Em artigo intitulado “Jornalismo e Saúde na Era Neoliberal”, o jornalista Bernardo Kucinski (2002) nos apresenta uma interessante reflexão entre a ética jornalística e a da saúde coletiva. Ele cita as campanhas e ações de prevenção a agravos e doenças, que tendem a se concentrar numa perspectiva de custo/benefício que determinada ação irá gerar para uma comunidade. Por exemplo, em uma campanha de prevenção a alguma doença ou de vacinação, o foco está no conjunto da população e não, necessariamente, no bem-estar de cada pessoa, individualmente. Mesmo porque os recursos disponíveis são sempre escassos e os problemas cada vez mais complexos.
Assim, o objetivo é beneficiar um conjunto de pessoas e é por esta razão que normalmente uma vacina é aplicada em um grupo específico de pessoas, aquelas que são mais suscetíveis ao adoecimento ou à transmissão da doença, e não em toda a população. No entanto, não podemos desconsiderar que este é um critério controverso e que nem sempre é compreendido pelo senso comum e, em especial, pelos profissionais do jornalismo, que em sua maioria entendem que se há uma vacina para evitar uma doença a mesma deveria ser aplicada em todas as pessoas.
Outra observação valiosa que ele faz é a de que os profissionais de saúde acreditam que a função básica dos jornalistas seja a de realizar uma operação pedagógica com a população, auxiliando as instituições na tarefa de informar sobre os temas de saúde pública. Entendemos que o jornalismo pode eventualmente exercer tal tarefa; contudo, essa não é a função central da profissão, como Kucinski nos aponta. Há que se ponderar também que algumas campanhas, a princípio consideradas de interesse público, podem trazer em si alguns equívocos de abordagem e até mesmo um caráter ideológico e político e o jornalista, como ser político e crítico que é, percebe esse movimento e precisa ter a liberdade de não colaborar, quando for o caso. Para Kucinski, e concordamos com tal ponto de vista, a função central do jornalismo deveria ser a de ajudar a despertar nas pessoas o espírito crítico e a tomada da consciência sobre seus direitos.
Ao se falar de ética jornalística, é importante citar o código de ética do jornalista, que é a referência para os profissionais . Dos 27 artigos presentes neste código, cinco em especial nos chamam a atenção por falarem sobre interesse público, mas também sobre o direito à privacidade: Art. 1 – O acesso à informação pública é um direito inerente à condição de vida em sociedade, que não pode ser impedido por nenhum tipo de interesse. Art. 3 – A informação divulgada pelos meios de comunicação pública se pautará pela real ocorrência dos fatos e terá por finalidade o interesse social e coletivo. Art. 4 – A apresentação de informações pelas instituições públicas, privadas e particulares, cujas atividades produzam efeito na vida em sociedade, é uma obrigação social. Art. 13 – O jornalista deve evitar a divulgação dos fatos: – Com interesse de favorecimento pessoal ou vantagens econômicas; – De caráter mórbido e contrários aos valores humanos e o Art. 9° – É dever do jornalista:
– Divulgar todos os fatos que sejam de interesse público;
– Lutar pela liberdade de pensamento e expressão;
– Defender o livre exercício da profissão;
– Valorizar, honrar e dignificar a profissão;
– Opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem;
– Combater e denunciar todas as formas de corrupção, em especial quando exercida com o objetivo de controlar a informação;
– Respeitar o direito à privacidade do cidadão;
– Prestigiar as entidades representativas e democráticas da categoria.
Desinformação e alarmismo
Ao analisar esses artigos, dois conceitos são destacados: interesse público e o direito à privacidade. De acordo com Jorge Duarte (2012), os tópicos de utilidade pública ou de interesse público normalmente são aqueles que fazem parte do dia a dia das pessoas. Geralmente eles têm como propósito mobilizar, informar e avisar sobre temas que sejam relevantes para a população. A partir dessa perspectiva, também é importante refletir sobre os conceitos de “público e privado”, que também se relacionam à questão do interesse público. Mediante um entendimento mais apressado, podemos distinguir que aquilo que não é privado, é público. Contudo, esses conceitos são mais complexos que essa definição. Hannah Arendt (1958) apresentava a idéia de que para algo ser público, deveria vir a público, à esfera pública para ser visto e ouvido. No entanto, o pesquisador português João Pissara Esteves (2011) expande este entendimento, ressaltando que com a modernidade, uma nova configuração é estabelecida e esses dois domínios estão cada vez mais fluídos e o sentido de privado ganha uma nova dimensão que perpassa à idéia de liberdade e autonomia da pessoa. Assim, é possível observar que, além serem conceitos que não estão fechados, estão em constante tensão.
Fizemos esse breve percurso teórico para nos aproximarmos da questão que nos motivou a escrever o artigo: em que medida o interesse público deve prevalecer em detrimento ao direito à privacidade do cidadão? Seria possível determinar o que é público e privado em temas de saúde pública? Acredito que essa questão não tenha uma resposta única, mas seguramente nos leva a algumas reflexões. No artigo “Informar sem alarmar”, Meraldo Zisman [https://www.observatoriodaimprensa.com.br/jornalismo-e-saude/informar-sem-alarmar/] comenta que a tarefa de comunicar conteúdos de saúde pública sem alarmar a população costuma ser muito difícil. Ele lembra que basta citar a palavra epidemia para que rapidamente sejam acionados alguns dos maiores medos da humanidade: o medo da morte e do contágio das doenças. Percebemos também, pela experiência diária de lidar com a imprensa, que os assuntos de saúde pública, de forma geral, já despertam bastante atenção da cobertura jornalística, mas quando se trata de epidemias, novas doenças e surtos, essa atenção é elevada à décima potência. É notório que são assuntos que irão impactar diretamente a vida das pessoas e, portanto, não há dúvidas que são temas presentes na esfera pública. Mas, como essa informação é repassada para o público?
Notamos que em grande parte das vezes, talvez pela própria lógica perversa imposta pelas empresas ao trabalho jornalístico, os profissionais não conseguem realizar uma apuração adequada em razão da ausência de tempo suficiente e de recursos. Por outras vezes, constatamos a falta de preparo do profissional para cobrir assuntos que demandam pesquisa prévia e tal necessidade se torna ainda mais vital quando se tratam de doenças pouco conhecidas, como foi o caso da microcefalia, causada pela infecção do Zica vírus. O resultado dessa apuração pouco aprofundada e da baixa capacitação dos profissionais é a desinformação, o alarmismo e até mesmo a exposição da vida privada das pessoas.
Vamos a alguns exemplos: doenças como dengue, a microcefalia causada pelo Zica vírus (lembrando que a microcefalia também pode ser causada por outras infecções), a influenza A H1N1 (popularmente conhecida como gripe suína) e a febre maculosa são assuntos que têm ocupado atualmente os noticiários de todo o país e, em especial, do estado de Minas Gerais e da cidade de Belo Horizonte. Não há dúvidas que são questões de interesse público, afetam a vida das pessoas e sabemos que é na imprensa que a maior parte dos cidadãos encontra as informações necessárias para tomar conhecimento do assunto.
Respeito e bom senso
Dado isso, alguns pontos precisam ser problematizados: conforme Kucinski ressalta, e que também comprovamos também pela experiência, os jornalistas, de forma geral, procuram médicos ou as autoridades de saúde para legitimar uma ideia pré-estabelecida. É o que chamamos no jargão jornalístico de “buscar aspas”. Essa prática tão recorrente não abre muito espaço para alguma opinião que fuja daquilo que o jornalista já estabeleceu previamente como sendo “verdade”. É por essa razão que muitas vezes não notamos as outras “vozes” ou posicionamentos. Mas, o que muitos jornalistas desconhecem é que nas questões epidemiológicas e de saúde coletiva, as “autoridades no assunto” podem ser também os movimentos populares (conselhos de saúde, por exemplo), profissionais de saúde que não sejam médicos, como veterinários, enfermeiros ou biólogos, dentre outros. Em uma abordagem da questão da microcefalia, por exemplo, o que costumamos observar é quase sempre uma cobertura tecnicista, informando do que se trata a doença, quais as consequências do problema e o que a pessoa deve fazer para evitar a contaminação (que seriam as mesmas medidas para prevenir contra a dengue). Aí, normalmente, um médico é entrevistado para falar da doença e “ensinar” o que se deve fazer para não ser contaminado e talvez uma mulher grávida ou que queira engravidar concede um depoimento dizendo de seu medo de gerar uma criança com o problema.
Em uma cobertura jornalística convencional dificilmente o jornalista irá apresentar outras vozes para a questão: qual o posicionamento do movimento feminista a respeito deste problema que afeta diretamente às mulheres, que além de gerarem uma criança com um problema grave de saúde, muitas são abandonadas pelos companheiros . Por qual razão as autoridades não são questionadas sobre a questão do saneamento público? Não se pode desconsiderar que a maior parte dos casos de microcefalia, causadas pelo Zica vírus, são oriundos de regiões mais pobres do país, com baixo ou nenhum tipo de saneamento. Por que é necessário informar o nome, a cidade e demais informações que identificam e localizam uma pessoa ou algum parente que tenha sido vítima da pessoa? Não seria suficiente para informar à população apenas passar os dados básicos, lembrando que muitas vezes essas doenças são estigmatizantes ou que a simples ocorrência delas, pode gerar pânico? É interesse público ou mercadológico expor o sofrimento de uma família que teve alguém vitimado por uma doença?
Essas questões levantadas não têm como objetivo apresentar respostas, mas estimular a refletir sobre os desafios éticos que permeiam o cotidiano dos jornalistas que cobrem a área de saúde. Esses profissionais lidam com vidas, com o medo, com a dor, com a morte e com informações técnicas, muitas vezes de difícil entendimento, que exigem uma preparação melhor qualificada e condições adequadas de trabalho. Sabemos que não há uma receita mágica ou alguma regra rígida para lidar com essas peculiaridades presentes na cobertura em saúde, no entanto, quando uma dúvida ética surgir, um sentimento indispensável deve entrar em cena: a empatia. Colocar-se no lugar do outro é uma medida que não está escrita nos manuais ou nos códigos deontológicos do jornalismo, mas que, além de aproximar os jornalistas da dor ou do sofrimento da outra pessoa, garantem que o respeito e o bom senso irão prevalecer.
Referências consultadas:
https://www.observatoriodaimprensa.com.br/jornalismo-e-saude/informar-sem-alarmar/
http://www.abi.org.br/institucional/legislacao/codigo-de-etica-dos-jornalistas-brasileiros/
http://www.abi.org.br/institucional/legislacao/codigo-de-etica-dos-jornalistas-brasileiros/
CAMPOS, Vivian Tatiene Nunes. Acabar com a dengue é uma “guerra de todos”?: a presença do discurso mobilizador nas campanhas publicitárias de prevenção à dengue da Secretaria de Estado de Saúde de Belo Horizonte.2016.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo e saúde na era neoliberal. Saude soc. [online]. 2002, vol.11, n.1, pp.95-103. ISSN 0104-1290. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902002000100010. Apresentado na Mesa Redonda: Mídia, Saúde e Democracia, em 01/01/01, VII Congresso Paulista de Saúde Pública.
***
Vivian Tatiene Nunes Campos é jornalista, com especialização em Gestão Estratégica da Comunicação, mestre em Comunicação Social e coordenadora do núcleo de jornalismo da assessoria de comunicação da Secretaria de estado de Saúde de Minas Gerais