Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Entre a crise global e a devassa local

O Tesouro americano continua ganhando de dez a zero da Standard & Poor’s. Seus títulos são comprados por investidores de todo o mundo, mesmo rebaixados de AAA para AA+, e ainda são procurados como refúgio num momento de insegurança em países desenvolvidos. “Não há nada de errado com nosso país”, disse o presidente Barack Obama num discurso para trabalhadores na quinta-feira (11/8). “Há algo de errado com nossos políticos”, acrescentou.

Curiosamente, foi esse mesmo o diagnóstico apresentado pela agência de classificação de risco, menos de uma semana antes, para justificar o rebaixamento da dívida soberana dos Estados Unidos. Nem sequer no pronunciamento de segunda-feira (8) o presidente havia contestado o argumento político apresentado pela S&P.

Nenhum jornal deu destaque à explicação divulgada pela agência no começo da semana passada. O comunicado apresentou dois argumentos para fundamentar a decisão. Em primeiro lugar, o plano de consolidação fiscal negociado entre o Executivo e o Congresso foi considerado insuficiente para resolver o problema da dívida no médio prazo. Em segundo, “a efetividade a estabilidade e a previsibilidade da formulação de políticas (…) se enfraqueceram” mais do que o previsto a partir de 11 de abril, quando se adotou ou viés negativo para a avaliação da dívida americana.

Abaixo do valor

Comentaristas brasileiros e estrangeiros associaram a decisão da S&P à campanha do Tea Party, a extrema direita do Partido Republicano, contra o presidente Barack Obama. O economista Paul Krugman, ganhador do Prêmio Nobel, espinafrou a agência e classificou as suas alegações como demonstração de cara de pau. Podia estar certo, mas os jornais simplesmente sonegaram aos leitores uma exposição mais clara e razoavelmente isenta dos argumentos da S&P

Curiosamente, o presidente americano em nenhum momento, pelo menos até sexta-feira (12/8), contestou o arrazoado da agência. Não se empenhou sequer em lembrar o erro de US$ 2 trilhões cometido inicialmente pelo pessoal da S&P e denunciado pelo secretário do Tesouro Timothy Geithner. Se era tão fácil apontar esse erro enorme e inegável, por que o presidente deixou de usar esse recurso? Talvez os editores devessem ter levado em conta esse detalhe. Havia algo novo no cenário. Insistir no conhecido histórico de erros, omissões e outros escorregões das agências pouco serviria para esclarecer o aspecto político do rebaixamento.

A cobertura da crise internacional foi mais ou menos a mesma na maior parte dos grandes jornais. Todos foram forçados a acompanhar as oscilações dos mercados e os novos fatores de perturbação. Além da reclassificação dos títulos americanos, houve pressões sobre os governos da Itália, da Espanha e até da França e muita especulação com as ações de bancos italianos e franceses. Além disso, os diretores do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, divulgaram um comunicado com avaliação muito pessimista sobre a economia do país. Mas ainda foi possível encontrar alguma diferenciação no material publicado. Com as bolsas em queda, algumas pechinchas notáveis deveriam estar aparecendo no mercado. O Valor aproveitou esse ângulo em várias matérias.

Na terça-feira (9/8), o jornal mostrou investidores com visão de longo prazo aproveitando a oportunidade para boas compras. Na quarta, dedicou a manchete a um levantamento de pechinchas: 21 das 58 ações de empresas com balanço consolidado componentes do Índice Bovespa vinham sendo negociadas abaixo do valor patrimonial. Na sexta, o caderno de investimentos foi aberto com um levantamento de ações de 84 empresas transacionadas pelo menor valor desde o agravamento da crise em 2008. A lista incluiu nomes como Bradesco, Banco do Brasil, Gerdau e Bematech.

Outras complicações

O governo também rendeu manchetes e grandes coberturas na mesma semana. A presidente Dilma Rousseff, os ministros da Fazenda e do Planejamento e o presidente do Banco Central (BC) falaram em várias ocasiões sobre como o Brasil poderá enfrentar a crise internacional. Ao mesmo tempo, os jornais acompanharam os novos lances da limpeza ministerial, A grande novidade foi a prisão de 35 funcionários, alguns de alto escalão, do Ministério do Turismo. Os jornais mostraram também o descontentamento de partidos da base, incluídos PMDB e PT, com a evolução da faxina. Além disso, relataram as pressões para liberação de verbas destinadas a gastos previstos em emendas orçamentárias.

Todos esses temas acabaram mais ou menos entrecruzados. O Executivo se mostra disposto a resistir a pressões por maiores despesas neste e no próximo ano. A ideia é manter certa margem de manobra para tomar as providências impostas pela crise. Mas a aplicação dessa política requer um sólido apoio no Congresso e, neste momento, a presidente foi aconselhada a facilitar a liberação de recursos para as emendas.

Esse noticiário foi distribuído entre as páginas de Política e de Economia. Parte da costura necessária foi feita, mas poderia ter sido mais completa. Escândalos do Ministério do Turismo foram vinculados à ação de parlamentares e às suas emendas. Valeria a pena ter lembrado, em matéria complementar, pelo menos parte do histórico de bandalheiras vinculadas aos projetos incluídos no Orçamento por deputados e senadores. Isso seria especialmente oportuno quando os ministros eram aconselhados a liberar verbas para atender aos aliados e assim conquistar seu apoio à política anticrise.

Essa convergência dos fatos foi uma das boas piadas da semana: antes de apresentar uma proposta orçamentária mais ou menos austera (o projeto será entregue ao Congresso no fim do mês), o Executivo precisa distribuir agrados a parlamentares conhecidos por seu fisiologismo. Pelo menos até sábado (13/8) faltou essa costura nos grandes jornais do Rio e de São Paulo. Mas novas complicações para o governo e seus aliados já se prenunciavam, com as novas denúncias contra o ministro da Agricultura, Wagner Rossi, publicadas na Veja.

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[Rolf Kuntz é jornalista]