Entre o mensalão e o mensalinho, com um Paulo Maluf de permeio, o noticiário policial, digo, político, da imprensa diária conseguiu encontrar espaço – e repórteres capazes de preenchê-los – para encarar a eleição petista no domingo que vem, 18/9.
O Valor Econômico, que vem investindo em diversas edições na sucessão no PT – mais do que os diários de interesse geral – emplacou no último fim de semana (o jornal da sexta vale também pelo sábado e o domingo) duas matérias de fôlego sobre o assunto, produto do trabalho de nove repórteres (Caio Junqueira, César Felício, Cristiane Agostine, Ivana Moreira, Janaina Vilella, Marli Lima, Paulo Emílio, Sérgio Bueno e Thiago Vitale Jayme) em sete capitais (São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Brasília, Recife, Curitiba e Porto Alegre).
O título da primeira e mais extensa reportagem – ‘Ameaça de segundo turno leva Berzoini a buscar votos fora de SP’ – não dá idéia da riqueza do mapeamento, de norte a sul do país, da relação de forças entre as três principais facções em confronto no partido (das sete com candidatos à sucessão do ex-presidente José Genoino).
A mais robusta ainda é o Campo Majoritário, que controla 60% das 81 cadeiras do Diretório Nacional, cujo candidato nos idos de A.M. (antes do mensalão) era o próprio Genoino, substituído pelo ex-ministro da Educação Tarso Genro e, enfim, pelo ex do Trabalho, Ricardo Berzoini.
Mas, ao contrário do pleito em que o Campo fez barba, cabelo e bigode, elegendo, além do presidente (José Dirceu), o secretário-geral (Silvio Pereira), o tesoureiro (Delúbio Soares) e outros companheiros menos familiares para os não-iniciados, desta vez, prevê o Valor, o segundo turno (em 9 de outubro) é ‘praticamente certo’.
Esfolados pelos escândalos, os majoritários poderão se dar por satisfeitos se faturarem 40% dos votos no que os petistas rotularam, burocraticamente, PED (Processo de Eleição Direta). Em princípio, estão aptos para votar 825 mil filiados, distribuídos por 4.637 cidades (83% do total do país). Os cargos em disputa, nos níveis nacional, estadual e municipal, somam 82,8 mil. Trata-se, pelo menos nos números, de um verdadeiro partidão.
Latem nos calcanhares dos campistas de Berzoni os candidatos a presidente da Articulação de Esquerda, Valter Pomar (atual 3º vice do partido, que não apita nada) e da Democracia Socialista, Raul Pont (deputado estadual no Rio Grande do Sul). Por fora, mas não fora do páreo, vem Maria do Rosário (deputada federal pelo Rio Grande), do Movimento PT.
Se houver de fato segundo turno e se o mais votado deles conseguir a proeza de unir ao seu redor a maioria das correntes de esquerda, o PT poderá deixar de ser aquele que deu no que deu depois que dezenas de milhões de não-petistas deram a Lula acesso ao Planalto.
Rolando na lama
Mas, hoje como hoje, para repetir o dito clássico, quem disser que sabe o que vai acontecer no partido é porque está mal informado. A citada matéria do Valor, além de outras, da Folha e do Estado de S.Paulo, de que se falará daqui a pouco, deixa entrever um emaranhado de denominações, interesses, quedas-de-braço, afinidades e antagonismos doutrinários e pessoais de deixar aturdidos os leigos.
Para complicar as coisas, os estatutos da legenda permitem que se vote separadamente no cabeça de chapa – e na chapa. Por exemplo, votar no Campo, mas não em Berzoini, ou vice-versa (se bem que o mar no PT está mais para vice do que para versa).
Segundo a reportagem, os seguidores de José Dirceu – sim, ele ainda os tem e não são desprovidos de influência – ‘recomendam o voto na chapa [do Campo] e liberam o voto para presidente’.
Outro ‘grande eleitor’ do PT é a ex-prefeita Marta Suplicy. Ela e o senador Aloizio Mercadante, como se sabe, rolam na lama pela candidatura ao governo paulista, a ser decidida numa prévia interna. O vale-tudo atravessa a eleição partidária. Um em cada quatro ou cinco votantes potenciais pertence ao PT paulista.
Nessa briga de foice, só perder é feio. Por isso, boa parte do pessoal de Marta, a exemplo da ‘família Tatto’, como escreve o Valor – outros, se pudessem, escreveriam famiglia Tatto –, fechou com o radical moderado (não confundir com moderado radical) Valter Pomar. Berzoini pende para Mercadante.
A matéria aponta ainda mais um rolo: para manter a hegemonia nos Estados, ‘em meio à confusa situação nacional’, os majoritários fazem alianças pontuais com os adversários de Berzoini. O campista pede os votos dos democratas socialistas para o diretório estadual e em troca soma com Pont para a presidência nacional, e Berzoini que se arranje.
Quente mesmo, no entanto, é a história intitulada ‘Campanhas desmotivadas temem abuso do poder econômico’ – ou, na versão dos repórteres Guilherme Evelin e Mariana Caetano, no Estadão de domingo (11/9), ‘PT teme fraudes em eleições internas’.
‘Candidatos aos diretórios regionais nos Estados maiores estão gastando em torno de R$ 50 mil. As campanhas nacionais podem chegar a R$ 200 mil’, informa o Valor. ‘O temor do abuso do poder econômico, em um quadro com a militância desmotivada pelos escândalos que sacodem a sigla, é geral.’
137 petistas, um só endereço
Poder econômico serve para arcar com o transporte de eleitores e pagamento do dízimo de filiados’ [quem não estiver em dia com o partido não vota], explica o Estado. Outra forma de burla são as filiações em massa há pelo menos um ano [prazo mínimo para o novo companheiro ter direito a votar e ser votado na agremiação]. No município mineiro de Tupaciguara, conta a reportagem, foram descobertos 137 filiados com endereço idêntico.
E os petistas aspeáveis, que dizem disso aos jornais?
** ‘A corrupção acontece em todas as eleições do PT.’ (Chico Vigilante, candidato do Campo ao diretório do Distrito Federal)
** ‘Infelizmente é uma realidade no partido. Vamos pedir para que esta seja a última eleição direta. É um tráfico de dinheiro, uma vergonha.’ (Antonio Carlos de Andrade, da Ação Popular Socialista)
**‘O problema atinge todas as correntes.’ (Gleber Naime, secretário de Organização do PT)
**‘Minha preocupação maior [é] a corrosão das relações internas do PT com as práticas fraudulentas.’ (Valter Pomar)
** ‘A cultura política, a cultura de disputa que está no partido hoje, não é positiva. Não é uma cultura de esquerda ainda, é quase de um partido tradicional.’ (Tarso Genro).
‘Quase’, pelo visto, é modo de falar.
Mercadoria em ordem
A diferença é que os partidos tradicionais parecem ser menos fragmentados. ‘Ninguém sabe ao certo quantas são as facções petistas hoje’, escreve o repórter Fábio Zanini, em um trecho da mais interessante das seis competentes matérias que a Folha de domingo dedicou às eleições petistas [os signatários das outras são Chico de Gois, Catia Seabra e Paulo Peixoto].
Vale a pena transcrever o resto do trecho da reportagem ‘PT discute pacto para redefinir tendências’:
‘Estima-se que, entre nacionais, regionais e municipais, sejam ao menos 50 [as facções]. Muitas funcionam como subpartidos: têm suas próprias Executivas, sedes físicas e competem por quadros políticos da mesma forma que legendas competem por deputados’.
Quantos dos leitores da Folha, ou dos consumidores de informação política em geral, sabiam disso?
Uma diferença entre o Campo e os demais agrupamentos é que ele é uma federação de facções, um centrão. Ou, na opinião do deputado paulista Ivan Valente, da corrente Ação Popular Socialista, ‘essa concentração criou uma sociedade secreta no PT, cujo produto foi Delúbio Soares’.
Sem o produto e os seus inumeráveis subprodutos, dificilmente a imprensa se veria na obrigação de aproveitar a ensancha de uma eleição partidária para dar ao grande público as chances de bisbilhotar as intimidades do PT. Os leitores do Valor, da Folha e do Estado – nessa ordem e nesse particular – receberam mercadoria em ordem.
[Texto fechado à 1h30 de 13/9]