Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Entre a paranóia e o ridículo

A visita meteórica do presidente Bush ao Brasil, por tudo que ela produziu, oferece rico painel para algumas pontuações críticas. A primeira delas remete ao modo recorrente da submissão com a qual a mídia nacional promoveu a cobertura. Diante do aparato que cercou a presença de Bush por menos de 24 horas em São Paulo, é inconcebível que a mídia não tenha acusado o registro incisivo, principalmente por não haverem faltado excessos quanto à segurança que beiraram o ridículo, seja da parte da própria comitiva oficial em exigir o cumprimento de normas, seja da parte brasileira em acatá-las.

Dentre o elenco de exageros, um, sem dúvida, superou as expectativas: 50 cães farejadores, integrantes da comitiva presidencial, ocuparam dependências de um dos mais luxuosos hotéis brasileiros. Não sei qual face ridícula superou outras: 1) hospedar cães em hotel de cinco estrelas; 2) a direção do hotel (rede Hilton) aceitar; 3) a mídia (impressa e eletrônica) noticiar com ‘neutralidade’. Ao fato pífio, soma-se o prejuízo do comércio local, que teve de fechar as portas, dada a interdição por razões de ‘segurança’. Quem vai ressarcir o prejuízo dos comerciantes?

E o Pasquim da democracia?

A questão proposta na introdução serve para assinalar certa perplexidade que, há algum tempo, me habita, em forma de pergunta, ou seja: o que houve, efetivamente, no Brasil, capaz de, em tempo de truculenta ditadura, fazer emergir um produto jornalístico com a corrosão e a coragem de um Pasquim e, paradoxalmente, em ambiência de assegurada democracia, nada, na imprensa nacional, vingou que se pudesse igualar (e, menos ainda, superar) a verve crítico-satírica que o semanário citado abrigava?

É claro que os jornais, aqui e ali, deixaram farpas, porém nada muito além da ironia sutil ou da crítica comedida, quase diplomática. A manchete do Jornal do Brasil (sexta-feira, 9/3), ‘Visita inconveniente’, cumpriu esse papel, reafirmado na edição do dia seguinte: ‘Simpatia 10, acordo 0’. Fotos também não pouparam a inutilidade do encontro, principalmente aquela na qual Lula encosta a cabeça no ombro de Bush (dois simulacros de estadistas).

Não poderia faltar, na vasta galeria fraseológica do presidente brasileiro, mais uma a enriquecer o acervo: ‘É preciso encontrar um ponto G nas negociações’ (JB, 10/03) e ‘OMC está perto de achar ‘ponto G’, diz Lula’ (Folha de S. Paulo, 10/03). Mais insólito ainda é o texto da Folha assinado por Fernando Canzian. Em nome da informação, eis que o jornalista, em matéria de página política, em meio ao texto que relatava o encontro, insere dois parágrafos explicativos a respeito do significado e da fisiologia sexual. Reproduzo a inacreditável passagem:

‘O ponto G, cuja existência ainda é questionada, teria sido identificado na década de 50 pelo médico alemão Ernst Gränfenberg. Seria uma concentração de terminações nervosas, vasos sangüíneos e glândulas ligadas ao clitóris que se concentram em torno da uretra.

O ponto G seria particularmente sensível à pressão e, estimulado, capaz de proporcionar intensos orgasmos’.

Diante da breve lição de educação sexual com que o jornalista brindou seus leitores, fica o impasse para a escolha de quem patrocinou o ridículo mais original:

1. a estratégia de guerra montada para a proteção do presidente dos Estados Unidos da América;

2. os 50 hóspedes caninos num dos mais luxuosos e tradicionais hotéis do país;

3. a fixação do presidente brasileiro no ‘ponto G’;

4. a aula de educação sexual ministrada pelo jornalista. Ao leitor, deixo a escolha.

Retórica da vitimização

Será que a experiência democrática brasileira funcionou ao contrário, ou seja, em lugar de ativar o criticismo, colaborou para anestesiá-lo? Em sendo isto verdade, que aspecto cultural para tal quadro terá concorrido? Tentando arriscar prenúncio de resposta, será crível suspeitar que, na origem da inércia crítica, estará o veneno que aqui chamarei de ‘retórica da vitimização’?

A julgar manifestações (mesmo episódicas) de protesto que se verificaram em algumas cidades do país, sou levado a crer que segmentos populacionais estão à frente dos meios de comunicação de massa. Tímidos ou não, protestos públicos ocorreram. E na mídia? Nada. Algo de profundamente preocupante, na mídia nacional, está existindo. Arrisco pensar que a prática jornalística assimilou parte de uma bandeira que a ‘esquerda ingênua’ difundiu: o trauma da ‘retórica da vitimização’. O que tal expressão quer dizer? Durante amplo período, setores da comunicação se escudaram no fato de responsabilizarem a ditadura como biombo que bloqueou a livre expressão. É hora de tal conceito duvidoso ser revisto, sob pena de não sabermos mais articular atitudes comunicacionais autônomas.

Em linhas gerais, por ‘retórica da vitimização’ se compreende um estado traumático de caráter imobilizador que responsabiliza o regime ditatorial como agente opressor e inibidor da autonomização crítica. É fato que qualquer ditadura é feroz e lesiva. Todavia, passados mais de 20 anos, era de se esperar a prosperidade da cura. Não parece ser o caso.

Segundo consta, da ‘retórica da vitimização’ passamos à ‘cultura da infantilização’. Ou o Brasil toma um choque de cultura, ou vai despencar em direção a um modo de vida absolutamente frágil, dependente e inócuo. Quanto ao presidente, talvez seja mais indicado trocar o ‘ponto G’ pelo ‘X da questão’. Não iremos a lugar algum com metáforas futebolísticas e sexuais, embora delas muitos gostem.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro, RJ