Novo surto de pesquisite, nova mania na praça jornalística. Como ainda falta um ano para as eleições municipais e a disputa está pífia, a Folha de S.Paulo inventou uma originalíssima sociologia numerólogica que pode se resumida na seguinte equação: ‘Se você não sabe quem é, nós sabemos – veja as nossas estatísticas e descubra o seu grupo’.
No domingo (7/10), dois dias depois da decisão que consagrou a fidelidade partidária, não havia qualquer referência na primeira página da Folha sobre a autêntica revolução política promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O alto da capa do jornal estava inteiramente ocupado por um ‘exclusivo’ sobre a família brasileira – sondagem do Datafolha sobre o novo perfil da família brasileira:
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33% acham que a mulher deve deixar de trabalhar para cuidar dos filhos**
38% consideram moralmente errado o sexo entre não casados**
69% afirmam que a família é muito importante (eram 61% em 98)**
38% apontam a fidelidade como o mais importante para o casamento**
34% dos homens e 8% das mulheres dizem ter traído o atual companheiro(a).Imprensa burocratizada
E daí? Qual a tendência? Para onde caminha a família brasileira?
Quem são e o que pensam os 67% que discordam da idéia de que mulher deve ficar em casa cuidando dos filhos? Como ficam os 67% que não acham moralmente errado o sexo entre pessoas não casadas? Quantas vezes casaram-se os 69% que consideram a família muito importante? Qual o indicador que se pode extrair dos 72% que não concordam com a afirmação de que a fidelidade é a questão mais importante do casamento?
Os jornais antigamente tinham seções de charadismo, hoje oferecem diversão sofisticada – a ilusão de pertencer a um segmento numérico, personalizar-se através de modismos, aninhar-se entre iguais, fazer parte, pertencer. E perecer no meio da grande sopa de números enganosos e inexatos.
A matéria da Folha foi publicada num belo encarte de 78 páginas, ótimo papel, patrocinada por uma rede de supermercados e alguns de seus fornecedores. Não fossem os artigos e depoimentos pessoais que acompanham os chatíssimos quadros, o conjunto mereceria ir direto, sem abrir, para o lixo.
Esse é um jornalismo que não precisa ser inventado. É por isto que um filme de ficção como Tropa de Elite consegue ser mais candente, mais mobilizador e mais próximo da realidade do que a imprensa burocratizada e embasbacada que o badala sem saber exatamente por que.
Processo de emburrecimento
Com tantos ‘especiais’ e ‘exclusivos’, logo descontinuados na edição seguinte, cria-se uma imprensa desarvorada, leitores baratinados, capazes de se fidelizar apenas com brindes colecionáveis ou quando lhes é oferecida a oportunidade de participar de um linchamento público.
O Estado de S.Paulo, no mesmo domingo, também esqueceu de oferecer na primeira página a seqüência do julgamento do STF de quinta-feira (embora contivesse algumas matérias nas páginas internas). Quem o fará agora? Na próxima semana, com o feriadão, as revistas de notícias sairão mais ligeiras do que o habitual. E fidelidade partidária será assunto velho e batido.
Para desenhar com precisão o novo perfil da família brasileira será preciso dizer que ela está emburrecendo rapidamente graças à mídia que, no lugar de servi-la, a engana com o pseudoconhecimento.
Sujar os sapatos
O Globo também sapecou no mesmo domingo (7/10) uma manchete estatística – ‘Mortes nas estradas já são 4% do total’. A diferença é que nessa mesma edição um bando repórteres transformou estes números em reportagens, em histórias.
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Os jornais de olho na internet
M.R.S. # copyright El País / O Estado de S.Paulo, 9/10/2007
O jornalismo deve escapar da trivialidade e não se deixar arrastar pela banalização das notícias. Essa foi uma das conclusões a que chegaram no fim do mês passado Alan Rusbridger, diretor do diário britânico The Guardian, e Javier Moreno, diretor do jornal espanhol El País. Num debate realizado dentro do programa do Hay Festival de Segóvia [de 27 a 30/9/2007], moderado pela escritora e ex-diretora do jornal The Independent, Rosie Boycott, Rusbridger e Moreno analisaram o futuro do jornalismo.
‘Os jornais sérios estão em declínio. Hoje se tende a fazer um tipo de jornalismo que banaliza a realidade. Se tem de ser assim, eu estou fora’, afirmou Alan Rusbridger. Para o diretor do diário britânico, é importante que os jornais não caiam nessa tendência. ‘Não creio que o jornalismo esteja em crise’, afirmou, por sua vez, Javier Moreno. ‘Se o ritmo continuar assim, seria de se preocupar também com o que vai acontecer com a democracia. A democracia se assenta nos espaços públicos de discussão que os jornais criaram. Se os jornais não são capazes de alimentá-los, é a democracia que está em crise.’
Para os dois diretores, os espaços de discussão que as informações suscitam são vitais. Além disso, eles vêem a internet como o futuro do jornalismo, embora com nuances. O diretor de The Guardian prognostica o final da tinta e do papel. Para Moreno, contudo, a internet não é uma ameaça. ‘A internet vai salvar o jornalismo. Agora, a web consegue mais público, mais influência do que nunca. Se conseguirmos transferir para a internet esse lugar de debate e discussão estaremos prestando um grande serviço à sociedade’, disse ele.
‘Neste momento, a pressão dos debates sociais está na internet. Os leitores do The Guardian e do El País querem fóruns, querem participar, debater a atualidade, e se não os oferecermos, eles os procurarão em outro lugar’, afirmou Rusbridger.
A imediatez da internet tem seus riscos. Riscos que, para o diretor do jornal britânico, são, basicamente, a superficialidade dos conteúdos. Algo que, para Moreno, precisa ser combatido. ‘É fato que a internet tem uma tendência a fragmentar os públicos. Muito do que aparece na web são trivialidades que solapam o fórum público. Mas alguns jornais estão lutando contra isso. Eu posso comprovar que o mais lido todos os dias é elpais.com, e exceto algumas coisas – que costumam conter as palavras sexo, grátis, ou Fernando Alonso –, eu me sinto orgulhoso, porque entre as dez mais visitadas costuma haver muitas notícias importantes.’
A internet pode armazenar perfis e gostos dos usuários. Isso permite lhes oferecer um produto de acordo com as suas preferências. Mas, para Moreno, essa adaptação supõe um risco. ‘O jornal ganharia um sentido diferente, mas é perigoso. Destruiria um espaço comum. Agora o leitor descobre algo que não pensava que estivesse ali. Romper isso, acabar com esse fator surpresa, é arriscado, não para os jornais, que fariam mais negócios, mas para a sociedade.’
A jornalista britânica Rosie Boycott, uma das figuras mais importantes dos meios de comunicação da Grã-Bretanha, perguntou sobre as diferenças entre ler o jornal em papel e fazê-lo num computador. ‘Eu gostaria que os jornais em papel existissem para sempre, mas não podemos refrear o futuro e impedir que as pessoas tenham acesso a toda a informação da internet’, afirmou Alan Rusbridger. Para o diretor do The Guardian, os jornalistas terão de se acostumar com a imediatez da internet. ‘Um jornal não é seu papel. São seus redatores, seus fotógrafos, seus editorialistas, seus valores. Sua visão compartilhada com os leitores’, disse Javier Moreno. ‘The Guardian, embora tenha crescido, continua sendo o mesmo tanto em papel como na internet. Ele não mudou, continua mantendo sua visão compartilhada com os leitores’, afirmou o diretor do El País.
Rusbridger é um apaixonado por novas tecnologias. Ele o revelou na ocasião mostrando ao público que assistia ao debate num pequeno telefone celular. ‘É um iPhone’, ele disse. ‘Embora não seja perfeito, pode-se ler texto nele. Algum dia criarão algum aparelho em que se poderá ler texto tão comodamente como no papel. Os jornais precisam avançar e se adaptar a isso.’