Unido entrou no Mercado Comum Europeu, o FT adotou o slogan “Europe’s Business Newspaper” (O jornal de negócios da Europa). Na ocasião já vendia 18 mil exemplares no exterior.
Murdoch quis comprar o FT
À eterna discussão interna sobre o equilíbrio adequado entre a informação especializada e uma cobertura geral, somou-se o debate para decidir até que ponto o FT era um jornal britânico, com ênfase na City, ou um jornal voltado para uma audiência internacional. Os dados da circulação deram a resposta. No fim dos anos 70, enquanto perdia 14 mil exemplares no Reino Unido, conseguia 23 mil no exterior. O FT apostou seu futuro no mercado internacional, diminuindo sua dependência da economia britânica.
Se pode ser marcado o ponto de inflexão que definiu o futuro do FT como jornal internacional, a data é o mês de janeiro de 1979, quando lançou uma edição para a Europa impressa em Frankfurt. Tinha também a vantagem de pegar o voo das quatro horas da manhã para Nova York, aonde chegava, devido à diferença do fuso horário, às 6h30, em tempo de ser distribuído cedo em Manhattan. Em 1985, passou a ser impresso nos Estados Unidos. No ano seguinte, de uma venda global de 254 mil exemplares, 64 mil eram lidos no exterior. Em 1997, foi lançada uma edição para os Estados Unidos. Em 1998, o jornal vendia mais fora do que no a Grã-Bretanha. A decisão de apostar no exterior provava ser correta.
O progresso do FT atraiu atenções indesejadas. No fim dos anos 80, houve um susto generalizado quando Rupert Murdoch, já dono do The Times, comprou 20% das ações da Pearson, tornando-se o maior acionista individual. Na verdade, ele não estava interessado na Pearson, mas apenas no Financial Times, que considerava o melhor jornal da Inglaterra. Queria fazer uma parceria para aumentar as vendas nos Estados Unidos, onde achava que podia vender 200 mil exemplares. O conselho de administração da Pearson não quis negociar e lhe negou um assento. Teve que vender. Duas décadas depois, Murdoch conseguiria comprar o The Wall Street Journal.
Sem rumo
A independência editorial é outra característica que ajuda a explicar a autoridade do FT. Depois de uma greve que impediu o jornal de circular, um artigo criticou a administração da empresa pela sua atitude durante o conflito. Um leitor de Zurique disse ao correspondente: “Sempre admirei o FT. Mas, realmente, o melhor teste para um jornal é como escreve sobre ele mesmo – e agora eu sei que posso acreditar no que vocês dizem.” Os leitores do jornal, em sua maioria conservadores, ficaram chocados quando o jornal recomendou votar no Partido Trabalhista nas eleições gerais. Os diretores da Pearson ficaram sabendo quando leram o FT de manhã.
No entanto, ao contrário do Journal, o FT se mostrava relutante em mostrar o lado negativo dos negócios e não tomava a iniciativa de mostrar os banqueiros corruptos. Refletia a atitude defensiva e complacente da City em comparação com a agressividade de Wall Street. Essa tolerância desapareceu com a internacionalização do jornal.
Nesse movimento ascendente, em 2001, o FT chegou a vender 501 mil exemplares impressos. Com o estouro da bolha tecnológica, a circulação iniciou um movimento descendente – que ainda não terminou. A publicidade despencou. O jornal tornou-se deficitário e entrou numa profunda crise interna – tanto econômica como editorial. Na internet, optou por oferecer todo o conteúdo de graça, esperando atrair anúncios, mas, como disse a Business Week, tinha um marketing deficiente e problemas de tecnologia.
Em 2001, quando teve que nomear um novo editor, Marjorie Scardino, no comando da Pearson, escolheu Andrew Gowers, que tinha lançado o FT Deutschland, a versão em alemão. “Foi a escolha mais difícil de minha vida”, disse ela. Gowers ampliou o apelo do jornal abrindo o foco editorial, publicando mais informações de interesse geral, uma página diária de esportes e menos economia; gastou muito numa reforma gráfica. O FT parecia sem rumo. The Times atraiu os leitores que procuravam informação de negócios. Foi um fracasso e teve que voltar atrás. Em 2005, Gowers saiu por “diferenças estratégicas” quando o jornal rompeu com a tradição de que o editor tinha uma duração quase papal – antes da renúncia de Bento 16. A escolha mais difícil fora também a decisão errada. Robert Thompson, o preterido na escolha, foi nomeado por Murdoch editor do The Times e depois editor do The Wall Street Journal.
Passos certos
Durante vários anos, o FT teve balanços desastrosos. Lionel Barber assumiu a redação em 2005. Sua tarefa tem sido consolidar a posição internacional do jornal, administrar uma queda contínua da circulação e a transição do papel para a versão digital. O jornal tem hoje cinco edições diferentes: para o Reino Unido, Estados Unidos, Europa, Oriente Médio e Ásia e é impresso em mais de 20 pontos diferentes, inclusive no Brasil. Em 2007, adotou um sistema de paywall, permitindo um número limitado de acessos gratuitos pela internet, mas cobrando acima disso, que seria adotado por outros jornais. Tem cerca de cinco milhões de leitores cadastrados. O número de assinaturas digitais aumentou rapidamente e hoje, com 312 mil, supera a circulação de 275 mil cópias do jornal impresso. No curto prazo, a receita do conteúdo deverá superar a publicidade.
A coluna Lex, de curtas e incisivas análises e comentários, nos quais não falta malícia e humor, é talvez a mais lida. O jornal afirma, com algum exagero, que é provavelmente a mais antiga e influente coluna de negócios e finanças de seu tipo no mundo. Seu público são os investidores; o alvo de suas críticas, corporações e governos do mundo inteiro. Foram colunistas da Lex John Gardiner, ex-chairman da rede de supermercados Tesco, Richard Lambert, que editou o FT e é diretor-geral da Confederação das Indústrias Britânicas, John Makinson, chairman da editora Penguin, e Nigel Lawson, ex-ministro britânico da Fazenda.
A atual aposta é um aumento das assinaturas digitais e a oferta de conteúdo pago com a marca do FT. Recentemente, Barber ditou os rumos do jornal para o futuro na era digital. Ele os definiu como uma “mudança cultural”, a ser conseguida mediante uma mudança estrutural. Ficar parado, disse, não é opção enquanto Google, LinkedIn e Twitter arrebentam com o modelo de negócios dos títulos tradicionais. As decisões anteriores de aumentar os preços, cobrar pelo conteúdo e basear o negócio nas assinaturas provaram ser corajosas e corretas. Mas, no futuro, a marca do FT de jornalismo somente poderá crescer se se adaptar às demandas dos leitores, tanto na versão digital como na impressa. A prioridade passou a ser a plataforma digital, com o jornal em segundo lugar. Serão lançados novos produtos online.
Ao longo de sua história, o FT deu os passos certos para adaptar-se ao futuro. Hoje, num mundo de negócios globalizado, aposta na plataforma digital.
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Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição