Cada vez que retorno a Madri ou a Lima depois de vários meses, encontro na minha casa um espetáculo deprimente: uma pirâmide de livros, pacotes, cartas, e-mails, telegramas e recados que jamais conseguirei ler totalmente e aos quais jamais conseguirei responder.
Motivo pelo qual, durante muitos dias, experimentarei a má consciência de ter ficado mal com muita gente que esperava uma resposta, uma opinião, às vezes uma simples assinatura.
Nos anos 70, quando comecei a receber cartas e livros, eu os lia com cuidado e respondia a todos esses correspondentes espontâneos com missivas que, às vezes, eu levava horas para redigir. Um dia, descobri que, se quisesse estar em dia com a correspondência, teria de deixar de escrever e até de ler.
Desde essa época, já quase não respondo as cartas e só consigo ler uma ínfima parte dos livros que recebo. Sei que vou ficando mal com muita gente e ganhando inimigos por toda parte, mas não tenho nenhuma alternativa.
Mas, vez por outra, mexendo na pirâmide e folheando livros pelos quais não agradecerei, tenho uma surpresa estimulante, como aconteceu há duas semanas, ao chegar de Madri. Nos meus seis meses de ausência, haviam-se acumulado mais de cem livros. Lia os títulos, a contracapa, ia ordenando-os em pilhas e esquecendo-os, quando, de repente, num índice, me dei conta de que um dos capítulos daquele volume era dedicado a um humanista que admiro: Pedro Henríquez Ureña.
Tributo ao umbigo
Comecei a ler esta fascinante retrospectiva da vida do ilustre erudito dominicano, desde sua morte súbita no trem que o levava de Buenos Aires a La Plata para dar aula no modesto colégio no qual ganhava a vida, e não consegui parar de ler até a última página do livro. Sua autora, Leila Guerriero, é uma jornalista argentina e o livro, que reúne uns 20 trabalhos seus – todos publicados em jornais e revistas com a exceção do que reconstitui com soberba eficácia a vida de Roberto Arit, que é inédito – intitula-se Plano Americano, e foi editado no Chile, pela Universidade Diego Portales.
Temo que esta edição tenha uma circulação limitada e não chegue aos muitos leitores que o deveriam ler, pois se trata de uma coleção de textos que, além do mérito de cada um deles, mostra de maneira fidedigna que o jornalismo pode ser também uma das belas artes e produzir obras de grande valor, sem renunciar por nada à sua obrigação primordial, que é informar.
Cada um destes perfis ou retratos de músicos, escritores, fotógrafos, cineastas, pintores, cantores, é um objeto precioso, armado e escrito com a persuasão, originalidade e elegância de um conto ou um poema perfeitamente acabados. No nosso mundo, o jornalismo costuma ser o reino da espontaneidade e da imprecisão, mas o jornalismo que Leila Guerriero pratica é o dos melhores redatores da revista New Yorker, para estabelecer um nível de excelência comparável: algo que implica trabalho rigoroso, pesquisa exaustiva e um estilo de precisão matemática.
Antes de defrontar-se com seus entrevistados (vivos ou mortos), ela leu, viu ou ouviu o que eles fizeram, documentou-se com rigor sobre suas vidas e suas obras, consultando parentes, amigos, editores ou críticos, lendo toda a documentação possível sobre seu ambiente familiar, social e profissional. Entretanto, seus ensaios não revelam esse trabalho de preparação tão rico; ao contrário, são leves e amenos, fluem com transparência e naturalidade, embora, sob esta superfície leve e ágil que prende a atenção desde as primeiras linhas, seja possível perceber uma segurança e seriedade que lhes confere uma poderosa consistência.
Os perfis de Henríquez Ureña, de Arlt, de Idea Vilariño, de Nicanor Parra, do crítico de cinema Alsina Thevenet, da fotógrafa argentina Sara Facio, de Ricardo Piglia, Juan José Millás e todos os demais, são uma verdadeira proeza narrativa, pela proximidade que conseguem, introduzindo o leitor na intimidade de todos eles, na beleza ou no caos em que vivem ou viveram, nos objetos dos quais se rodearam, seus pais, mulheres ou maridos, ou filhos, e em sua maneira de trabalhar, em seus sucessos e fracassos, em suas grandezas e mesquinhezas.
Leila Guerriero não interfere jamais, nunca usa seus personagens para promover-se, trabalha com aquela invisibilidade que Flaubert exigia dos verdadeiros criadores (que, como Deus, “devem estar em todas as partes, mas visíveis em nenhuma”).
Estas figuras jamais alcançariam a densidade que têm, o fascínio que emana delas, se a autora não escrevesse com tanta desenvoltura e exatidão, se não dissesse a respeito delas coisas tão inteligentes e não as dissesse de maneira tão discreta e elegante.
A estrutura de cada um destes perfis não respeita a cronologia; o tempo transcorre neles quase sempre como um espaço no qual o relato avança, retrocede, salta continuamente do futuro para o passado e o presente, para ir criando uma perspectiva poliédrica destas pessoas, até oferecer delas uma impressão de totalidade, de síntese que aprisiona tudo o que há ou houve nelas de substancial. O resultado é sempre positivo; todos os entrevistados terminam por despertar a simpatia, às vezes a admiração, às vezes a ternura e quase sempre a solidariedade do leitor.
Porque outro dos atributos de Leila Guerriero, raro entre seus colegas contemporâneos, não é tão literário nem jornalístico, mas moral: o respeito com o qual ela se aproxima de cada um de seus personagens, seus esforços para chegar a entender o que são e o que fazem sem que seu julgamento seja distorcido pelos preconceitos e os clichês, o mesmo tratamento respeitoso e neutro que dá às figuras consagradas e aos artistas ou escritores de significado menor ou ainda principiantes.
Neste sentido, encontra-se nos antípodas dos celebrados jornalistas americanos do “novo jornalismo” e seus desplantes, do exibicionismo que alardeiam entrevistando estrelas para esmiuçá-las e erigir sobre seus escombros estátuas à glória de si mesmos, à sua picardia ou inteligência (na verdade, à sua egolatria e desonestidade).
Palavras e silêncios
Nenhuma das entrevistas e perfis do Plano Americano se permite estas licenças abusivas e vaidosas do jornalista-espetáculo; todas elas revelam, além do talento de sua autora em rastrear as fontes mais íntimas da vocação e criatividade dos autores, uma vontade de jogar limpo, de objetividade e autenticidade, o que dota seus textos de uma grande força persuasiva: nós, os leitores, acreditamos em tudo o que ela diz.
Outro dos melhores achados de sua técnica narrativa é a eficácia das citações. Sejam elas frases tiradas de livros ou artigos, ou ditas pelos entrevistados, aparecem sempre como relâmpagos para iluminar um rasgo psicológico ou revelar uma mania, uma obsessão, um segredo recôndito que explica certo desvio existencial ou motivo recorrente, algum detalhe que de imediato esclarece algo que, até aquele momento, se anunciava de maneira informe e sub-reptícia.
Nos anos 50, Truman Capote, um mestre da publicidade, lançou a ideia do romance de não ficção, do romance-reportagem, em que baseou A Sangue Frio, seu minucioso testemunho sobre um crime cometido em uma aldeia americana.
Lendo este livro de Leila Guerriero lembrei muito da tese de Truman Capote, pois me parece que esta jornalista argentina torna realidade, com mais maestria ainda do que o escritor americano, a ideia de que os recursos e as técnicas do romance podem ser utilizados para enriquecer uma reportagem ou um trabalho de investigação.
Minha impressão é que nos casos de Truman Capote, Norman Mailer, Gay Talese ou Tom Wolfe, o literário chegava a dominar de tal maneira suas obras supostamente jornalísticas, que elas passavam a ser mais ficção do que descrição de fatos reais, que o predomínio da forma no que escreviam chegou a desvirtuar seu caráter informativo em relação ao que era criação.
Não é o caso de Leila Guerriero. Seus perfis e crônicas empregam técnicas que são as dos melhores romancistas. Mas o seu método de estruturação dos textos, utilizando diferentes pontos de vista e jogando com o tempo, e também dando à linguagem uma importância primordial – tanto na escolha das palavras quanto em seus silêncios –, jamais chegam a prevalecer sobre a vontade informativa, estão sempre a serviço desta, sem permitir que a forma deixe de ser funcional e acabe transcendendo aquela subordinação à realidade objetiva, que é o domínio exclusivo e excludente do jornalismo.
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Mario Vargas Llosa é escritor e Nobel de literatura