Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Epitáfio para um mundo impossível

Impressiona o fato de ouvirmos, lermos e assistirmos a jornalistas, alguns realmente ‘especialistas em crises’, abordando a débâcle econômica que se instalou no mundo na última quadra do ano passado. A cobertura tem sido, em geral, sobre as empresas que decretaram falência, a massa de desempregados em espiral ascendente, as tratativas dos diversos governos visando a aprovar aporte de recursos financeiros públicos para a cambaleante iniciativa privada. Em outras palavras, a mídia repercute o caso em si e esquece de analisar a conjuntura do ocaso, em si, do atual sistema político e financeiro do mundo. A informação midiatizada dá conta da doença, dos sintomas, do comprometimento dos órgãos, da entrada ou saída da UTI, mas deixa de lado diagnósticos precisos que levem em consideração as causas da enfermidade e do mal-estar vivido pelo paciente.

Está cada vez mais perceptível, sob qualquer ângulo que se analise, que vivemos em uma ordem mundial cambaleante e insustentável. Um sistema que reproduz um padrão de desigualdade brutal, vitimizando milhões de seres humanos e condenando boa parte da população da vasta maioria de países a uma existência física abaixo da linha da miséria. Longe de estar alinhavando frases soltas ao vento, socorro-me de informação prestada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD): a soma da renda das 500 pessoas mais ricas do mundo supera a das 416 milhões mais pobres. Um multimilionário ganha mais do que 1 milhão de pessoas!

Quatro singelas informações

Esta constatação serve na medida como epitáfio de um mundo impossível de ser mundo, um mundo constantemente a desafiar o mais comezinho bom senso sobre o que nos reserva o futuro. A produção mundial segue de vento em popa e carrega consigo o estigma real das desigualdades sociais. Basta que entendamos que, atualmente, 80% da produção industrial do mundo são absorvidos por apenas 20% da população que vive nos países ricos do hemisfério Norte. E neste tocante, toquem os sinos da indignação nos campos e vilarejos, nas minas de carvão da Bolívia, nas escavações dos garimpos paraenses, nos grotões indianos de inimaginável miséria: os Estados Unidos, embora tendo apenas 5% da população mundial, consomem 30% dos recursos do planeta!

O senso de vergonha e a falta de solidariedade para com ‘os condenados da Terra’ por parte da perversa minoria detentora do capital pode ser melhor mensurado através dessas singelas informações apuradas pela revista Forbes, a bíblia da cabeceira de 10 entre 10 afluentes:

** Os bilionários de hoje, que dizem viver a maior crise de suas vidas, consideram sensato desembolsar a bagatela de US$ 160 mil por um casaco de pele;

** Comprar 12 camisas da loja londrina Turnbull & Asser por US$ 3.480,00;

** Assinar um cheque de irrisórios US$ 241 mil por uma noitada em uma boate noturna, como fez recentemente Robert McCormick, presidente da Savvis, empresa que monitora os computadores da bolsa de Nova York;

** Adquirir o Bentley 728, conhecido como o automóvel mais caro do mundo, pela módica quantia de US$ 1,2 milhão.

Consciência de valores humanos

Fatos, estatísticas e números frios – e infelizmente mais para exatos que para inexatos – como os acima apresentados deveriam fazer parte de qualquer agenda de governo, seja ele qual for, pois há que se sanar tamanho desequilíbrio e tão portentosa desfaçatez com o destino 2/3 da humanidade. Deveriam ser manchete, mas não são. Deveriam estar em Davos anualmente, mas não estão. Deveriam ser veiculados em horário nobre das emissoras de maior audiência na escala planetária, mas não são.

Esse lugar vem sendo preenchido pela derrocada dos grandes conglomerados financeiros e industriais, pela montanha russa desgovernada com que se deseja escrever a cena econômica atual: índices oscilando mais e mais para baixo, pacotes governamentais sempre surgindo no horizonte, filas de desempregados preenchendo percursos equivalentes ao da Grande Muralha da China.

Enquanto a fome é distribuída igualitariamente, o bem-estar e a comodidade de viver continuam privilégio de uns poucos que, encastelados em suas redomas ora trincadas, ousam lamentar a diminuição de seus bônus como presidentes de grandes empresas norte-americanas para míseros US$ 500.000,00 – mesmo que por essa quantia cerca de 500.000 pessoas teriam acesso a, no mínimo, um prato quente de sopa, o que, para parte dessa multidão de deserdados da Terra, significaria a única alimentação acessível em 24 horas.

A crise trombeteada aos quatro ventos pela mídia mundial está longe de ser financeira, econômica, política. A crise, mesmo, aquela que veio para valer, é a crise que fará o mundo mergulhar em uma tomada de consciência jamais tentada, a crise de valores humanos, a crise que irá parir um mundo consciente de que, longe do ideário de que o gênero humano é apenas um, não existe qualquer forma de salvação ou de… cura.

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Mestre em cinema pela Universidade de Brasília, escritor e professor universitário, Brasília, DF; www.cidadaodomundo.org