No dia 31 de março o Jornal Nacional mostrou imagens de uma cena brasileira pobre. Uma mãe e seus 12 filhos trabalhando numa indústria caseira de realidade rural. Era uma denúncia sobre trabalho infantil em Pernambuco [ver remissão abaixo para artigo de Alceu Nader sobre o assunto]. No dia seguinte, novas imagens, ‘agora feitas pelo Jornal Nacional, confirmam a denúncia’. Aparece a imagem da família trabalhando: a mãe grávida, descascando castanhas, e seus filhos em volta, fazendo várias tarefas semelhantes. As crianças têm uma aparência física saudável e enfrentam as câmeras sem os maneirismos típicos das que assistem a muita televisão. Uma adolescente confessa que gostaria de estudar, ter mais oportunidades. O âncora encerra, fazendo ar de pouco caso para o prazo de um mês dado pelo governo para envolver a área no programa escolar. O emocionalismo embota e o público não percebe que acabou de levar uma pá de areia nos olhos.
Notícias nos chegam normalmente assim, maniqueístas, desprezando a inteligência média do público. Aí já estaria explicada a esterilização da informação, mas graças aos rumos tomados pelo jornalismo, conseguiu-se uma garantia extra: a pasteurização das notícias, que opera enganchada no ego da sociedade.
No fim da década de 1990, as crianças das carvoarias mais conhecidas do Espírito Santo – depois de uma série de matérias sobre trabalho infantil –, foram retiradas do ambiente de trabalho dos pais e levadas com as mães para ‘estudar na cidade’. O pai começou a ganhar menos e teve que trabalhar mais para tentar chegar perto do resultado anterior, quando contava com a ajuda da mulher e dos filhos. Foi obrigado a usar, de uma hora para outra, peças para salvaguardar sua vida de carvoeiro, como botas, máscaras e roupas com as quais nunca havia trabalhado, e que lhe pareciam incômodas. O ego da sociedade, alheio ao impacto das medidas justiceiras, se satisfez com as medidas. Se os meninos carvoeiros de 10 anos não sabiam ler e nem conseguiram aprender, caindo nas ruas desalentados pela tristeza da mãe na cidade, isso não tinha a menor importância, afinal de contas o problema do trabalho infantil está resolvido.
Remendos grosseiros
Colocar na escola as crianças de Pernambuco ou de todos os recantos do Brasil onde existe trabalho infantil numa escola integrada à realidade dos trabalhadores rurais exige estudo, dedicação e uma diversidade de ações que a filosofia e a prática capitalista não alcançam. ‘Tirar’ as crianças do ambiente em que estão, seja ele qual for, pede delicadeza e amparo. A ecologia de uma família, por mais diversa que possa ser, tem sentimentos que o capitalismo e sua razões baseadas numa excentricidade lucrativa não reconhecem.
Os métodos científicos e tecnológicos, altamente mancomunados com os meios de comunicação de que dispomos, estão a serviço de um planeta cada vez mais degradado, de relações humanas ainda mais violentas e de desigualdades maiores. As ações são feitas aos remendos e em baixo custo, afinal é preciso primeiro aumentar o bolo para depois dividi-lo.
É preciso investir em concentração de renda antes de gastar com os que não podem comprar. A idéia é de que assim todos um dia chegaremos ao topo. Não sem armas, investimentos em pesquisas bélicas, guerras pela tomada de bens naturais de outras regiões do planeta. Todas essas excentricidades das tribos políticas, sociais e profissionais dominantes economicamente, provedoras de entretenimento barato por intermédio de celebridades caras, custam mais do que o lucro. São tempos medievais ultramodernos.
E os remendos grosseiros não param no pano puído. Levar educação às famílias que vivem de maneira primitiva não deveria ser um estupro munido de valores capitalistas, altamente assépticos, moralmente danificados.
Jornalistas-atores
A nova informação possível é levar a sociedade a um entendimento das situações que a circundam. A ganância dos oligopolistas não permite a diversidade, as regras do jogo são impostas e inflexíveis. É o caso de ‘resolver a exposição’ das crianças ‘submetidas’ ao trabalho infantil. Ninguém defende o trabalho infantil, coisa indiscutível, mas é óbvio que a tapeação de modificar toda a ecologia de uma estrutura familiar só vai trazer mais miséria, como a que vemos ser multiplicada a cada intervenção unificada entre os oligopólios existentes em todos os setores.
O cérebro da sociedade, já bombardeado pelo desenvolvimento da propaganda e do marketing, não conta mais com o serviço do jornalismo, inerte entre as duas dramáticas correntes que divulga – a econômica e a sentimental. Existem mais realidades entre o poder e a subjugação piedosa; caberia à mídia, especialmente a eletrônica, desempenhar a função de informar sobre o maior número possível de realidades, mas todas as noite somos obrigados a ouvir como notícia a novela dos políticos, a última fofoca da medicina americana atrelada a um trambique político, entre outras façanhas agrícolas que servem como pano para a cena mais temida: a que vincula o alimento industrializado às pesquisas engavetadas.
A questão dos transgênicos é outro exemplo. A notícia é: liberou ou não liberou o plantio? Os ecologistas estão contra, os grandes agricultores a favor. E de que multinacional saíram os transgênicos? É um bom negócio para o Brasil fortalecer as novas idéias da Monsanto? Qual o futuro nas relações de exportação do Brasil se investir maciçamente na prática filosófica da agricultura norte-americana? A um jornalismo responsável e minimamente ético não interessaria futucar essas questões, desvendando-as para a sociedade?
Não, porque nós jornalistas somos atores, para não usar a palavra covardes, que tanto nos ofende, pagos para representar o papel de informantes censurados de uma espécie de serviço secreto que opera de Anapu ao primeiro faminto da África.
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Jornalista em Florianópolis