“À imprensa não basta parecer honesta, tem que ser honesta.”
O atentado em Boston coberto por O Globo proporcionou aos estudiosos de mídia uma aula de edição jornalística poucas vezes tão explícita. A oportunidade dever ter sido comemorada por mestres em comunicação sempre focados no garimpo de exemplos expressivos que possam servir para o estudo e a análise conjunta com seus pupilos universitários das peculiaridades que sitiam a veiculação de notícias e opiniões.
No caso específico da notícia – a explosão de duas bombas na linha de chegada da Maratona de Boston, provocando três mortes e mais de cem feridos – e seus desdobramentos (perseguição, morte de um dos suspeitos e captura do outro), a mesma além de marcar as primeiras páginas do jornal por um tempo acima da média em se tratando de um fato internacional, mobilizou um time razoável de correspondentes, especialistas e comentaristas que repercutiram vários aspectos do drama que se abateu sobre a população de Boston e os americanos em geral.
Mas, apesar de todo aparato midiático visando a oferecer ao leitor os mais variados ângulos e abordagens do atentado, a notícia estranhamente passou ao largo da página reservada à opinião dos leitores. Estes, comumente atentos, participativos e opinativos, desta vez se quedaram mudos no decorrer da ebulição dos acontecimentos que abalaram o Ocidente pelo teor de insegurança que injetam no cotidiano dos habitantes desse planeta (exceção a três comentários publicados no dia seguinte ao atentado).
O dia a dia das manchetes
Exibindo entre quinze a vinte cartas diariamente, a maioria via e-mail, sobre temas e reclamações distintas, com ênfase nas manchetes e assuntos políticos polêmicos, o espaço “Dos Leitores” é uma espécie de termômetro cívico da sociedade e do país e como tal atrai um público formado por assessorias de órgãos públicos, autoridades governamentais, políticos, ONGs e uma diversificada gama de profissionais ativos e aposentados. Os textos curtos, claros e objetivos, de propósitos argumentativos, muitas vezes acrescentam ou complementam pontos de vista defendidos de forma mais abrangente pela linha editorial do jornal ou ainda revelam e ampliam detalhes que criam novas perspectivas para temas conhecidos.
Acompanhando, dia a dia, o espaço e a importância dados à notícia do atentado fica mais difícil aceitar a mudez dos leitores em que muitos costumeiramente repetem de alguma forma o ponto de vista do jornal, mas a outros ainda se permite uma opinião independente, compondo um diversificado painel de interesses e tendências.
Seguindo a sequência de manchetes que por onze dias pontuou as primeiras páginas de O Globo, torna-se evidente, relevante e constrangedor a exclusão da opinião dos leitores. Senão vejamos: 16 de abril (3ª feira): “A Volta do Terror – 15 Segundos de Horror”; 17/4 (4ª feira): “Estado de Alerta – EUA ainda sem explicação para o novo atentado”; 18/4 (5ª feira): “EUA já têm suspeito de ataque em Boston”; 19/4 (6ª feira): “Atentado em Boston – FBI exibe imagens de suspeitos e pede ajuda”; 20/4 (sábado): “Com Boston sitiada, FBI mata um suspeito e prende o irmão – Caçada a jovens muçulmanos de origem chechena mobiliza os EUA”; 21/4 (domingo): “Terror em Boston – EUA buscam motivo para o atentado”; 22/4 (2ª feira): “Terror em Boston – Para polícia, suspeitos planejavam mais ataques”; 23/4 (3ª feira): “Terror nos EUA – Suspeito pode pegar pena de morte”; 24/4 (4ª feira): “Atentado em Boston – Guerras (no Afeganistão e no Iraque) teriam motivado o ataque”; 25/4 (5ª feira): “Atentado em Boston – Suspeitos tiveram subsídios nos EUA”; 26/4 (6ª feira): “Terror em Boston: Polícia atirou em suspeito desarmado”.
À parte os dois editoriais – “Terror parece ter vindo para ficar” (17/4) e “Enfrentando a banalidade do mal” (23/4) – , o primeiro alertando o Brasil que vai sediar grandes eventos e o segundo instando os EUA a não recuarem na ampliação da lei de imigração, a seção “Opinião” trouxe a público a preocupação manifesta do jornalista e analista político Rasheed Abou-alsamh (“Torcendo para que não seja muçulmano”, em 19/4). O time fixo de colunistas também não se furtou em produzir textos sobre o terrível evento: Veríssimo (“Imagens” e “Verniz”, em 18 e 25/4); Luiz Garcia (“Maluco solitário?”, 19/4); Zuenir Ventura (“Da favela para Boston”, 20/4); João Ubaldo Ribeiro (“Medo e Controle”) e Dorrit Harazim (“O medo do outro”), em 21/4.
Nos EUA, brasileiros opinam
O atentado ocorreu em 15 de abril, feriado anual em Boston, quando a cidade comemora o “Dia dos Patriotas” e promove a maratona que atrai atletas de todo o mundo, inclusive do Brasil. Essa particularidade também foi destacada por O Globo na primeira página, em 16/4: “Brasileiros perto da tragédia – Cento e trinta e um brasileiros estavam entre os 25 mil participantes da Maratona de Boston…”. Note-se que a presença de brasileiros na condição de turistas ou de moradores da cidade foi uma tônica sempre presente e bastante explorada pelas reportagens e entrevistas levadas a efeito pelos correspondentes do jornal e nos noticiários televisivos da rede. A decisão de privilegiar os brasileiros nos EUA nas incontáveis entrevistas sobre o atentado, porém, não correspondeu a uma ação similar no Brasil em relação aos seus leitores.
Custa crer que dentre as mais de 250 cartas recebidas em média diariamente pelo jornalnenhuma abordasse o atentado em Boston. Se existiu algum tipo de cerceamento com base em um zelo prepotente de chamar a si, imprensa, a função de censor, três motivos logo saltam à vista: a proximidade de megaeventos como a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da Juventude, em junho e julho; a origem e a fé dos suspeitos; e a reforma da lei da imigração nos EUA. Evitar comentários por parte dos leitores à qualidade de nosso sistema de segurança (no Rio já existe um bordão: Imagine na Copa?), às possíveis ligações de ações terroristas ao radicalismo islâmico ou aos milhares de imigrantes de hábitos e valores distintos aos nossos, favorecendo a uma suposta xenofobia, pode ser uma motivação que se sustente à medida que se acredite que o espaço do leitor tem assumida importância e repercussão. O silêncio forçado estaria, dessa forma, a serviço de uma falsa alienação que, contudo, desmerece e agride a inteligência e a percepção política do público leitor.
Afinal, afastar o leitor de opinar sobre um assunto que afeta diretamente a sociedade em sua integridade física e que faz parte da pauta da mídia mundial e da agenda de preocupações dos governos não condiz com a saudável prática democrática da liberdade de expressão. Inspira e incentiva a produção de conjeturas e suposições muitas vezes mirabolantes e aquém da verdade. Por isso seria de bom tom O Globo admitir publicamente o marco regulatório do leitor que já vem sido exercido internamente pelo jornal, e num rasgo de coragem e honestidade trazer à luz os temas e os personagens indisponíveis aos comentários e argumentação dos leitores. A esses, diferente da mulher de César que precisa parecer honesta, lhe bastam unicamente o jornal se manter honesto e claro em suas proposições. A despeito da crescente multidão de cidadãos que continuadamente manifestam sua desconfiança e descrença na independência e honestidade dos grandes impérios da mídia no que diz respeito ao cumprimento de seu compromisso ético com o leitor, ainda o elo essencial de sustentação moral dos meios de comunicação.
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Sheila Sacks é jornalista, Rio de Janeiro, RJ