Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ele não te prometeu um mar de rosas

Flavia Lima. (Foto: Reprodução/Folha de S.Paulo)

No final de fevereiro, alguns dos principais jornais do país divulgaram em suas páginas um informe publicitário com o título “Manifesto pela vida”, de autoria do grupo autointitulado Médicos pela Vida, defendendo o chamado “tratamento precoce” para a Covid-19, usando medicamentos ineficazes contra a doença causada pelo novo coronavírus. No dia 28 do mesmo mês, a ombudsman da Folha de S.Paulo, Flavia Lima, dedicou sua coluna pública ao tópico e criticou a atitude.

Foi uma crítica condenatória e firme, a meu ver, mas alguns viram no texto resignação ou acharam a postura suave. Mesmo sem concordar, quero trazer alguns elementos para reflexão. Primeiramente, vamos recordar o papel do ombudsman. Na Folha, o cargo representa os leitores perante à redação. Recebe reclamação destes e repassa aos jornalistas. Faz uma crítica interna diária do jornal e, aos domingos, realiza uma crítica pública. O tema da coluna é de livre escolha do ombudsman e, por contrato, não pode ser censurada. A ombudsman pode escolher um tema específico, focar no próprio jornal ou ainda sobre a mídia de modo geral.

A coluna de ombudsman da Folha costuma ter a cara de quem ocupa o cargo. Flavia Lima é a 13ª profissional a assumir a função na Folha, a sexta mulher e primeira negra, como ela mesma lembrou em coluna. Desde então, assuntos sobre diversidade estão mais presentes, não só sobre racismo, mas também sobre mulheres, crianças, jovens e cidadãos longe dos grandes centros. Flavia vem trazendo elementos muito importantes para o jornalismo hoje. Sua crítica não tem tom militante (e não tem nada de errado nisso. Assim como não há problemas com a militância para a diversidade), mas sim embasada em critérios jornalísticos. Ela mostrou que a Folha, em seus 100 anos recém completados, foi feito por e para a elite. Mas há um grande número de potenciais leitores e assinantes – da periferia, por exemplo – que o veículo pode estar perdendo porque estas pessoas não se veem no jornal.

Mencionamos o trabalho do ombudsman na Folha. No Brasil, infelizmente, só temos mais um exemplo ainda atuante, no jornal O Povo, do Ceará. Suas características são semelhantes. Apesar de o número de ombudsmans de imprensa não ter sido grande nesses mais de 30 anos, desde sua estreia na Folha em 1989, suas características variaram de veículo para veículo. Houve ombudsmans não conhecidos pelo público, atuando internamente. Houve críticos somente com coluna pública, mas que não avaliavam edições diariamente. Houve profissionais que eram das próprias redações, outros que nunca pertenceram aos quadros dos jornais. Muitos eram jornalistas, mas houve igualmente docentes, professores de jornalismo e profissionais de outras áreas.

Mas uma característica era praticamente unânime entre todos, inclusive na Folha: ombudsman não tem função executiva. Num país sem longa cultura democrática, como o Brasil, é difícil assimilar tal conceito. Não é raro comentários do tipo: “para que ombudsman se ele não manda em nada?”. “O ombudsman não importa. É enfeite, serve apenas para a Folha ficar bem com os leitores”, e coisas do tipo.

Ombudsman é uma palavra sueca e naquele país escandinavo nem tudo são flores, mas o debate democrático está enraizado e é culturalmente valorizado. Aqui, parece que apenas fazemos o que é certo por força da lei ou constrangimento. Sabia que existe um Código de Ética do Jornalista? Sabia que sua punição máxima é a advertência? O que deveríamos fazer, então? Extinguir o código? Uma profissão ou cidadãos não deveriam se guiar por uma ética?

E por falar em grupo de médicos, estes deveriam abdicar do juramento de Hipócrates? Que é, afinal, um termo de conduta ética? Bem, vê-se que alguns profissionais já não seguem tal conduta, que, entre outros, afirma que o médico não deve oferecer tratamento que cause mal ao paciente.

Não obstante, o Conselho Federal de Medicina ainda não proibiu os médicos de prescreverem medicamentos ineficazes e, pior, que podem causar danos. Por quê? Como explicou o cardiologista Bruno Caramelli, professor e pesquisador na Universidade de São Paulo (USP), no podcast da Folha, Café da Manhã, de 21 de abril, o motivo é dinheiro, incentivo das farmacêuticas, prestígio com os pacientes. Por que prestígio? Porque quando não causa dano, a droga é ineficaz. Os pacientes tendem a se recuperar sem medicamento algum, porém, inclinam-se a pensar que a melhora foi causada pelo remédio prescrito pelo médico.

Jornalismo e democracia

Há autores que veem jornalismo e democracia como algo indissociável. Outros, como coisas totalmente distintas. E há ainda quem defenda que o jornalismo deve servir à democracia. Este último, com adaptações, claro, é o mote de muitos jornais ditos ocidentais. Há quem prefira ver o jornalismo, atividade intelectual, separado da mídia, plataforma. Porém, jornalismo não é literatura feita à pressas, não é ficção, não é feito de maneira solitária e não necessita somente de pena e papel, papel e máquina ou somente tablet. Até onde se soube, precisou de suporte físico. Ainda que venha a tornar-se somente um sopro numa nuvem de dados, certamente será distinto de outras atividades textuais.

Pensar atividades separadas de um suporte não é ruim. Uma parcela considerável de médicos e pesquisadores da área defendem que a medicina não é sinônimo de hospital. Esta é a filosofia por trás dos programas de saúde da família. Medicina deveria ser sobre a promoção da saúde e não um ambiente onde se tratam doenças. Há que se considerar, contudo, a enorme influência que as instituições, da comunicação ou da saúde, têm em suas respectivas áreas.

Os veículos, enquanto empresas, podem muito bem gostar da democracia, afinal usufruem muito bem das benesses de uma democracia liberal. Mas quando entram questões financeiras, aí pode ser que códigos e juramentos não funcionem. Teríamos que tentar mudar a mentalidade para que o jornalismo sirva à democracia ou fazer com que este a sirva pela força da lei?

“Tudo” o que a ombudsman pode fazer é apontar o erro publicamente, provocar a reflexão e esperar que o jornal onde trabalha não volte a repeti-lo. Para quem enxerga o copo meio vazio em vez de meio cheio, leia-se: “Somente” o que o ombudsman pode fazer é apontar a falha.

Quero deixar claro, no entanto, que eu entendo as críticas. Não estou aqui para ser a representante dos ombudsmans no tribunal dos leitores ou do jornalismo. Neste mundo com tantos fazendo o eticamente condenável, temos sim vontade de mandar a moral às favas e bater de frente. Com ou sem ombudsman, a atitude da Folha e demais jornais em publicar a peça é condenável e mancha suas reputações, quer estas admitam ou não.

Mal comparando, o ombudsman seria o profissional do call center para o qual você se queixa sobre o serviço ou produto. Ele irá repassar a reclamação e acionar o processo para que o problema chegue ao setor responsável e seja solucionado. Como não sabemos quem é o gerente, nossa vontade é xingar o atendente. Ou a ombudsman.

Porém, o ombudsman não é somente ouvidor. Ele é também crítico. Defende os preceitos jornalísticos e condutas éticas. Está ali para promover a crítica, que, no fundo, deve impulsionar reflexão e deliberação. Se o jornalismo não entrega um bom “produto” ou conduta, é porque, historicamente e nos dias atuais, mais do que nunca, ainda não sabe se seu papel é empresa ou prestador de serviço público. Justamente o que estava por trás da crítica da ombudsman nessa questão. Informação versus setor comercial.

A antecessora de Flavia Lima, Paula Cesarino Costa, em sua coluna de despedida como ombudsman, em abril de 2019, escreveu: “O jornal precisa ampliar a transparência, tanto em relação às suas decisões e aos seus erros quanto em relação à sua política corporativa e aos interesses específicos no ambiente de negócio. A independência do jornal é razão essencial para sua sobrevivência. Na busca de recursos publicitários cada vez mais escassos, a linha de separação entre os interesses da Redação e os do departamento comercial não pode ser ultrapassada”. Quiçá decorrente de algumas experiências de então, ou talvez antevendo estes mesmos problemas que vimos mais claramente agora, dois anos depois.

Se o jornalismo, como ele prega, tivesse escolhido a verdade e a democracia, esta questão nem estaria na mesa da ombudsman. Mas o jornalismo não te prometeu um mar de rosas. Ombudsman sem poder executivo, tampouco. A crítica, no entanto, pode ser um caminho para chegar lá.

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Juliana Rosas é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisadora do objETHOS.