Chamou a atenção, pelo inusitado, perfil do traficante Nem traçado pela colunista da revista Época Ruth de Aquino. Ela ouviu só “um lado”: o traficante, apresentado de modo favorável, quase como se o texto fosse item de uma operação de relações públicas de Nem.
Uma pequena cronologia ajuda a situar a matéria no curso dos acontecimentos que culminaram com a ocupação da Rocinha.
A jornalista havia publicado um perfil apologético do secretário de Segurança do Estado do Rio, José Mariano Beltrame, na edição da revista datada de 17 de outubro. “O homem que enfrenta os facínoras” era o título sob o qual se abrigavam muitos elogios, algumas informações e outras tantas omissões.
Para encurtar, o capítulo final do texto, muito caprichosamente editado em 10 páginas, aborda sob a rubrica “O futuro do xerife” a possibilidade de Beltrame ser candidato em vindouras eleições.
“Beltramizar”
É ouvido o notável homem público Jorge Picciani, presidente do PMDB fluminense, principal esteio do apoio político a Sérgio Cabral Filho quando presidente Assembleia Legislativa fluminense: “Estendo o tapete vermelho a ele [Beltrame] para se candidatar ao que quiser”. (Na coluna publicada com data de 21 de novembro, Ruth de Aquino sustenta que o neologismo beltramizar “começa a ser usado no sentido de limpar, punir, dedetizar os ratos e as baratas da política”.)
Cronologia
No dia 4 de novembro, sexta-feira, a jornalista entrevistou Nem à margem de um campo de futebol da Rocinha (texto publicado na internet em 11/11). O conteúdo dessa entrevista será abordado abaixo. Nesse mesmo dia, bem cedo, o Bom Dia Rio da TV Globo noticiava “operação incomum” na Rocinha, “que ainda não foi pacificada”: motos roubadas, explosivos e milhares de produtos piratas apreendidos. À noite, a Agência Estado informava: “Polícia Civil e Bope preparam Rocinha para instalar UPP”. E mais: Beltrame tinha embarcado para a Alemanha e Martha Rocha, chefe da Polícia Civil, estava em Israel e só voltaria no dia 13, “uma das datas ventiladas para a ocupação da favela”.
No dia 6, um boato sobre invasão iminente da Rocinha pela polícia levou jornalistas a acompanhar uma operação do Batalhão de Choque da PM na Favela de Antares, onde acabou assassinado o cinegrafista Gelson Domingos (ver “Gelson Domingos e os limites da ação da imprensa”).
No dia 7 noticiou-se que Nem, cercado por 40 capangas, procurou uma Unidade de Pronto Atendimento, para ser medicado devido a uma overdose de ecstasy ingerido durante “festa de despedida” da Rocinha.
No dia 8, terça-feira, já se anunciava que a invasão da Rocinha seria no fim de semana seguinte.
No início da madrugada do dia 10, Nem foi preso. De manhã, o delegado da Polícia Federal Vitor Poubel se fez porta-voz do traficante: “Diz que vai cumprir o que deve e se tornar um cidadão normal”. Na hora do almoço, o governador Sérgio Cabral Filho anunciou que a ocupação da Rocinha seria concluída até domingo (13/11), depois de ter pedido que Nem, levado para o presídio de Bangu, fosse transferido do Rio de Janeiro imediatamente. À noite, é publicada no site da Época a entrevista com Nem.
A ocupação foi no dia 13, domingo. Na manhã do dia 14, Beltrame, em entrevista à TV Globo, disse que o depoimento de Nem poderia ser uma “oportunidade importantíssima” para incriminar policiais corruptos. O site da Polícia Federal noticiou assim: “Mesmo sem citar explicitamente a delação premiada, que troca colaboração com a Justiça por redução de pena, [….] Beltrame defendeu ontem que seja oferecida ao traficante Antônio Bonfim Lopes, o Nem, ex-chefe do tráfico na favela da Rocinha, ‘alguma medida judicial’ para que revele o que sabe sobre corrupção na polícia fluminense.”
QUADRO SINÓPTICO
Data |
4/11 |
6/11 |
7/11 |
8/11 |
10/11 |
13/11 |
14/11 |
Fato |
Polícia faz operação na Rocinha. Nem é entrevistado. Agência Estado informa sobre preparativos para invadir a favela. |
Boato sobre invasão. Morte do cinegrafista Gelson Domingos. |
Nem teria se excedido em “festa de despedida” e procurado atendimento médico. |
Anunciada invasão no fim de semana seguinte. |
É preso Nem. Cabral Filho diz que invasão termina no dia 10. |
Ocupação da Rocinha. |
Beltrame fala em “alguma medida judicial” para incentivar Nem a delatar policiais corruptos. |
Que diferença faz a cronologia?
Associada a uma leitura atenta da entrevista escrita por Ruth de Aquino, pode sugerir certo encadeamento.
Primeiro, quando deu entrevista Nem já sabia que a Rocinha seria ocupada (notícia dada pela Agência Estado e repercutida em diferentes mídias). Mais importante: segundo declaração do subchefe operacional da Polícia Civil, delegado Fernando Velloso, em entrevista coletiva (11/11), estava em curso pelo menos desde o dia 1 de novembro uma negociação para a rendição do traficante: “Ele é um arquivo vivo de informações. Nos interessava saber o que ele tinha para falar.” Nessa noite foi publicada a entrevista.
Camburão bloqueado
A prisão de Nem foi um episódio confuso. A mídia desprezou o conflito entre PMs do Batalhão de Choque e policiais civis que queriam levar o traficante para a 15ª Delegacia Policial e chegaram a atravessar um carro diante do camburão da PM. A crônica das relações entre as duas polícias leva a crer que, em circunstâncias “normais”, os PMs teriam chamado reforço contra os policiais civis. Mas apareceram um helicóptero e policiais federais. O que se insinuou no noticiário é que os policiais civis estariam tentando ajudar Nem a escapar da prisão.
Se o traficante estivesse muito preocupado em escapar, teria esperado se completar o cerco à favela?
“Muito ligado à mãe”
Na entrevista, Nem é “muito ligado à mãe, com quem sai de braços dados, para conversar e beber cerveja”. O local da conversa não foi “uma sala malocada”, em que Nem estaria “cercado de homens armados”, mas um cenário que “não podia ser mais inocente”.
A jornalista ouviu uma conversa de Nem com um pastor sobre um rapaz viciado:
“Pegou ele, pastor? Não pode desistir. A igreja não pode desistir nunca de recuperar alguém. Caraca, ele estava limpo, sem droga, tinha encontrado um emprego… me fala depois.”
Ruth de Aquino encontrou um homem “educado, tranquilo”, que a “chamou de senhora, não falou palavrão e não comentou acusações que pesam contra ele”.
A conversa é apresentada em tópicos, estrutura seguida aqui na transcrição de partes das falas de Nem. Quem desconfiar da seleção deve ler a entrevista na íntegra, no endereço fornecido acima.
“UPP, projeto excelente”
UPP – “O Rio precisava de um projeto assim. […] Não gosto de ver bandido com um monte de arma pendurada, fantasiado. A UPP é um projeto excelente, mas tem problemas. Imagina os policiais mal remunerados, mesmo os novos, controlando todos os becos de uma favela. Quantos não vão aceitar R$ 100 para ignorar a boca de fumo?”
Beltrame – “Um dos caras mais inteligentes que já vi. Se tivesse mais caras assim, tudo seria melhor. […]”
Religião – “Não vou para o inferno. […] Acho que Deus tem algum plano para mim. Ele vai abrir alguma porta.”
“Quero pagar minha dívida”
Prisão – “É muito ruim a vida do crime. Eu e um monte queremos largar. […] Na Colômbia, eles tiraram do crime milhares de guerrilheiros das Farc porque deram anistia e oportunidade para se integrarem à sociedade. Não peço anistia. Quero pagar minha dívida com a sociedade.”
(Nota: Nem e seus advogados estariam convencidos de que ele seria acusado apenas por tráfico, para o qual a pena varia de cinco a 15 anos, e que conseguiriam uma sentença de entre seis e oito anos de privação da liberdade. Com o benefício da delação premiada, mais bom comportamento e as disposições já previstas para redução do tempo de encarceramento, Nem estaria em liberdade no máximo dois anos depois de promulgada a sentença. Avaliação de veterano da cobertura policial.)
“UPP precisa fazer inclusão social”
Drogas – “Não uso drogas, só bebo com os amigos. […]”
Recuperação– “Mando para a casa de recuperação na Cidade de Deus garotas prostitutas, meninos viciados. Para não cair na vida nem ficar doente com aids, essa meninada precisa ter família e futuro. A UPP, para dar certo, precisa fazer a inclusão social dessas pessoas. É o que diz o Beltrame. E eu digo a todos os meus que estão no tráfico: a hora é agora. Quem quiser se recuperar vai para a igreja e se entregapara pagar o que deve e se salvar.”
Ídolo − Meu ídolo é o Lula. Adoro o Lula. Ele foi quem combateu o crime com mais sucesso. Por causa do PAC da Rocinha. Cinquenta dos meus homens saíram do tráfico para trabalhar nas obras. Sabe quantos voltaram para o crime? Nenhum. Porque viram que tinham trabalho e futuro na construção civil.”
Policiais– “Pago muito por mês a policiais. Mas tenho mais policiais amigos do que policiais a quem eu pago. Eles sabem que eu digo: nada de atirar em policial que entra na favela. São todos pais de família, vêm para cá mandados, vão levar um tiro sem mais nem menos?”
Tráfico– “[…] Prefiro dizer que entrei no tráfico porque entrei. E não compensa.”
Escravos do tráfico
Na mesma edição da Época em que a colunista pergunta “Vamos ‘beltramizar’?” (“No campo ético, a pergunta é: vamos ou não beltramizar”), os repórteres Nelito Fernandes, Leopoldo Mateus e Hudson Corrêa publicaram a matéria “Os escravos do tráfico na Rocinha. Como o traficante Nem usou mais de 200 moradores da favela para comprar produtos químicos usados no refino de cocaína.”
Depois de ouvir moradores e autoridades, os repórteres escreveram:
“O caso é só mais uma das barbaridades cometidas pela quadrilha de Nem na Rocinha. Quem não dava guarida a bandidos em fuga perdia a casa e tinha de deixar a favela. Surras e execuções eram comuns, e quanto mais gente visse as atrocidades, melhor – Nem acreditava que isso impunha respeito. ‘Minha filha tem problemas de tanto ouvir gritos. Eles passavam arrastando as pessoas por aqui’, diz uma moradora. O cantor MC Marquinhos foi assassinado. Por quê? Apenas por ter cantado em uma favela controlada por uma facção rival. O poder de fogo da quadrilha de Nem foi provado com a ocupação da Rocinha: em quatro dias, a polícia apreendeu 132 armas, entre elas 75 fuzis.”
Seis anos de crueldade e terror
No Globo de domingo (20/11) os repórteres Antônio Werneck e Carla Rocha publicaram a matéria “Traficante Nem impôs violência nos morros evitando sujar as mãos. Bandido deixou Rocinha e Vidigal sob seis anos de crueldade e terror.”
Lê-se:
“Aos 35 anos, o bandido, até ser capturado, usava métodos semelhantes aos de chefões da máfia italiana que passamos a conhecer no cinema: dava um valor enorme à família – diz ter entrado no crime para pagar o tratamento da filha que sofria de uma doença óssea rara −, falava poucas gírias e palavrões e evitava pegar em armas. Mas era ele quem garantia o arsenal da quadrilha e dava a palavra final no tribunal do tráfico. […]
“A verdadeira personalidade de Nem pode ser traçada a partir de relatos de moradores e de muitas escutas feitas quando ele ainda sequer era ‘dono’ absoluto do morro. Seu lado mais cruel se revela. O mestre, como fazia questão de ser chamado, não admitia roubos que podiam atrair a polícia para a favela. Chegou a mandar surrar crianças. Uma vez, o ladrãozinho teve as mãos marcadas ao segurar um ovo quente. Nada podia atrapalhar os negócios.
[…]
“No dia em que as favelas da Rocinha, do Vidigal e da Chácara do Céu foram ocupadas, cães farejadores da Polícia Federal encontraram na mata que cerca as três comunidades dois cemitérios clandestinos. Ossadas foram recolhidas e levadas para o Instituto Médico-Legal (IML). Uma delas pode ser da modelo Luana Rodrigues de Sousa, de 20 anos, que desapareceu em maio deste ano, depois de receber um telefonema. […] Luana teria sido executadas depois de Nem ter descoberto que ela mantinha um relacionamento amoroso com um militar lotado no 23º Batalhão (Leblon).
“− Um dos casos mais absurdos de que me lembro foi quando bandidos da boca espancaram uma criança, acusada de um roubo. O menino levou coronhadas e foi surrado com cabo de fuzil. Quando a mãe procurou o traficante para reclamar, Nem se mostrou surpreso com o fato e determinou que o bandido que surrara a criança fosse também espancado – conta um morador, sem se identificar.
“Manipulador, Nem criou para si um personagem que começou a ser descontruído com a prisão, quando o lobo que sempre foi saltou como fera acuada do porta-malas de um carro.”
A velha glamurização
A única jornalista que teve a oportunidade de entrar na Rocinha e entrevistar o traficante não completou seu trabalho ouvindo outras vozes. Passou a imagem de um homem arrependido, sensato, afável, preocupado com os destinos da sociedade, capaz de reconhecer o mérito das autoridades que o combatiam.
Nas três últimas décadas do século passado, a glamurização ou a idealização de bandidos era comum (Luís Carlos Prestes enviou um representante ao enterro do “benfeitor dos pobres” Meio-Quilo, Paulo Roberto de Moura, em janeiro de 1986).
Mas será que alguém tem o direito, hoje, de alimentar ilusões a respeito de chefões do tráfico, milicianos ou policiais-bandidos?