Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo patrocinado

TV ligada, concentração, vai começar mais um Horizons, programa de prestígio da BBC internacional. É uma série sobre novas fronteiras no mundo dos negócios. Quando acaba o primeiro bloco, entra a propaganda de uma multinacional de química. É um comercial diferente. Longo, dois minutos, com a mesma linguagem visual e o mesmo tema do programa. É como se o Horizons e a propaganda formassem um todo sem costuras.

Vejo uma série de reportagens da revista Vice, publicação de vanguarda que também tem braços muito fortes na internet e um programa no canal a cabo HBO. O tema são os trailers que vendem comida de rua, os chamados food trucks. Os menus variam, mas todas as histórias têm um laço comum: várias menções a uma conhecida marca de maionese. Não é o merchandising da ficção, que vemos em novelas, por exemplo. As alusões à maionese estão incorporadas à narrativa jornalística.

Agora, internet. Olho a homepage do site BuzzFeed, merecidamente reconhecido como bíblia dos modernos. Em meio às notícias curiosas e boas sacadas de pauta de sempre, uma reportagem parece deslocada. Ela faz muitos elogios a um antigo serviço de mensagens instantâneas, que já foi dominante, mas hoje anda esquecido. Não era um anúncio – era uma reportagem entremeada de propaganda.

O discurso é só discurso

Os três exemplos fazem parte de uma nova tendência, vamos chamar assim, em alguns meios de comunicação. É o chamado branded content. Conteúdo patrocinado, na falta de tradução melhor. No mundo estritamente publicitário, não chega a ser uma supernovidade. O dado novo é que, agora, está chegando ao jornalismo tradicional.

E que chegada! Esta semana, a agência Bloomberg anunciou que ninguém menos que o New York Times estuda aderir ao modelo. O sacrossanto NYT adotar o “jornalismo patrocinado” equivale ao ateu militante Richard Dawkins pedir perdão ao papa e receber a hóstia das mãos do próprio Francisco; ou Fidel Castro, aos prantos, depositar um ramalhete de cravos brancos nos túmulos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. É uma atitude extrema: o jornal mais prestigioso do mundo busca novos meios de viabilizar sua operação online.

Como se sabe, a migração de leitores do papel para a web foi brutal, principalmente nos países desenvolvidos. Mas a essa fuga não se seguiu um grande aumento de publicidade na internet. Ou seja: os leitores zarparam em massa para a rede; os anunciantes, bem menos. Para complicar, a economia da rede segue um modelo cada vez mais concentrador. Segundo um livro recém-lançado, Who Owns the Future (A Quem Pertence o Futuro), do visionário Jaron Lanier, o discurso democrático e libertário dos gurus da internet é só isso: discurso.

A última fronteira

Segundo a análise prodigiosa de Lanier, a web é hoje terreno de uns poucos conglomerados, como Google e Facebook, que concentram ferozmente o bolo publicitário online. Donos de servidores computacionais poderosos, que só megacorporações são capazes de manter, os gigantes da web atraem anunciantes porque sabem tudo sobre seus usuários. Os anúncios são perfeitamente direcionados. Sites “generalistas”, como o do venerando New York Times, ficam em má situação.

Assim, produtores de jornalismo de qualidade vivem um pesadelo porque lá atrás, quando a internet foi concebida, a palavra de ordem era que a “informação deve ser grátis” (ou livre, free). Resta buscar receita na publicidade. Mas os anunciantes só querem saber dos já citados Google e Facebook. O Times implantou há algum tempo, com relativo sucesso, o chamado “modelo poroso”, em que, a partir de um certo número de matérias, começa a cobrar do usuário. Trouxe alívio, mas não resolveu. Fala agora em aceitar propaganda incorporada a algumas reportagens.

É que o já fazem, entre outros, a BBC internacional (a britânica não tem comerciais), a modernex revista Vice e o mais modernex ainda BuzzFeed. Ironicamente, foi o sucesso do BuzzFeed que inspirou o New York Times a entrar nessa (quem diria: um site tão jovem apontando o caminho para uma instituição da “velha mídia”).

A separação entre interesses comerciais e princípios editoriais é a última fronteira do jornalismo de qualidade. Não se sabe o que existe do outro lado. Talvez sejam tempos novos e radiosos. Talvez seja um abismo.

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Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo