Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Entra escândalo, sai
escândalo – e os erros ficam

Começou numa quinta-feira (14/7), com a matéria do Jornal Nacional já criticada neste Observatório [veja remissões abaixo], divulgando a lista do deputado Rodrigo Maia, do PFL, que misturava alhos com bugalhos, sobre sacadores de dinheiro das contas de empresas de Marcos Valério na agência brasiliense do Banco Rural.


Exemplo de alhos: o deputado petista João Paulo Cunha, cuja mulher retirou 50 mil reais da agência. O ex-presidente da Câmara, de início, inventou uma história qualquer para justificar o saque. Depois, disse que ia renunciar, mudou de idéia e saiu de cena.


Exemplo de bugalhos: os deputados petistas Sigmaringa Seixas, do Distrito Federal, e Paulo Delgado, de Minas. Por um e por outro a própria oposição punha e põe a mão no fogo.


No caso de Seixas, verificou-se que a sua secretária foi, sim, ao Rural, mas por um motivo inocente (sacar 400 reais que lhe eram comprovadamente devidos por um trabalho particular). Sigmaringa pediu a cassação do mandato de Rodrigo Maia.


No caso de Delgado, verificou-se que um assessor que trabalhava no seu gabinete, Raimundo Ferreira da Silva, também foi ao banco – à revelia do deputado – de onde sacou 250 mil reais. Para o PT, do qual é vice-presidente regional. Delgado o desligou de sua assessoria.


Três dias depois do, digamos, furo do JN, que abriu uma guerra entre a Globo e Rodrigo, O Estado de S.Paulo saiu com outra relação. Dessa vez, de supostos mensalistas das bancadas do PP (18 deputados), PMDB (2), PL e PTB (1 cada). Em relação à da Jornal Nacional, a lista tinha a pimenta de incluir o presidente da Câmara Severino Cavalcanti e o seu afilhado político Ciro Nogueira, corregedor-geral da Casa.


A fonte seria ‘um ex-funcionário graduado do PP’, de quem a CPI dos Correios teria recebido o rol. Segundo a matéria, assinada por Expedito Filho e Luciana Nunes Leal, os membros da CPI o teriam apelidado ‘Garganta Profunda’, tamanho seria o acervo de suas informações quentes.


Que ‘Garganta Profunda’?


Passados mais cinco dias, sob o título ‘CPI age para impedir vazamento de dados’ e o sub tampouco excitante ‘Delcídio e Serraglio apontam excessos no Congresso por disputas regionais’, o mesmo Estado informa que ‘a CPI dos Correios decidiu adotar critérios rigorosos para reduzir a manipulação de denúncias que comprometem parlamentares’.


‘A decisão’, segue o texto suavemente, ‘teve origem na divulgação de informações atribuindo a mais de 20 parlamentares do PP o recebimento do ‘mensalão’. Embora não tenha sido protocolado na CPI, o documento chegou aos jornalistas por meio de deputados.’


Portanto, nada de ex-funcionários graduados do PP, nada de Gargantas Profundas.


No pé do parágrafo seguinte, finalmente a informação quente – e escaldante para o jornal: ‘A denúncia não gerou nenhuma investigação’. Foi o que o presidente e o relator da CPI afirmaram em ofício, por causa da reação ‘de parcela dos mencionados na lista, publicada na edição do dia 17 do Estado‘. Diferentemente daquela, essa matéria saiu sem assinatura.


Jornal Nacional e Estadão cometeram o mesmo pecado: partiram da premissa de que todos são culpados salvo prova em contrário. O mal desse tipo de jornalismo é que basta haver uma única pessoa acusada injustamente para desqualificar toda a matéria cheia de nomes de bandidos. Pior: basta para desqualificar o inocente.


Na reportagem em que o Estado deixou de cumprir a obrigação elementar de se desdizer, reconhecendo que atirou sem se preocupar com quem poderia atingir, e não só noticiar o que fez a cúpula da CPI, aparece um dos 22 da lista, o pepista catarinense Ivan Ranzolin.


Suas palavras (no penúltimo parágrafo do texto):




‘O denunciado é imediatamente discriminado em sua comunidade, a começar pelos vizinhos, depois na universidade, como é o meu caso, por ser professor. Nada repara isso.’


Perder o furo ou perder a face


Certas pessoas, como se diz, preferem perder o amigo a perder a piada. Em tempo de denúncias que se empilham umas sobre as outras – e, na maioria dos casos, não são de jogar fora, pelo menos não antes de um exame acurado –, a imprensa deveria se pautar pela regra de que é melhor perder o furo do que perder a face.


A regra não vale para toda a imprensa, naturalmente. Só para aquela que tem uma face ética a perder. Sinta-se o leitor à vontade para julgar se esse é o caso da revista Veja. Mas que ela está no banco dos réus nesse departamento, lá isso está.


Na cobertura da atual escandalaria, a Veja tem três troféus que ninguém que lhe toma: o flagra nos Correios, feito por um araponga, com que tudo começou; a notícia de que o deputado Roberto Jefferson pediu a um então diretor do Instituto de Resseguros do Brasil a módica de 400 mil reais mensais para o PTB; e a apuração de que Marcos Valério ajudou a obter e avalizou um papagaio de 2,4 milhões de reais do BMG para o PT.


A Veja também atribuiu ao ainda ministro José Dirceu a frase letal que ele desmente, mas que os fatos das últimas semanas tornaram mais do que bene trovata: ‘Não há hipótese de uma CPI minimamente bem-feita deixar de pegar o Delúbio e o Silvinho.’


O diabo é que também parece bene trovata, no mínimo, a parte que toca à Veja no libelo distribuído no sábado (23/7), pelo deputado Dirceu, sob a forma de nota à imprensa que só a Folha de S.Paulo deu na íntegra – e ainda assim em corpo bom de ler apenas com uma potente lente de aumento [clique aqui para ler a íntegra da nota].


José Dirceu é uma figura cercada de suspeitas por muitos lados. Por exemplo, Marcos Valério disse ao procurador-geral da República que o então ministro estava cem por cento a par dos seus copiosos repasses de recursos para o PT, na pessoa do seu bom amigo, o professor Delúbio.


Mas nenhuma suspeita, nem mesmo prova provada, justifica que um órgão de imprensa deixe de ouvir o que o suspeito, ou culpado, tem a dizer. Ouvir e publicar, bem entendido.


‘A revista Veja mentiu’


Dirceu escreveu que a Veja nem sequer levou em consideração os seus argumentos três vezes na edição desta semana (nº 1915), com data de 27/7/2005. Num caso (a matéria ‘Fábrica de fraudes’), ele não teria sido ouvido. Em outros dois (‘A chantagem’ e ‘O petróleo é deles’), a sua contestação foi ‘completamente ignorada’.


Especificamente, ele menciona, por exemplo, que a revista não registrou que ele negou ter conversado com o presidente Lula e o deputado João Paulo Cunha sobre ‘acalmar’ Valério.


A mesmíssima acusação foi desferida em matéria paga de 1/4 de página, mandada publicar em todos os grandes jornais pela diretoria executiva da Petrobras, sob o título ‘A revista Veja mentiu’.


O texto diz que o semanário se baseou ‘em fontes protegidas pelo anonimato’. Isso não derruba necessariamente as informações divulgadas, nem a credibilidade de quem as divulgou. Mas é imperdoável que, segundo a Petrobras, a revista tenha recebido previamente os esclarecimentos (descritos na nota) ‘e não os publicou’.


A Petrobras e Dirceu podem estar dizendo – ou não – a verdade. Mas a Veja, que sabidamente joga no lixo declarações de entrevistados que não levam água para o moinho do seu ponto de vista previamente estabelecido sobre dado assunto, e que manda repórteres ouvir apenas gente que diga o que ela quer, exibe indícios veementes de jornalismo que antes apregoa do que pratica a ética do ofício.


O J’accuse visa também o Correio Braziliense, a Folha e o Jornal Nacional. Todos teriam preferido dar mais crédito ao que se disse contra ele do que ao que ele disse em sua defesa.


O caso mais sério é o do grampo da Polícia Federal que registra referências a Dirceu e a Delúbio em conversas entre fraudadores do INSS, em janeiro e fevereiro deste ano. Quem furou a história foi O Globo, na sexta-feira (23/7). No sábado, o Estado deu o que o concorrente tinha dado com primazia – sem citá-lo.


A velha praga da mídia


Dirceu afirma que o seu ‘patrimônio moral foi massacrado’ em duas reportagens que totalizaram mais de 13 minutos, no Jornal Nacional. ‘Só no terceiro dia’, assinala o deputado, ‘[o JN] informou que os denunciantes eram pessoas envolvidas com a máfia do INSS que tinham o objetivo de atingir quem estava moralizando o órgão’.


É bem verdade que num trecho divulgado das gravações se ouve um dos grampeados dizer: ‘Estou no aguardo de uma conversa com o próprio Zé Dirceu, assunto do Goiabeira’. Se ele falou no então ministro para atingi-lo ou não, fica a critério de cada qual. Mas isso não lhe retira razão quando se queixa: ‘A versão inicial foi reproduzida por toda a imprensa, mas a outra foi quase completamente ignorada’.


É a velha praga da mídia de condenar aos gritos e de absolver, ou o que o valha, aos sussurros.


Às vezes, ela não se dá nem ao trabalho de sussurrar. No domingo, o Estado – que, por sinal, traz uma excelente matéria assinada por Angélica Santa Cruz sobre a velha e boa amizade entre o presidente Lula e o professor Delúbio – publicou um aide-mémoire de mais de meia página sobre os 71 dias da crise, sob o feliz título ‘Como um maço de 3 mil virou um escândalo de milhões’. Coisa de recortar e guardar.


No período de 16 de junho a 17 de julho, o infográfico registra, entre outros tópicos: ‘O ministro Luiz Gushiken é acusado de ajudar a empresa Globalprev à qual está ligado. A empresa cresceu mais de 200% depois que ele chegou ao governo’. Mais adiante, no período de 13 a 22 de julho: ‘Luiz Gushiken, suspeito de ações irregulares em fundos de pensão e criticado pela ajuda à Globalprev, deixa a Secom’.


Começa que, tecnicamente, não é correto dizer que ele ‘está ligado’ à Globalprev. Esteve até outubro de 2002; com a vitória de Lula, desligou-se. Ele é ligado, sim, aos familiares que tocam a empresa de consultoria. Detalhe? Deles o inferno do jornalismo está cheio, mas quem arde são as vítimas.


Mais importante é a gritante ausência das absolutamente plausíveis explicações de Gushiken para o suposto crescimento superior a 200% da firma ‘depois que ele chegou ao governo’.


Manchetes fortes, matérias incompletas


O autor do texto não poderia ignorar que o ex-ministro provou, preto no branco, que a Prefeitura de Indaiatuba, onde fica a Globalprev, errou – e reconheceu que errou – na contabilização do faturamento da consultora entre 2002 e 2004.


O redator talvez não soubesse que Gushiken foi se explicar pessoalmente ao diretor do jornal. Mas era de esperar que lesse, se não em outros jornais, pelo menos naquele onde trabalha, a retificação do noticiário inicial, baseado em números equivocados.


Números parecem feitos de propósito para a imprensa dar manchetes fortes e matérias incompletas. O Estado fez um belo trabalho ao descobrir, a partir de um levantamento junto os fundos de pensão das estatais, que eles aplicaram pelo menos 600 milhões de reais em três bancos de segunda linha – os notórios BMG e Rural, além do quebrado Santos.


A idéia, evidentemente, é dizer que aí tem. Mas, quando se lida com cifras imensas, o que é especialmente o caso ao se tratar de fundos de pensão, o essencial é dar ao leitor senso de medida das coisas.


A matéria deveria mencionar – mas não menciona – o que os tais 600 milhões de reais representam como parcela do volume total investido pelos fundos. A única informação do gênero, que permite avaliar em que medida os gestores dos fundos puseram em xeque o dinheiro dos associados, é a de que o Real Grandeza, o fundo de pensão de Furnas, tinha no fim do ano passado 12,08% investidos – ‘concentrados’, afirma impropriamente a matéria – no Santos, Rural, BMG, Mercantil do Brasil e Panamericano. Onde os restantes 87,92% aplicados?


E há a relação entre a valor dos investimentos discutíveis e o patrimônio de cada fundo. O desnível é tremendo. O jornal só cita a proporção, em porcentagem, no caso do Petros, dos funcionários da Petrobras. As suas aplicações em papéis do BMG, somando 30,2 milhões de reais, representam 0,12% do patrimônio do fundo (R$ 26 bi).


O Previ, do Banco do Brasil, um colosso de 70 bilhões de reais, tirou (quando?) o que tinha (quanto?) no BMG e no Rural. O patrimônio do terceiro maior fundo da lista, Funcef, da Caixa Federal, é de 17 bilhões de reais. Não tem nada aplicado nem no Rural, nem no BMG. Tinha 10 milhões de reais (0,06% do patrimônio) no Santos, ‘em CDBs que faziam parte da carteira de um fundo terceirizado de renda fixa com aplicações diversificadas’.


Além do mais, quantos leitores dessa matéria foram além do seu título bombástico ‘Bancos sob suspeita têm R$ 600 mil de estatais’?


Tem razão o ombudsman da Folha, Marcelo Beraba, ao escrever:




‘O turbilhão de denúncias não pode servir de desculpa para o afrouxamento da vigilância interna’.


Ele se refere ao que entende serem os problemas da cobertura da Folha. Mas a advertência vale, sem tirar nem pôr, para os outros diários, as revistas, os telejornais…


Entra escândalo, sai escândalo – e tem jornalista que não aprende nada com os erros passados.


[Texto fechado às 17h35 de 25/7]