Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em 15 anos, TV digital pode custar R$ 287 bilhões ao cidadão

Projeções do relatório final do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre, entregue pelo Centro de Pesquisas e Desenvolvimento em Telecomunicações (CpqD) ao governo federal, aliadas a uma análise do modelo de financiamento da radiodifusão e aos valores médios para acesso à internet no Brasil, revelam que o custo da transição pode causar nova crise no setor de mídia como a ocorrida com os investimentos para implantação das redes de TV a cabo nos anos 90. Para a população, a transição pode custar R$ 287 bilhões ao longo de 15 anos. Gastos iniciais para as emissoras podem chegar a R$ 5,5 bilhões nos primeiros cinco anos. Bolo publicitário é insuficiente para financiar os novos investimentos

A CONTA DA TRANSIÇÃO¹

 

ponto²/ano

total 15 anos

Pacote recepção (URD+antena)

R$ 400,00

R$ 18,68 bilhões

Acesso canal de interatividade

R$ 180,00

R$ 126,09 bilhões³

Financiamento via publicidade

R$ 203,44

R$ 142,5 bilhões³

Implantação do canal de retorno

R$ 140 mil

R$ 0,351 bilhão

   

TOTAL GERAL

 

R$ 287,6 bilhões

¹ Estimativa baseada em valores fixados pelo CPqD cruzados com dados do projeto Inter-Meios e do IBGE;

² Ponto pode significar preço por domicílio, por emissora ou por estação de canal de retorno;

³ Custos sujeitos à variação com base no desempenho das empresas de mídia e telecomunicações e no aumento do número de lares com TV no período de 15 anos

Gastos da população

As estimativas do CPqD apresentadas no documento Modelo de Referência do SBTVD revelam que a população pagará a maior parte da conta da transição do modelo analógico da radiodifusão de sons e imagens para o digital.

Fixando os custos com a compra da unidade receptora-decodificadora (decodificador acoplado ao televisor) e da antena digital em R$ 400, a transição para os brasileiros só com os novos equipamentos seria de R$ 18 bilhões ao longo de 15 anos, que é tempo mínimo previsto para o encerramento das transmissões analógicas. Estes valores aumentam se a opção pelo canal de interatividade também for financiada pela população a uma mensalidade de R$ 15, ou R$ 180 por ano.

Outro custo que faz parte da equação são os R$ 203,44 que cada um dos domicílios brasileiros com aparelho receptor pagou no ano passado para ver televisão, sob a forma de custos de mídia repassados para os preços finais de produtos, serviços e tributos (ver matéria aqui).

Somando tudo isso, e levando-se em consideração a existência de 46,7 milhões de domicílios com TV no Brasil (91% dos lares brasileiros conforme o IBGE), ao longo de 15 anos a transição pode custar ao bolso da população R$ 286 bilhões. Some-se a isso os valores com a aquisição de terminais portáteis e móveis de TV digital, bem como o custo para o acesso sem-fio, e a estimativa ultrapassa a casa dos R$ 300 bilhões.

Gastos das emissoras

Na ponta das emissoras, a maior parte dos investimentos deverá se dar na rede de transmissão e retransmissão. É aqui que se encontra o maior obstáculo para a entrada de novas instituições e mesmo das geradoras educativas e dos canais básicos de utilização gratuita previstos pela lei do cabo (canais comunitários, educativo-culturais, legislativos, universitários). Outro impedimento deverá se dar para muitas prefeituras e câmaras de vereadores do interior do Brasil que hoje bancam a estrutura da retransmissora de uma rede comercial ou estatal no município por falta da presença das mesmas.

Conforme o CPqD, 8% da população brasileira (7% dos domicílios e 24,5% do total de municípios) não está coberta pelos canais de freqüência de caráter primário (as geradoras principais) sendo atendidas pelo poder público e com canal secundário (não protegido de interferências). Os custos de captação da geradora (equipamentos instalados no estúdio) não foram estimados pelo estudo do CPqD.

 

Classe C

(100 w)

Classe B

(1 kW)

Classe A

(5 kW)

Especial

(20 kW)

Total por transmissora (R$)

171.600,00

709.200,00

2.141.500,00

6.700.500,00

Total para transmissora RJ e SP (R$)

2.871.500,00

7.430.500,00

Fonte: Modelo de Referência SBTVD, p. 77, CPqD, 13/2/2006

Quanto aos custos com codificação e multiplexação (transformação do áudio, vídeo e dados em códigos binários e seu ‘empacotamento’ para transmissão), existe uma diferenciação que varia conforme a qualidade da definição de imagem e som bem como o modelo de canalização que for adotado.

Geradora

Preço (R$)

Monoprogramação em definição standard

809.500,00

Multiprogramação três programa em definição standard

886.500,00

Monoprogramação em alta definição

912.500,00

Fonte: Modelo de Referência SBTVD, p. 77, CPqD, 13/2/2006

Com base nestas referências, o CPqD estima em R$ 4,37 bilhões os custos para a transição das emissoras privadas e em R$ 1,25 bilhão para as emissoras públicas. Ou seja, um total de R$ 5,62 bilhões. Em uma das três simulações de modelos econômicos feitas pelo centro de pesquisas para o caso das geradoras, o custo médio anual de implantação para todas as emissoras privadas é de R$ 800 milhões durante cinco anos. Para as emissoras públicas, chega-se a uma média de R$ 215 milhões ao longo de três anos.

Gastos com canal de retorno

Usando como referência a tecnologia de redes sem-fio WiMAX, com um valor por estação fixado em R$ 140 mil, o CPqD estimou em R$ 352,795 milhões os investimentos necessários à implantação de 2.511 pontos de banda larga para se ter uma cobertura nacional de canal de retorno se-fio para os serviços de interatividade do SBTVD. Mais um custo que terá que ser repassado aos usuários em algum momento da transição.

Operador de rede

Todos estes valores caem sensivelmente quando a figura do operador de rede é inserida nas simulações do CPqD. O operador de rede é a empresa de telecomunicações ou até de energia elétrica – pública ou privada – responsável pela construção, gerenciamento e manutenção de uma rede de transmissão que poderia ser usada por uma ou mais emissoras como forma de reduzir os custos e viabilizar a implantação da nova tecnologia. Considerando o operador de rede na conta, o total da transição para as geradoras não passaria de R$ 4 bilhões, sendo que R$ 3,9 bilhões seriam aportados pelo operador de rede. No caso das TVs públicas, a necessidade de investimento cairia de R$ 1,25 bilhão para R$ 4,79 milhões. Apesar dessa informação, o relatório não menciona quanto custaria para as emissoras o aluguel da infra-estrutura da rede deste operador.

Cálculo dos empresários

Para Roberto Wagner, diretor da Rede Record e presidente da Associação Brasileira de Radiodifusão, Tecnologia e Telecomunicações (ABRATEL), não haverá TV digital sem a negociação de um novo modelo de negócios, e, portanto, esse cálculo se antecipa sem sentido. ‘Tanto da parte do governo, que está trabalhando bem esse assunto, fazendo tipo um ‘leilão’, para ver quem dá mais, quanto dos empresários, que não irão se atirar no negócio sem antes amarrar muito bem um modelo novo. Os cálculos podem ser verdadeiros ou não’,considera o executivo. Para fazer a transição, Wagner aposta, entre outros recursos, no financiamento público, através de uma linha de crédito que pode ser oferecida às emissoras pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O empresário defende o padrão japonês para o Brasil e espera diminuir custos através de negociações com produtores estrangeiros de equipamentos. ‘É o negócio do século na área das comunicações’, diz Wagner, acreditando que o assunto estará liquidado em 40 dias e que, ainda este ano, o Brasil terá TV Digital.

Antônio Teles de Carvalho, vice-presidente do Grupo Bandeirantes de Comunicação, afirma que o investimento para as empresas será pouco significativo porque trocarão ‘somente os transmissores e as antenas’, uma vez que os equipamentos internos e de captação já vêm sendo trocados, segundo ele, há bastante tempo. Entretanto, admite que o modelo de negócios atual, baseado no financiamento através da publicidade, está esgotado, e que um novo modelo terá de substituí-lo. ‘A TV Digital abre oportunidades de acesso e interatividade que permitem o fornecimento de serviços e, portanto, novas receitas’, calcula Teles. Sobre as vantagens que a nova tecnologia traz consigo, o diretor da Band aponta o ganho na qualidade de imagem e, do ponto de vista dos negócios, os desdobramentos gerados com a interatividade, ou seja, a venda de produtos (e-commerce) online.

No Brasil, entretanto, a radiodifusão terrestre é considerada um serviço cuja prestação precisa ser aberta (qualquer pessoa pode receber o sinal) e sem custos diretos (diferentemente da TV por assinatura). Qualquer cobrança por serviços adicionais a partir da outorga atual poderia ser considerada uma ilegalidade perante a legislação atual.

Financiamento público?

O assessor especial da Casa Civil da Presidência da República, André Barbosa, garante que o governo prevê financiamento para o processo de digitalização da radiodifusão, mas que esta possibilidade está absolutamente vinculada ao desenvolvimento industrial do país. Ou seja, qualquer que seja o padrão tecnológico escolhido para o Brasil, e as facilidades que o seu país de origem apresente, este terá que prever a incorporação de equipamentos nacionais, ‘senão ele matará a nossa indústria’, argumenta Barbosa.

Para José Roberto Garcez, diretor de jornalismo da Empresa Brasileira de Radiodifusão (Radiobrás), o financiamento para o negócio das televisões é uma das raízes de toda a disputa que existe entre as emissoras comerciais. Ele pondera que todo o processo de troca de tecnologia, de mudança de paradigma, implica em grande custo financeiro. Contudo, avalia, o ganho é ainda maior. ‘Certamente, ao grande aporte de investimento corresponderá um grande retorno financeiro, uma vez que movimenta toda uma cadeia de negócios. Essa não é uma soma simples’, diz Garcez, que acredita que as emissoras comerciais não estão se incomodando muito com as cifras para a implantação da TV Digital porque sabem que o lucro será proporcional. Na opinião do jornalista, qualquer que seja o valor, será muito dinheiro, e as televisões públicas, que dependem de orçamento estatal, correrão sério risco de desaparecer, assim como as comunitárias e as universitárias. ‘Se a gente trabalhar na perspectiva de democratização da comunicação, vai ver que o financiamento público é fundamental para essas emissoras. As comerciais podem buscar em outras fontes’, avalia. Sobre o atual modelo de negócios, Garcez entende que não pode ser transplantado para a TV Digital. ‘Por isso as emissoras estão gritando tanto e não querem a entrada das telecom no negócio’. O diretor de jornalismo da Radiobrás enfatiza que qualquer que seja o modelo tecnológico escolhido, não é possível trabalhar com a perspectiva de obter favores do poder público. ‘Será que temos empresas realmente eficientes para gerir novos negócios?’, indaga Garcez.

Rede pública e única

Por trás da figura aparentemente nova do operador de rede, está um conceito previsto na Lei do Cabo, de 1995, mas ignorado pelas empresas na hora de implantar suas operações: rede pública e rede única. Ou seja, uma mesma infra-estrutura compartilhada por todas as empresas e instituições de forma a evitar construção de redes paralelas nas mesmas localidades (o chamado ‘overbuilding’) e investimentos adicionais desnecessários. Ao desrespeitar esse princípio da Lei do Cabo, as duas principais organizações brasileiras de mídia que entraram no segmento de TV por assinatura (Globo e Abril), investiram US$ 1,7 bilhão para montar as quatro maiores operadoras do País (NET, TVA, Sky, DirecTV). Por conta disso, e de outras incursões no mercado de telefonia e internet, acumularam um endividamento de US$ 3 bilhões, que acabou obrigando-as a praticamente sair do mercado – ou vender o controle acionário das empresas – em menos de 10 anos de atuação e estimular um ‘estado de crise’ para o setor que quase levou o governo federal a distribuir recursos do BNDES na ‘recuperação’ destes grupos.

Conta não fecha

Agora, a história pode se repetir. Porém, encontrando mercados e sistemas de comunicações fragilizados economicamente e defasados em termos tecnológicos uma vez que todas as emissoras de radiodifusão (rádio e TV) terão de desembolsar valores consideráveis se quiserem continuar operando. Considerando que o mercado de televisão fechou 2005 com R$ 9,5 bilhões de faturamento publicitário (principal receita das emissoras de televisão) e que cerca de 70% deste valor é arrecadado pelas cinco emissoras da TV Globo e sua rede de 107 afiliadas – totalizando R$ 6,65 bilhões –, as demais 340 emissoras brasileiras teriam que fazer sua transição disputando entre si apenas R$ 2,85 bilhões do bolo publicitário para manter seus custos fixos e ainda investir nos novos equipamentos digitais. Conta que os anunciantes brasileiros, por meio da Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), já afirmaram que não pretendem pagar.

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Jornalistas, da Redação FNDC