Sem alarde, numa manhã de 2 de junho de 1959, como escreveu Ruy Castro na Folha de S. Paulo, o caótico Jornal do Brasil deixava de ser um jornal essencialmente de classificados, que chegou a ser conhecido como o ‘jornal das cozinheiras’, para deixar todos os outros nas bancas feios e ultrapassados. No próximo dia 1º de setembro, o jornal que revolucionou em conteúdo e no desenho, a ponto de virar atração internacional, como bem lembrou Fernando Gabeira (abaixo à esquerda) em seu depoimento, também para a Folha de S. Paulo, vai deixar de circular. Não será apenas o fim da edição impressa, de um fantasma dos últimos tempos. ‘É uma escola que se fecha’, como afirmou Ana Maria Tahan, uma das suas últimas editoras executivas. O necrológio coube ao expert Nelson Tanure, responsável por sacramentar o fim de outros veículos de comunicação, como a edição brasileira da revista Forbes, a Gazeta Mercantil, a JBTV, que durou apenas seis meses, e a Editora Peixes, que voltou ao controle dos antigos donos. No meio de tanta tragédia, uma esperança: Tanure confirmou que não pretende mais atuar nesse setor.
‘O Jornal do Brasil já estava morto, já tinha acontecido no momento que Nelson Tanure ficou com o jornal’, afirma Alberto Dines, que se lembra até hoje do dia em que chegou ao Rio para comandar o jornal da condessa Pereira Carneiro, como era conhecida Maurina Dunshee de Abranches Pereira Carneiro. ‘Foi numa segunda-feira, 6 de janeiro de 1962, uma data que não posso esquecer’. O problema todo, para Dines, é que Tanure ‘não gosta de jornalismo, não é questão de ser empresário ou não do ramo, mas de gostar ou não. Se ele quisesse, encontrava várias saidinhas. Eu ainda acho que tem, mas precisa ter talento e amor . Em 1997 ou 1998, o Ari de Carvalho, que não tinha o menor caráter, tal como o Tanure, quis assumir o JB, e não deu certo, mas o Ari gostava de jornalismo pra caramba, adorava jornalismo’.
Sucessão de erros
Segundo Dines, a grande questão que se coloca é que ‘o jornalismo só é compreendido se ele for competitivo. Por ser democrático, tem de ser plural, tem de ser competitivo. O que me espanta é a resignação da grande imprensa. Acham normal o fim do Jornal do Brasil, e não é. Não percebem o quanto é prejudicial para o todo. Jornalismo só ganha quando existe competição. O Globo não ganha, perde com o fim do JB‘.
Dos seus 119 anos (1891/ 2010), bastaram alguns anos, de 1956 até fins dos anos 80, para criar uma mística que acabou demolida por uma sucessão de erros administrativos, financeiros e editoriais. Tanure, segundo Carlos Brickmann, ‘como sempre, pegou o bagaço, chupou e jogou fora’. A revolução no JB foi comandada por Jânio de Freitas, mas o processo todo teria sido consolidado por Alberto Dines e sucessores. E com a ajuda de uma grande equipe, que poderia ser chamada, de acordo com Ricardo Kostcho, de ‘Seleção Brasileira da Imprensa’.
Para Brickmann, o grande mérito do JB era substituir bem as pessoas. ‘As que vinham eram tão boas quanto as que saíam’. Muito tempo depois, Brickmann descobriu que Dines viajava pelo Brasil todo em busca de jornalistas.
Uma dessas mudanças bruscas foi provocada pela criação do Jornal da Tarde, outro veículo que, em seu momento, foi revolucionário. Quem lembra é Ari Schneider, que chegou quando toda a sucursal do diário carioca foi contratada para atuar no recém-criado JT. ‘Já assumi a chefia de reportagem’, recorda. ‘Na sede, no Rio, o chefe das sucursais era o Fernando Gabeira. Nos demais jornais, havia uma agenda, no JB uma pauta, com sugestões de nomes para entrevistas, sugestões de temas, enfim uma coisa que não havia em jornal algum’. Schneider conta também sobre o verdadeiro culto que havia ao texto: ‘Gastavam-se horas para fazer um lead [abertura de uma reportagem], não um lead tradicional, que continha o como, onde, quando e por quê, mas o que captasse o interesse do leitor. Naquele tempo dava para fazer isso, dava para buscar a notícia de importância jornalística e de interesse dos leitores. O resultado era um jornal bom de ler’.
Tanto assim, que o atual ministro Miguel Jorge, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (à direita), bem se lembra da sua relação com o jornal, antes mesmo de chegar na Faculdade de Jornalismo Cásper Libero, em 1963, conforme depoimento dado por e-mail:
‘Mineiro de Ponte Nova, na Zona da Mata de Minas, praticamente, aprendi a ler no JB, que chegava um dia depois à cidade, trazido pela Leopoldina ‘Reluai’ (Raiway), como falávamos. Portanto, quando, já morando em São Paulo, e em 1963, no primeiro ano da Cásper Líbero, vi no mural da faculdade que a sucursal do JB procurava jovens para estágio, fui para lá na mesma tarde. Acho que dei sorte, pois como a Cásper era a única escola de jornalismo do Brasil e o JB era pouco conhecido em SP, fomos somente eu e o Bill Duncan, que também começava o curso (como era de Campos, no Estado do Rio, sabia, bem, o que era o JB). Os dois foram contratados, e isso foi um sonho, pois esse era o grande jornal da época. Odylo Costa, filho, (é assim mesmo que ele assinava) tinha feito uma grande reforma no ‘jornal da Condessa’, como era conhecido (a condessa era a viúva do Conde Pereira Carneiro, proprietário do jornal, e que tocava a empresa). O Alberto Dines era o diretor de redação e havia muitos nomes de jornalistas conhecidos no JB, o jornal de melhor texto e de melhor apresentação gráfica da época. O padrão de texto era simples: os dois primeiros parágrafos eram o lead (assim mesmo, em Inglês), com as informações mais importantes; em seguida, vinha um intertítulo, e a partir daí, os fatos eram narrados de forma cronológica. Quem quisesse ter os dados básicos, apenas, ficava no lide; se quisesse todos os detalhes, lia o resto da matéria. Para quem teinha 18 anos, era uma glória nunca imaginada trabalhar no JB – mais que isso, glória e sonho, teria sido trabalhar na sede. Mas a sucursal de São Paulo, a mais importante sucursal do jornal, era um começo que eu nunca tinha imaginado’.
‘Significou aprender tudo, praticamente – na sucursal, cobríamos qualquer assunto, de desfile de moda a política, de economia a polícia, de corrida de automóveis (sim, havia grandes corridas: as 24 Horas de Interlagos, as Mil Milhas, as 500 Milhas, as 12 Horas – e, claro, o JB tinha um completo caderno de automóveis, acho que um dos primeiros da imprensa brasileira). Pode-se imaginar a tragédia que foram os primeiros textos de um foca com quatro meses de faculdade de Jornalismo e que, de jornal, tinha a experiência de ter feito o jornalzinho do colegial). Mas foram grandes professores – não me lembro dos nomes completos, mas me lembro do Nelson e do Hélio, muito mais velhos (muito, mesmo, ou a juventude nos fazia ver homens maduros como muito mais velhos?), com ‘o texto JB’ no sangue. Trabalhar no JB significou, até, a mudança de meu nome: em janeiro de 1964, mandei minha primeira matéria que esperava que pudesse ser assinada. Era sobre os 410 anos da cidade de São paulo. Envieii com ‘Texto de Miguel João Jorge Filho’, meu nome completo, e que pouca gente conhece, hoje em dia – ‘Fotos de Manoel Motta’. Era a pretensão de que fosse assinada, pois isso não se pedia, naquela época. Não aguentava esperar o dia 10 de janeiro, que finalmente, chegou, e com ele, o jornal – os exemplares da redação eram entregues às 11h00, mais ou menos. A matéria ocupava toda a primeira página do Caderno 2, com a assinatura ‘Texto de Miguel Jorge – Fotos…’. Quase caí duro ! Meu pai, o Miguel João Jorge, quando viu, chorou – ele era um chorão, como todo descendente de libanês – não de orgulho, mas de tristeza, pois com esse nome, ninguém saberia que esse jornalista que assinava matérias no JB era filho dele (ele superou isso, rapidamente). Para mim, além de me dar o nome profissional, trabalhar no JB me ensinou a ser jornalista, a trabalhar muito, a me debruçar na Olivetti e escrever, rescrever, tornar a reescrever – era o aprendizado do sofrimento do lead’.
‘Durante anos, o JB representou o melhor do jornalismo e da fotojornalismo – nele, estavam alguns dos melhores repórteres e fotógrafos do Brasil. Independente, honesto, completo, durante décadas foi o melhor jornal do Brasil. Qualquer país perde quando morre qualquer jornal, mesmo em uma pequena cidade do interior. Perde porque, sempre, é uma voz que se cala. E o silêncio, especialmente de veículos que tiveram a importância do Jornal do Brasil, representa mais do que, apenas, o fim da circulação de um veículo. No caso do JB, aliás, como no caso de todos os jornais que param de circular, se repete a máxima do jornalismo, até hoje nunca desmentida: um jornal começa a morrer dez anos antes. Essa morte é sempre uma morte anunciada, e todos nós, que víamos o que acontecia com o jornal, nesses últimos anos, sabíamos que, inetitavelmente, chegaria o dia em que o último texto seria ‘Aqui jaz o JB – saudades eternas’.
Sem lágrimas
A opinião de Miguel Jorge é compartilhada por todos os que passaram pela sua redação. Os elogios transbordam, quer pelo texto apurado ou pelo desenho de suas páginas, trabalho de Amílcar de Castro inspirado no pintor holandês Piet Mondrian. Mas esse jornal, sobre o qual Kotscho ousou afirmar, em seu blog, ‘que nunca mais existiu uma redação daquela qualidade em jornal algum’, acabou definhando, conservando apenas a máxima transcrita por Gabeira na Folha de S. Paulo, de que um jornal leva mais de uma década para morrer.
A sombra tem um passivo que chegaria a R$ 1 bilhão e parte de suas receitas bloqueadas para pagamento de dívidas trabalhistas e fiscais, situação que dá pânico em prováveis investidores. De 2001, quando Tanure assumiu, até agora, passaram pelo jornal 11 diretores e, dos 240 profissionais contratados na época, restaram apenas 60, número que poderá ser reduzido ainda mais. Até acabar. As edições também minguaram e, em março, a circulação não passava de 21 mil exemplares.
Para Brickmann, o JB não morreu agora, morreu antes. ‘Parei de ler o JB havia anos. É triste pelo que representou. Foi uma tremenda escola’. Segundo Ana Maria Tahan, ‘é mais um capítulo que se encerra de forma triste, e quando isso acontece, a gente lamenta’.
Os atuais herdeiros da família Nascimento Brito não quiseram comentar a morte anunciada do JB. Quem atendia o celular de José Antônio (Josa Brito) dizia que ele não estava no escritório, que não iria falar sobre o jornal. No celular do seu irmão Francisco (Kiko Brito), a chamada caía na secretaria eletrônica. Por isso, não é possível confirmar se lágrimas foram derramadas.