Um menino franzino de 11 ou 12 anos – a notícia, nesses casos, sempre carece de exatidão – desaparece num sábado à noite, nas imediações do Jockey Clube, no Jardim Botânico, bairro nobre da Zona Sul do Rio. Dois dias depois, seu corpo é encontrado na mata, próximo à Vista Chinesa, no Alto da Boa Vista, com dois tiros na cabeça, unhas dos pés e mãos arrancadas – embora a Divisão de Homicídios, segundo os jornais, rejeite a evidência de tortura.
No tempo da ditadura era assim, mas os justiceiros deixavam sua marca, a mais evidente delas a caveira do Esquadrão da Morte. Assassinatos exemplares, para intimidar a marginalidade pé de chinelo e exibir o poder dos grupos de extermínio.
Grupos de extermínio nunca deixaram de existir, e quem considera as “milícias” atuais um fenômeno novo ignora esse aspecto tão significativo da nossa história recente.
Ainda não se sabe quem teria cometido o crime. A imprensa menciona uma testemunha que teria visto um casal levar o garoto. Uma mulher metida em justiçamentos? Especula-se também sobre a ação de seguranças do Jockey, tendo em vista os furtos ocorridos recentemente na vila hípica do clube, e de seguranças de rua que atuam na área. Não se informa como nem por quem o corpo foi encontrado.
Meninos pobres volta e meia são assassinados por aí, em periferias que não são notícia. O caso deste menino, entretanto, tem tudo para se tornar um símbolo, desde que seja apanhado no seu devido contexto, como O Globo ensaiou em reportagem publicada na sexta-feira (15/3).
Os vários sentidos da marginalização
Antes disso, a história mereceu muito pouco destaque. Alan de Souza, morador na Rocinha, sumiu na noite de sábado (2/3). Como não voltava para casa, sua mãe começou a procurá-lo. Encontrou-o na terça-feira (5), no Instituto Médico Legal.
O Diafoi o primeiro jornal a noticiar o fato. A seguir, o Extra “repercutiu”. Só no sábado (9/3) O Globo deu chamada de capa sobre a “barbárie no Jardim Botânico”. Finalmente, no dia 15, foi mais fundo, abrindo uma página inteira para contar essa história exemplar de exclusão: a mulher desempregada e ainda jovem, mãe de sete filhos – incluindo o que foi assassinado –, que morava num barraco de madeira na Rocinha – pobre entre os mais pobres – destruído numa chuva, a filha grávida aos 16 anos; o menino que não gostava de estudar, ainda não sabia ler e escrever, mentia quando dizia que ia à escola e preferia fazer malabarismos nos sinais de trânsito ou frequentar lan houses para jogar videogame; a escola que não foi sensível ao histórico de faltas, os programas de “acompanhamento de evasão” impecáveis no papel mas incapazes de se concretizar, dada a falta de estrutura nesse e nos demais setores de atendimento social.
Associada a um vídeo com a mãe do menino, a reportagem, entretanto, não recebeu muitos comentários na versão on line do jornal: apenas 23, alguns dos quais culpando a mulher pela própria situação – “desajustada”, “não poderia ter sete filhos e com netos vindo por aí” –, comemorando a eliminação do garoto – “mais uma semente do mal foi pra vala” – ou lamentando a “triste vítima da nossa herança da mistura de raças entre negros e nordestinos”.
Outra reportagem, publicada na noite do mesmo dia, tampouco mobilizou o público, embora tenha provocado o dobro de manifestações, algumas extremamente ofensivas, a ponto de levar um leitor a protestar contra os “raivosos” que “acabam afastando leitores sérios”: “Esses comentários de pessoas radicais que defendem a morte e o extermínio de menores acabam ganhando mais dimensão que a própria notícia. O jornal tá dando espaço demais para este pessoal despejar toda a raiva e frustração contra os favelados e outras minorias. Tem que dar uma editada”.
O preconceito e suas consequências
“Uma editada” provocaria inevitável polêmica: afinal, seria um cerceamento da liberdade de expressão, por mais que discordemos do que se diz. Serviria para coibir a proliferação de preconceitos, certamente, mas eles não deixariam de existir, e hoje se reproduzem tranquilamente nas redes sociais.
Aliás e a propósito, preconceitos fazem parte do próprio enfoque adotado pelo jornal, apesar de espasmos como o desta rara reportagem: na mesma semana em que foi publicada, O Globo destacou em manchete de página (quarta-feira, 13/3), “Insegurança ronda instituições de ensino na Gávea” – por sinal, bairro vizinho ao Jardim Botânico –, com a abordagem corriqueira sobre as pessoas de bem – especialmente os filhos da elite, matriculados naquelas escolas – e os bandidos. No sábado (16/3), noticiava: “Bandos de menores levam medo a Copacabana”, atacando “principalmente turistas e mulheres”. Estariam roubando “até sanduíches” das mãos das pessoas, mas esse detalhe tão significativo não chegou a sensibilizar a repórter, ou seu editor.
Ninguém desconhece a rotina da cobertura dos fatos relacionados com a marginalidade social na grande imprensa: muda a linguagem, mas o enfoque é basicamente o mesmo. Há bons e maus, e os maus são facilmente identificados aos frutos dessa estrutura invisível que promove historicamente a marginalização: os pretos e pobres, lamentável “mistura das raças entre negros e nordestinos”. Assim apresentado o conflito social, não é difícil entender a frequência com que se apela ao puro e simples extermínio dos indesejáveis. Até que um caso escandaloso como o do menino Alan nos desperte para a tragédia da “infância abatida a tiros”, símbolo da complexidade da questão social que o noticiário cotidiano teima em ignorar.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)