Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Enfim, a hora de dar voz ao silêncio

Vida de correspondente estrangeiro não deve padecer de monotonia. Se padecer, algo está errado. Ou o correspondente é ruim ou o lugar onde vive, e trabalha, não merece mesmo cobertura especial. No caso de Larry Rohter, até a semana passada representante do New York Times no Brasil e demais países do Mercosul, a monotonia passou longe. Em 2004, ele assinou um artigo que fez trepidar os pilares do Planalto. Sem ter ouvido o ‘sujeito’ da reportagem, Luiz Inácio Lula da Silva, não porque não tentasse, mas porque não foi recebido, escreveu um artigo bombástico a começar pelo título: ‘Hábito de bebericar do presidente vira preocupação nacional’. Leitores americanos tomaram conhecimento de uma prática que, segundo o autor da matéria, estaria comprometendo a capacidade de governar de Mr. Da Silva. ‘Este jornalista não entra… está impedido’, teriam sido as poucas palavras de um Lula decidido a expulsar Rohter do País. Abriu-se um acalorado debate na imprensa brasileira. O Ministério da Justiça chegou a notificar a suspensão do visto temporário, um senador entrou com pedido de habeas-corpus em favor do correspondente, o embaixador brasileiro em Washington teve conversas no jornal americano e, finalmente, a crise foi contornada. Mas as cicatrizes ficaram.


Nesta entrevista exclusiva ao ‘Aliás,’ Rohter repassa a tensão que viveu no Brasil democrático, quando quase foi expulso com base numa lei criada na época da ditadura. Rompe um silêncio de anos: ‘Lá atrás não pude falar nem me defender. É uma norma do NYT. Agora, como já entreguei o posto, posso dizer o que passei.’ Diz, em parte: Larry não está de malas prontas para os EUA, como se noticiou, embora já tenha sido substituído no cargo. Vai ficar no Brasil até o início do ano que vem, terminando o livro que escreve sobre suas duas passagens pelo País (foi correspondente do Washington Post e da Newsweek nos anos 70/80, e voltaria em 1998, a serviço do NYT). Promete contar os bastidores da matéria que o presidente reprovou. O livro já tem título: Arestas Insuspeitadas, expressão que sai da música ‘O Estrangeiro’, de Caetano Veloso.


William Lawrence Rohter, 57 anos, casado com brasileira e pai de dois filhos, nasceu em Chicago. É filho de mãe imigrante da Escócia e pai descendente de russos. Na juventude, trabalhou como carteiro e operário de uma fábrica de lâmpadas. ‘Operava na linha de produção com imigrantes latinos e caribenhos. Ali aprendi o espanhol’, relembra. Já o português foi no Brasil, deliciando-se com a fala sonora dos nordestinos, ‘algo adorável’. Entre os cinco idiomas que domina está o mandarim. Explica-se: além de estudar história da China, na Columbia University, teve uma passagem como correspondente em Pequim, entre a primeira e a segunda estadas no Brasil. Quando finalizar o livro de revelações e mais um outro, seu romance de estréia, a licença que tirou do NYT deve expirar e o ‘polêmico Larry’, como foi chamado, voltará à reportagem. Provavelmente na China, avisa a quem estiver interessado.


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Como se sente ao terminar seu período como correspondente no Brasil?


Larry Rohter – A decisão de fechar o ciclo foi mais minha do que do jornal. Por razões pessoais pedi para sair. Hoje eu me sinto assim: durante oito anos e meio fiquei (faz o gesto de quem fecha um zíper) com o bico calado neste País. Porque o New York Times tem uma norma que todos os correspondentes devem acatar: não fazer nenhum comentário pessoal sobre assuntos internos do país onde atuam. Então, fiquei quieto. Só que setores inescrupulosos da imprensa brasileira se aproveitaram do meu silêncio e passaram a me atacar.


Isso começou quando?


L.R. – No início desse período de oito anos não tive problemas, até porque não havia curiosidade sobre a minha pessoa. Dificuldades começaram a partir da reportagem que fiz sobre hábitos do presidente Lula, hábitos comentados no País. Como eu não podia me defender das reações à matéria, certos jornalistas daqui me trataram como se eu fosse a Geni da música do Chico Buarque: vamos jogar pedra porque ele não pode reagir. Continuei trabalhando, calado. A partir do momento em que entreguei meu cargo ao NYT, tornei-me um profissional desimpedido e as regras mudaram. Estou escrevendo um livro sobre o Brasil, contando bastidores dos momentos polêmicos que vivi e oferecendo minha visão dos fatos. Não vou embora de imediato, como alguns órgãos da imprensa têm noticiado. Vou ficar até terminar o livro, no começo do ano que vem.


Sua experiência brasileira se divide em duas fases: antes e depois da matéria polêmica?


L.R. – Sim e não. Na verdade, minha chegada ao Brasil em 1998 coincidiu com o início do boom da internet. Correspondentes que no passado escreveram sobre o País não foram lidos por brasileiros porque não havia internet. A repercussão que suas matérias suscitavam vinha de segunda ou terceira mão. A partir de 1999, 2000, os brasileiros começaram a ler nos computadores o que se publica sobre o País fora daqui. E, vejam bem, não escrevi esse tempo todo para brasileiros, mas para o público americano, com uma linguagem adequada ao entendimento de lá. Vocês tinham todo o direito e liberdade para acompanhar o que eu estava produzindo, mas talvez não devessem perder de vista que não eram meu público-alvo. Então, os leitores brasileiros passaram a se incomodar com coisas tolas, inofensivas, como quando comparei Caetano Veloso a Bob Marley. Ou quando escrevi que Niterói é para o Rio de Janeiro o que Oakland é para San Francisco. Fiz isso para os americanos entenderem. Com o tempo percebi que as reações eram parte do jogo. E tratei de aceitá-las.


Outros correspondentes estrangeiros, colegas seus, compartilham essa impressão de que a internet os tornou mais visíveis e vulneráveis?


L.R. – Sim. Eu não saberia dizer que tamanho tem meu público brasileiro na internet, mas é muita gente. O leitor daqui, como qualquer outro, tem curiosidade sobre si mesmo: o que estão dizendo de mim lá fora? O que falam do meu País? Isso é natural. O NYT, dos grandes jornais americanos, talvez seja o mais lido na internet.


Acha mesmo que o presidente queria ir às últimas conseqüências?


L.R. – O que eu acho é que, desde o início do caso, o presidente foi mal assessorado. Difícil saber o que de fato aconteceu no Palácio do Planalto naqueles dias, mas tudo indica que as coisas ficaram muito ruins pro meu lado. Só mudaram de curso quando o então senador Sérgio Cabral entrou com um habeas-corpus a meu favor. Ali, e só ali, senti que, num eventual julgamento da questão, o Supremo, inteiro ou em boa parte, ficaria contra o governo. O ministro Márcio Thomaz Bastos (da Justiça) não tinha outra opção a não ser costurar um acordo.


Além da reação do Planalto, sua matéria causou uma longa e estridente questão na imprensa brasileira. Jornalistas sustentam que você afirmou coisas graves sobre o presidente, sem apresentar provas.


L.R. – Mas provar o quê? Eu não sou tira nem médico para provar… Havia um tremendo zunzunzum no meio político. Brizola teve a coragem de afirmar publicamente o que se comentava. E, claro, Brizola não foi minha única fonte. Escrevi refletindo o ambiente: o presidente brasileiro tinha um hábito que o estaria prejudicando no exercício do poder. Isso eu não inventei! Mas setores da imprensa, liderados pelo jornal O Globo, ou melhor, pelas Organizações Globo, resolveram me atacar. Acho que há uma obsessão com o que sai no NYT. Matérias que fiz foram mal interpretadas, mal traduzidas, publicaram-se coisas que nunca disse, fico indignado. Por exemplo, escrever que eu disse que a Garota de Ipanema hoje é gorda? Que absurdo! Era um janeiro em que nada acontecia no Rio, então o jornal criou uma polêmica xenofóbica, baseada em mentiras.


Recapitulando: você fez uma matéria afirmando que o brasileiro tem uma dieta alimentar pobre em nutrientes, mas rica em gorduras e carboidratos, o que estimularia a obesidade na população. E ilustrou a reportagem com fotos de mulheres gordas, numa praia do Rio. Só que elas eram checas, e não brasileiras. Certo?


L.R. – Certo. E o que o Globo fez? Desqualificou meu trabalho, sabendo que eu não faço fotos e nem estava com o fotógrafo quando ele capturou as imagens. O jornal também disse que o NYT publicou cinco fotos da série, quando usou apenas duas. E o nosso ombudsman acusou o erro do fotógrafo. Os critérios da imprensa americana são mais rigorosos que os critérios da imprensa brasileira. [Nota do jornalista Rodolfo Fernandes, diretor de redação de O Globo: ‘ O jornal não tem ‘obsessão’ com o que sai no NYT. Tem respeito por seu padrão de qualidade. O que não impede que o NYT erre. Como no caso do presidente Lula, quando se baseou em fontes desqualificadas. No caso da ‘Garota de Ipanema gorda’, o Globo descobriu que era uma reportagem errada e o ombudsman do NYT pediu desculpas’.]


Então falemos de critérios. Quais são os seus?


L.R. – Ouvir os dois lados sempre. Se possível, ouvir todos os lados da questão. E tentar refletir fielmente idéias ou posições.


Zunzunzum vale como notícia?


L.R. – Naquela situação, sim. Comecei a apuração e procurei o Planalto. Queria falar com o presidente. Não fui recebido, mal consegui tratar com a assessoria dele. O secretário de imprensa, Ricardo Kotscho, não me recebeu. Falei com o número 2, Fábio Kerche. Apresentei minhas questões. Aguardei uma manifestação por dez dias e nada. Até que aconteceu um fato, que vou revelar no livro, e voltei a fazer contato com o assessor. Disse-lhe: ‘A coisa vai sair. Se vocês quiserem se manifestar é agora’. Ainda coloquei uma declaração transmitida pelo assessor na minha matéria. Mas jamais me receberam, jamais quiseram saber o que eu sabia.


Como era a sua relação com o governo antes da matéria?


L.R. – A relação com o PT sempre foi difícil para qualquer correspondente estrangeiro. Com o PFL, o PSDB, o PMDB não há a mesma veemência ao reagir às reportagens que saem no exterior. Mas, quando se trata do PT, a chiadeira é quase infantil. Fiz uma matéria sobre a relevância política do divórcio de Marta e Eduardo Suplicy, figuras de destaque na política nacional. Cumpri uma pauta que esteve presente em todos os veículos de comunicação do País. Quando saiu a reportagem, o [José] Genoino, então presidente do partido, escreveu uma carta de quatro páginas, reclamando que o tema não era legítimo, que era sensacionalismo. Em outra oportunidade, lá veio carta do Bernardo Kucinski alegando que o PT não tem facções, nem grupo xiita. Ora, o Brasil sabe que o PT tem. Havia dificuldades de comunicação com os ministérios, salvo algumas exceções. Como o José Viegas. Quando ele esteve na Defesa, soube lidar muito bem com os correspondentes.


Invertamos a situação: se um correspondente brasileiro assinasse a mesma matéria sobre o presidente americano, o que aconteceria?


L.R. – Já aconteceu! Já se falou de Bush e seu consumo de bebidas.


Em relação a tempos de juventude, ao passado dele.


L.R. – E que estaria curado, convertido, Bush nasceu de novo… Passamos por escândalos imensos, como o caso Monica Lewinsky, no governo Clinton, e o país continuou firme. Eu acharia uma bobagem impugnar Clinton por esse motivo. Curiosamente, na época em que eu estava fazendo a matéria sobre Lula, gente do Planalto tentou me dissuadir do trabalho lembrando justamente o affaire Clinton-Lewinsky, argumentando que a intimidade de um presidente não é pauta. Respondi que qualquer tópico que tenha a ver com o desempenho do presidente é pauta.


Você sofreu algum tipo de repreensão da parte do New York Times?


L.R. – Eu, nunca. Houve cartas ao jornal e o então embaixador brasileiro em Washington, Roberto Abdenur, por quem tenho grande respeito, cumpriu o papel que lhe cabia. Falou com a direção do NYT, mas o jornal ficou firme. Isso não ficou claro na imprensa brasileira. Houve muita distorção. Falou-se que eu teria me refugiado no escritório do meu jornal em Buenos Aires. Ao contrário, eu estava lá e voltei quando vi a confusão armada! Vi toda a crise aqui no Rio, assistindo do meu apartamento à cobertura e consultando ao mesmo tempo meus advogados. Não saí do País, o ombudsman do NYT não se manifestou, não houve pedido de desculpa do jornal, não houve carta ao governo, nada. Apenas um recurso para revogar a ordem de expulsão, medida legal, preparada por advogados brasileiros.


Durante a crise, com quem você falava no New York Times?


L.R. – Quando um governo tenta expulsar um correspondente o assunto é sério. Chegou à cúpula. Falei muito com Bill Keller, o editor-chefe, também pela experiência que ele teve como correspondente na URSS e na África do Sul. Bill sabe que às vezes os governos reagem com o fígado. A questão toda era como contornar a crise, porque eu queria continuar no Brasil e o jornal também queria isso.


O zunzunzum que você refletiu na matéria era exagerado? Ou melhor: hoje vê alguém argumentando que Lula tem problemas em governar porque beberia?


L.R. – Não, não. Hoje ele enfrenta dificuldades de outra ordem. Até o Luiz Furlan, quando ainda era ministro, falou que o problema não existe mais. Comentou isso logo no início da segunda campanha. Disse que o presidente havia perdido peso, que estava com a maior disposição, que deixou de beber.


Sua matéria, por caminhos tortuosos, teria contribuído para isso?


L.R. – Prefiro deixar a resposta para o livro. Mas tenho amigos no PT que têm feito comentários nesse sentido.


Quantas vezes você esteve com Lula, dentro ou fora da presidência?


L.R. – Ele diz que nunca tomou um guaraná comigo. Não é bem assim. Como correspondente da revista Newsweek, passei quase uma semana acompanhando Lula em 1978, na greve do ABC. Eu o segui em andanças pela América Latina e possivelmente assinei a primeira matéria sobre ele na imprensa americana. E era favorável ao líder metalúrgico que despontava.


Você disse que tem amigos no PT. Quem lhe deu apoio?


L.R. – Não vou dizer os nomes porque eles podem ter problemas.


Foi gente do primeiro escalão?


L.R. – Não posso dizer. Não vou queimar pessoas que estimo.


O fato de ser casado com brasileira e ter filhos brasileiros ajudou a pacificar as coisas?


L.R. – Sim. Tive uma família para me apoiar, parentes de minha mulher foram importantes naquele momento. A execração pública dói. Não é fácil ver seu nome citado na TV, nos jornais. Minha mulher foi fazer compras e quando apresentou o cartão de crédito a pessoa do caixa disse: ‘Ah, então você é mulher dele’. Isso aconteceu. Para ela foi mais difícil, para mim era parte do jogo. Como dizia Harry Truman, se você não agüenta o calor, melhor sair da cozinha.


Como você vê as relações entre mídia e poder no Brasil?


L.R. – Durante a ditadura eu admirava a imprensa brasileira. Ali existia um jornalismo que era vocação, não só carreira. A morte de Vladimir Herzog foi algo que me marcou. O próprio Estado de S.Paulo, ao publicar trechos de Os Lusíadas, para resistir à censura, foi algo tocante. Ali vi imprensa de qualidade. Jornalistas e empresas de comunicação até pagaram um preço alto por isso. Hoje em dia, as coisas são diferentes. Há jornalistas de gabarito, mas a imprensa brasileira navega num mar de mediocridade, com algumas ilhas de excelência.


Sua crítica aplica-se somente ao Brasil?


L.R. – Não. Atravessamos uma época em que entretenimento e jornalismo se confundem, isso no Brasil, nos EUA, na Europa, no mundo inteiro. Uma época em que o jornalista quer ser celebridade, especialmente na TV. Porque os valores são outros, os interesses, também. Ah, talvez eu esteja ficando velho…


A imprensa brasileira é tolerante ou crítica demais com o poder?


L.R. – A questão é outra. Governar é fazer coisas. E fazer jornalismo é criticar. A crítica é um elemento-chave na profissão. Não vou ao extremo do ‘si hay gobierno soy contra’, mas é papel da imprensa olhar os governos e dizer ‘aqui está errado’. Agora mesmo, o grave acidente aéreo de SP virou símbolo de uma crise maior. Quais as razões que levaram ao desastre em Congonhas? Não sabemos. Mas há uma crise maior, crise nos serviços, afinal, somos usuários, não há como negar. Então, por que dizer que a cobertura está exagerada? Quem não lembra das críticas ao apagão de energia, feitas pelo PT, no final do governo do FHC? Falta de planejamento, falta disso, falta daquilo. Era uma crítica perfeitamente compreensível. Lembremos de como Bush apanhou da imprensa americana depois do furacão Katrina. E mereceu apanhar! Ver aqueles velhos morrendo em frente do estádio foi terrível. Pois ver os corpos carbonizados em Congonhas produz o mesmo sentimento. O povo sabe julgar. E nós, na mídia, somos instrumentos dessa opinião pública que ora castiga, ora absolve.


O que o incomodou mais: a reação do governo ou dos veículos?


L.R. – Crítica injusta sempre dói, não importa de onde venha. No caso da imprensa, houve mais hipocrisia, pois trataram de bater num jornalista estrangeiro, o gringo que falou coisas que essa mesma imprensa já vinha falando, por códigos. Não fiquei magoado. Fiquei indignado.


Qual é o peso da cobertura latino-americana no NYT?


L.R. – Com a guerra do Iraque, ficou mais difícil conseguir o espaço que sempre estou querendo. Mas a cobertura é ampla. Tudo o que acontece aqui é pauta, em três grandes áreas: política, economia e cultura. Só que também escrevo sobre religião, esporte, sociedade.


Foi divulgada uma pesquisa segundo a qual 69% dos americanos não sabem quem é Lula.


L.R. – Não causa espanto. Quando eu era correspondente para a América Central, nos anos 80, fiquei deprimido com uma pesquisa de opinião mostrando que só 15% dos americanos sabiam de que lado os EUA estavam nos conflitos na Nicarágua e em El Salvador. O governo Reagan estava com os sandinistas? Apoiava os contras? A população estava por fora. Se hoje um terço dos americanos sabe quem é Lula é um avanço, até porque no Brasil não tem guerra. A biografia de Lula impressiona e ele seguramente é mais conhecido nos EUA do que o Fernando Henrique. Clinton era filho de uma enfermeira, mãe solteira, cresceu num Estado pobre. Isso contou muito. Lula é parte da nossa mitologia. Lembra romances do Horatio Alger Jr. (escritor americano do século 19), histórias de garotos pobres em busca do sonho americano.


A cobertura sobre o Brasil nos EUA não é um tanto folclorizada?


L.R. – Eu diria que vocês, jornalistas, se preocupam muito com isso. A época da cobertura exótica, do tipo futebol-praia-samba-carnaval, já passou. Neste momento o enfoque principal dos jornalistas estrangeiros em relação ao Brasil é o etanol. Eu mesmo já fiz matérias sobre Fapesp, Embraer, sobre todos os aspectos da cultura brasileira, não entendo quando dizem que só queremos o exótico. Não é verdade.


A revista The Economist disse que o brasileiro ou se sente o máximo ou no fundo do poço. Faz sentido?


L.R. – Um jornalista brasileiro me disse ‘somos o Mohammed Ali do mundo em desenvolvimento, os maiores e piores ao mesmo tempo’. Eis o Brasil dos extremos. Quando escrevo sobre praia, futebol e mulher bonita, tem gente que pensa que estou folclorizando o País. Mas esses assuntos são parte da realidade, não há como ignorá-los. Já quando escrevo sobre as mazelas brasileiras, como miséria e racismo, daí um setor ufanista se levanta e grita ‘não toque no País!’ Amigos brasileiros já me disseram: ‘Nós podemos falar essas coisas, você não’. Sou admirador de Nelson Rodrigues, que cunhou aquela expressão imortal em relação ao brasileiro, o ‘complexo de vira-lata’. Isso entra nessa conversa.


Você pediu um ano sabático no NYT para escrever um livro. Fale sobre esse projeto.


L.R. – Não preciso de um ano sabático, mas de meses sabáticos, pois o livro já vinha sendo escrito. Sabe como é, uma noite numa cidade como Humaitá, no Amazonas, o que fazer depois do jantar? Eu escrevo. Minha intenção é revelar os bastidores de reportagens minhas. Ao mesmo tempo, transmitir a experiência que vivi nesses anos todos. Minha convivência com o Brasil vem lá de trás, dos tempos da ditadura e do general Médici.


Que idade você tinha quando pisou pela primeira vez neste país?


L.R. – Tinha 22 anos e era funcionário da Rede Globo em Nova York. Vim trabalhar no Festival Internacional da Canção, no Rio.


O que você fazia na Globo de Nova York?


L.R. – Um pouco de tudo. Ajudava na área de música, comprava matérias de revistas americanas e fazia produção para o Fantástico, que estava nos primórdios. No Brasil fui me deixando ficar, mais na condição de estudante em viagem. Eu fazia pós-graduação na Columbia University, em História Moderna e Política da China. O que me atraiu no Brasil? A cultura, começando pela música. E a maneira como o brasileiro, no dia-a-dia, driblava a ditadura. Num país como a Argentina ou o Chile era diferente. Lá, o sistema político repressivo passou a controlar todos os aspectos da vida. Aqui, não. Descobrir isso foi fascinante. Consegui então um emprego no Washington Post, primeiro como crítico de música, depois de cultura popular, e assim fui criando vínculos com o Brasil. Milton Nascimento já disse que a primeira reportagem sobre ele na imprensa americana foi assinada por mim. Eu queria era vir para cá.


Como foi encarar os militares em 1974, quando você finalmente desembarcou no Brasil como correspondente do Washington Post ?


L.R. – Muito difícil. Em 1978, fui a Marabá fazer uma matéria sobre a guerrilha do Araguaia e o general Hugo Abreu mandou me prender. Com a ajuda de pessoas amigas, pude me esconder até que as coisas se acalmassem em Brasília. Com a visita ao País do Jimmy Carter, no mesmo ano, a ditadura ficou muito ligada, porque ele poderia falar de tortura, prisões. Ali, eu me aconselhei muito com Raymundo Faoro. A mulher do Carter, Rosalyn, tinha um casal de amigos em Pernambuco, da família Steiner. Por meio desse contato ela sabia dos abusos que ocorriam no Brasil. Foi um momento tenso, o governo Carter não queria que os EUA vendessem armamento para o Brasil. Foi daí que o País começou a se esforçar para criar uma indústria bélica nacional. Heitor de Aquino, secretário do Geisel, chegou a reclamar das ‘matérias tendenciosas de Larry Rohter’.


Na ditadura, você correu o risco de ser preso. Agora, com o País redemocratizado, correu o risco de ser expulso. Como recebe isso?


L.R. – Pior: em 2004 corri o risco de ser expulso com base em lei dos anos 70, dos anos de chumbo. O Lula, perseguido pela ditadura, recorreu a uma lei da própria ditadura para me punir. Horrível.


Já o chamaram de agente da CIA ou espião do governo americano.


L.R. – Paranóia que acaba por prejudicar o trabalho do correspondente. É um absurdo pensar que eu seja agente da CIA, ou do Departamento de Estado, ou de qualquer outro organismo do governo americano, como afirmaram pessoas como o ex-ministro Luiz Gushiken e frei Betto. Disseram que minha atuação no Brasil obedecia a interesses externos porque o Lula estava na luta contra a fome no mundo, em disputas na OMC, que o País estava se projetando mais, então essa ‘gente de inteligência’ vem para cá acabar com o Lula. Absurdo! Basta pesquisar minhas matérias no Google para descobrir que eu já fazia artigos favoráveis à luta do Brasil contra o protecionismo na OMC, só para citar um exemplo. Claro, fiz matérias contundentes sobre a Amazônia e os militares até se ofenderam. Recentemente, visitei uma aldeia ianomâmi, que fica ao lado de uma base militar, e constatei que soldados mantinham relações com meninas indígenas, inclusive engravidando-as. Fiz a reportagem. E os militares ficaram zangados com a ‘intromissão’.


Sua área de cobertura abrange os países do Mercosul. Mas você também cobriu a Venezuela, não?


L.R. – A cobertura atual, focada nos países do Mercosul, resulta de uma reconfiguação das áreas de correspondência do NYT. Em 2000 e 2001, também tive que assumir Colômbia e Venezuela. Depois o jornal fechou o escritório em Buenos Aires, para tristeza dos argentinos, que até nisso competem com os brasileiros, e abriu um escritório em Bogotá, mais tarde transferido para Caracas. Acabei ficando com a cobertura do Mercosul, sediado no Rio. A última grande reportagem que fiz na Venezuela foi a tentativa de golpe contra o Chávez, em 1999.


Você teve problemas em outros países do continente?


L.R. – Chávez reclama de modo geral da imprensa estrangeira. Minha relação com os chilenos é ótima. O governo Lagos foi, disparado, o melhor em termos de relacionamento com os correspondentes. Isso continua com Michelle Bachelet. Agora, a Argentina é difícil. Kirchner não gosta de imprensa – nem da nacional, nem da internacional. Tive outras experiências no passado, como ser correspondente em Cuba.


Exatamente em que período?


L.R. – Fidel, claro (ri). Em 1961, o NYT teve que fechar sua sucursal em Havana e desde então pedimos vistos quando precisamos trabalhar na ilha. A primeira vez que fui a Cuba foi nos anos 80, durante a crise de Mariel (milhares de refugiados pediram asilo na Embaixada do Peru, em Havana, e o governo cubano então resolveu facilitar a saída de 130 mil pessoas, pelo porto de Mariel). O ano de 1980 foi curioso: em abril, fui preso no Chile, pela guarda naval de Pinochet. No mês seguinte, expulso da Cuba de Fidel.


Como você foi expulso de Cuba?


L.R. – Ainda trabalhava para a Newsweek. Eu estava hospedado num hotel e simplesmente bateram à porta do meu quarto dizendo: ‘Seu visto acaba de expirar. O senhor volta no próximo vôo’. Me levaram para o aeroporto e o vôo era num DC-3 da 2ª Guerra Mundial. Durante a viagem, uma janela quebrou e descolou do corpo do avião. Estávamos a 6 mil pés. Um jornalista da rede CBS, que estava a bordo, tapou o buraco com uma placa de metal e fita adesiva. Seguimos viagem.


Você voltou a trabalhar por lá?


L.R. – Sim. Nos anos 90, voltei à ilha algumas vezes, momentos em que o governo cubano queria repercutir alguma coisa nos EUA, por meio do jornal NYT. Cheguei a jantar duas vezes com Fidel. Numa delas fui com meu chefe e Fidel estava em companhia de Gabo (apelido do escritor Gabriel García Márquez). Na segunda vez, estavam no jantar filhos do senador Robert Kennedy, morto em 1968. Nessa época eu morava em Miami e sintonizava a Rádio Mambi, que vivia martelando ataques contra Fidel. Um belo dia ouvi o locutor da rádio dizendo ‘el corresponsal comunista de New York Times acaba de publicar una nota….’.. Olha só, fui chamado de comunista pelos anticastristas de Miami.


E a prisão no Chile?


L.R. – Foi em Puerto Montt, cidade encantadora, num lindo domingo. Eu estava lá tirando fotos e chegou um policial com ordem de prisão. Me levaram para a base e diziam que eu era espião argentino. Era época da disputa pelo Estreito de Beagle entre Argentina e Chile. Não é insólito? Falo espanhol com sotaque caribenho, não como sul-americano. Mas cismaram comigo.


Há governos de perfil populista na América Latina, cujos líderes querem falar direto com as massas, sem intermediação. Isso complica o trabalho do correspondente?


L.R. – Lula não é da mesma escola do Chávez. Nem Evo Morales. Para mim, eles são diferentes. Sei que esses líderes querem um contato direto com o povo, mas também querem contato com o governo dos EUA. Daí a mídia estrangeira ser importante para eles. Somos um canal. E os presidentes sábios sabem aproveitá-lo.


Que balanço você faz dos anos passados no Brasil?


L.R. – Vivi muita coisa. Fiquei doente na Amazônia, um prefeito do Pará quis me matar… se mataram até uma freira, por que não iriam fazer o mesmo comigo? E hoje tem esse drama da violência urbana, problema sério – embora não seja difícil para um repórter estrangeiro subir um morro do Rio, é só combinar com a pessoa certa. Também tive momentos prazerosos. Como ouvir um nordestino falando. Adoro o sotaque! O português é o sotaque que mais aprecio dentre as várias línguas que falo (inglês, espanhol, português, mandarim e russo). Mas o nordestino é campeão na criação de frases e expressões. Isso explica a coleção que tenho de cordel. Tenho mais de 2 mil livrinhos, colecionados em 35 anos de viagens. Na verdade, descobri o cordel no Rio, na Feira de São Cristóvão. Fui me aproximando desses artistas nordestinos, especialmente dos pernambucanos. J.Borges, cordelista e famoso pelas xilografias, virou amigo. Dila, poeta popular de Caruaru, é um gênio, sobretudo em temas relacionados a Lampião e Maria Bonita. Dila até me retratou na capa de um cordel. Gosto da música brasileira de A a Z literalmente, de Arnaldo Antunes a Nação Zumbi. Gilberto Gil é sensacional. Como instrumentista, poeta, ministro. Tem aquele traço que reconheço nos brasileiros: generosidade de espírito. E pensar que ele, ao sair da prisão, no DOI-Codi da rua Barão de Mesquita, embarcou num avião e compôs ‘Aquele Abraço’… Isso demonstra a pessoa extraordinária que é.


Escritores brasileiros favoritos.


L.R. – Li um bocado: Márcio de Souza, também amigo. E li Clarice, Moacyr Scliar, Dalton Trevisan, Euclides da Cunha, Machado de Assis… O Brasil é uma potência cultural, tentei passar isso lá fora. Meses atrás, fiz um artigo sobre uma caixa de seis discos, gravações feitas no Nordeste, nos anos 30, por encomenda de Mário de Andrade. A matéria não apenas ficou na lista das mais lidas do NYT como as gravações foram incluídas nas listas de MP3 e executadas por milhares de leitores. Escrever sobre um romancista brasileiro contemporâneo, como Luiz Alfredo Garcia-Roza, apresentando-o para o leitor americano, é gratificante.


E abriu as portas do mercado editorial americano para ele. Mas no Brasil tem muito impacto o que vem de fora. Tanto que Henfil criou o bordão ‘deu no New York Times‘.


L.R. – O que é um peso. Trata-se apenas de um jornal.


E no futebol, a paixão nacional?


L.R. – Ah, sou amante do beisebol, do Chicago Cubs, meu time, minha doença. A paixão pelo beisebol facilitou minha relação com Chávez. Ele adora o esporte. Foi arremessador, canhoto inclusive, e sabe tudo. Poderia tranqüilamente ganhar a vida como locutor de beisebol. No Brasil, direi que sou mais ou menos vascaíno.


Você será correspondente em outro lugar? Ou se vê trabalhando na redação do NYT?


L.R. – Não sei o que virá depois dos meses sabáticos. Ficar oito anos e meio num posto, como fiquei aqui, é recorde no jornal. Porque peguei um momento interessante no Brasil, faço uma cobertura ampla, o que é cada vez mais valorizado nos dias de hoje. Definições sobre meu futuro vão depender do resultado das eleições presidenciais nos EUA. Lutei muito para aprender a falar, ler e escrever o mandarim – e faço as três coisas. Seria talvez interessante voltar para a China. No meu primeiro período como correspondente no Brasil saí do Rio para Pequim. Talvez seja bom refazer a rota e terminar a carreira na China.


Hoje, se você estivesse com Lula numa entrevista, perguntaria o quê?


L.R. – Na comissão que investigou o escândalo Watergate, o senador Howard Baker repetia sempre a mesma pergunta em relação a Nixon: ‘What did the president know and when did he know it?’ É a questão fundamental. Pois eu perguntaria a Lula a mesma coisa em relação ao mensalão: ‘Presidente, o que o senhor sabia e quando soube?’

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Jornalistas do Estado de S.Paulo