Passado o delírio olímpico nacional, repetido a cada quatro anos e fruto de um jornalismo comercial-ufanista, ‘caímos na real’ do período pré-eleições municipais e, portanto, no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE), no rádio e na televisão (que de gratuito só tem o nome).
Viver em Brasília nesses períodos confirma o quanto nossa capital está, em muitos aspectos, isolada do resto do país.
O Distrito Federal já é a quarta região urbana de maior concentração populacional do Brasil: 2,5 milhões de habitantes. Se for acrescida a população do chamado ‘entorno’ – que inclui municípios dos estados de Goiás e Minas Gerais – teremos, certamente, mais de 3 milhões de habitantes (o ‘entorno’ é uma das regiões mais violentas do país; somente nos seis primeiros meses deste ano, 240 pessoas foram assassinadas, apesar da presença da Força Nacional de Segurança). Até aí, somos iguais às outras regiões.
O que diferencia o DF?
A diferença está exatamente na política. Ao contrário do que imagina a maioria dos outros 187 milhões de brasileiros, a vida do brasiliense não gira em torno da política do Congresso Nacional, dos ministérios, do Palácio do Planalto. O habitante do Distrito Federal vive distante, inclusive, da disputa político-partidária que o resto do país experimenta a cada quatro anos nos municípios.
Até 1988, o brasiliense não escolhia os seus governantes. Desde então escolhe o governador, deputados distritais e federais e senadores. Não existe aqui a experiência das eleições municipais e, portanto, não estamos assistindo/ouvindo o HGPE.
Essa deveria ser uma excelente oportunidade para a mídia local pautar as nossas diferenças. Por que não temos eleições municipais? O que diferencia o Distrito Federal das outras unidades da federação? Como funciona a representação política nas sedes das capitais federais de outros países? Como são escolhidos os ‘administradores’ das diferentes regiões do Distrito Federal? Quais grupos políticos entram nessa disputa? O sistema atual é mais democrático do que a escolha eleitoral?
Pesquisas diferentes, resultados diferentes
Como a mídia local não promove este debate, a centralizada mídia nacional nos coloca – queiramos ou não – em posição privilegiada para observar as nossas próprias diferenças. É comum, por exemplo, nas chamadas de TV para os programas transmitidos em rede do Rio ou de São Paulo – a maioria – ouvirmos: ‘Até daqui a pouco, logo depois do HGPE’. Ou: ‘A seguir, o HGPE, exceto para Brasília, que assistirá ao programa X’.
É também interessante observar de longe como a mídia impressa local, que finge o ano inteiro ser nacional, revela suas disfarçadas posições político-partidárias e os candidatos que está apoiando. Para isso, nada melhor do que a divulgação de resultados de pesquisas eleitorais. Um exemplo do sábado (30/8):
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Folha de S.Paulo – Manchete de primeira página: ‘Marta lidera; Alckmin pára de cair’. Subtítulo: ‘Em nova pesquisa Datafolha, Kassab oscila dois pontos para cima e tem queda no seu índice de rejeição’. Título de matéria interna: ‘Marta lidera, Alckmin pára de cair e Kassab mantém alta’**
O Estado de S. Paulo – Manchete de primeira página: ‘Alckmin cai mais e Kassab sobe em SP, aponta o Ibope’. Subtítulo: ‘Marta oscila, mas continua liderando com 39% das intenções de voto’. Título de matéria interna: ‘Alckmin cai, Kassab sobe e reduz em 8 pontos diferença para tucano’.Como se sabe, o leitor de jornal (ou revista) retém, sobretudo, a manchete de primeira página que funciona, inclusive, como pôster nas bancas de jornal. No mesmo dia, esse leitor terá recebido a informação de que ‘Alckmin pára de cair’ (da Folha) e de que ‘Alckmin cai mais’ (do Estadão). Se o leitor prosseguir nas matérias, descobrirá que as pesquisas são diferentes e os resultados também são diferentes: uma é do Datafolha e a outra é do Ibope. Se chegar ao fim das matérias, verá que a disputa final pela prefeitura de São Paulo deverá ser entre Marta e Alckmin, se for leitor da Folha; ou que será entre Marta e Kassab, se for leitor do Estadão.
Credibilidade em jogo
E o que poderá concluir um leitor que leia criticamente os dois jornais? Que as pesquisas eleitorais não são confiáveis ou que os jornais publicam resultados de pesquisas mesmo que sejam conflitantes com outras pesquisas? Ou ainda que as razões para esses resultados conflitantes são omitidas e não explicitadas para entendimento do leitor, ou que interessa aos jornais publicar pesquisas que favoreçam este ou aquele candidato, independente de serem confiáveis?
Os períodos eleitorais constituem-se em oportunidades ímpares para que o leitor/ouvinte/telespectador exercite o seu senso crítico em relação à imparcialidade das coberturas jornalísticas da grande mídia e, portanto, de sua credibilidade. Não envolvido diretamente nas disputas municipais, o eleitor do Distrito Federal que tem acesso à mídia nacional/local – impressa ou eletrônica – fica em posição privilegiada. E, mesmo ausente do grande momento democrático do voto, pode aprender como de fato funciona a cobertura política em período eleitoral. Ou seria assim o ano todo?
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)