A revista Época reinventou o conceito de notícia em sua edição de 22 de abril de 2013: “E se fosse na Copa?”, indaga a manchete da publicação, sob a cartola em vermelho “Terror na maratona de Boston”.
Mais que um exercício de futurologia ou mera abstração de pitonisa aposentada, a revista da Editora Globo parece adotar o conceito de notícia adaptado de outro saber clássico da profissão pela jornalista Júnia Nogueira de Sá (ex-ombudsman da Folha de S.Paulo) que escreveu:
Se um cachorro morde um homem, isso não é notícia. Se o homem morde o cachorro, também não é notícia. Se o homem estivesse pagando ao cachorro por seus favores sexuais, aí sim seria notícia. Mas não seria uma notícia de primeira página. Para ser manchete, o cachorro teria de ser menor de idade e o homem deveria ter um cargo importante no governo.
No “abre” da matéria que supostamente sustentaria a indagação de capa, um longo e doloroso “nariz de cera”, como é chamado o lide desprovido de informação, baseado no palavrório desconexo, o popular “enrolation”, a começar pela genial definição: “O que diferencia o terrorismo do simples homicídio está no nome. Seu objetivo é aterrorizar. Nos os mortos (sic), cujas vidas são interrompidas sem que eles saibam o motivo”. A reportagem no miolo aparece sob o título “Pode acontecer aqui?”, aprofundando a especulação sobre o território da não-notícia, ou seja, um mix de relato inexistente, acrescido de análise e interpretação sobre o futuro – que pode abrigar um sem número de eventos, inclusive o fim do mundo.
Referência basilar
Como o foco é bater na tecla de que o governo Dilma Rousseff estaria despreparado para um ato terrorista nas Copas das Confederações e no Mundial de futebol, passa a valer literalmente tudo. O texto pergunta e responde, ato contínuo: “O Brasil pode ser escolhido por algum grupo armado como palco de um ataque? Sim”. E na sequência emplaca outra pergunta aos próprios repórteres que assinam a antirreportagem: “O país pode garantir que um atentado, caso planejado, não aconteça?” A pergunta, mera retórica, a rigor, tem óbvia resposta mesmo no país mais desenvolvido, tecnológica e militarmente do planeta, os Estados Unidos, que foram vítimas de um novo atentado, o primeiro depois dos trágicos (e nunca explicados) acontecimentos de 11 de setembro de 2001, em Nova York.
A colunista Maureen Dowd, do jornal The New York Times, analisa o trabalho da mídia nos trágicos acontecimentos recentes e afirma categórica: “A cobertura em Boston foi um tsunami de informação inútil e desconexa” (O Estado de S.Paulo, 26/4/2013, p. A10). Para Dowd, “aqueles momentos de terror encontraram o ecossistema da informação num estado estranho e instável”. Para o jornalista James Gleick, ouvido por Dowd, a cobertura ao vivo das emissoras de rádio e TV se mostrou inócua e, no limite, falida:
Na perseguição em Boston, jamais me ocorreu ligar a TV. A tela que eu precisava era do meu iPhone A internet é desordenada, pontilhista, ruidosa e erra com frequência. Mas se você tem uma necessidade visceral da notícia instantânea, a TV não consegue competir com ela. Os repórteres informando em tempo real na TV são um contrassenso: você não consegue coletar a notícia e apresentá-la ao mesmo tempo.
Ao contrário desses veículos eletrônicos que são tensionados pelo “tsunami de informação inútil e desconexa”, uma revista semanal como Época deveria primar pela qualidade, consistência e equilíbrio de suas reportagens. Especular e fazer ilações sobre o futuro é irrelevante e inútil, do ponto de vista do interesse público. Há clara distância entre esse tipo de “jornalismo” e a boa onda de conhecimento e esclarecimento que a instituição imprensa deve à sociedade, como sua missão-mor.
O jornalista e pesquisador Victor Gentilli observa que há “uma relação irrevogável entre jornalismo e esclarecimento”. E faz um apontamento fundamental:
O homem emancipado só pode tomar suas decisões e participar das escolhas política se devidamente esclarecido. E, se, nas sociedades contemporâneas, quem produz esse esclarecimento é o jornalismo, esse modelo será a referência fundamental sobre a qual se assentarão as atividades de crítica de mídia.
Para a história
A despeito de ausência absoluta de atentados terroristas por organizações tipificadas como tal pelas forças de segurança aqui e alhures, a reportagem de Época (edição de 22/4/2013) segue ponteando velha “canção”, como arauto das oposições ao atual governo federal: “Muitas coisas (quais?) nos preparativos da Copa como da Olimpíada, já não deram certo – de obras atrasadas (outra vez sem citar quais?) e projetos cancelados (o leitor não fica sabendo quais?). A diferença, quando o tema é segurança, é que essa possibilidade não existe. Se algo der errado, o custo pode ser a perda de vidas – e a propagação do medo”, vaticina grave.
Como uma recomendação de relatório de consultoria especializada, e supostamente amparado em fatos concretos, a reportagem termina patética, clamando: “O Brasil precisa fazer de tudo para garantir a vitória do esporte e da celebração sobre o terrorismo”.
A prática do “jornalismo de ilações e invenções”, não fundamentado em fatos, mas em especulações, tem sido objeto de crítica qualificada nos observatórios de mídia brasileiros. Ou como analisa Renato Rovai: “Essa modalidade de jornalismo vem sendo realizada por setores da mídia tradicional comercial brasileira. É um tipo de jornalismo que não exige jornalismo. Bastam suspeitas e alguns fatos que se encadeiem. E, claro, uma tese a ser defendida, por mais absurda que seja”. Os repórteres de Época podem entrar para a história do jornalismo mundial ao inventar a notícia na qual o “se” acabou virando manchete – e reportagem de capa.
******
Samuel Lima é docente da FAC/UnB, professor-visitante na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS