Lady Chatterley já era. As aventuras da jovem Constance com o guarda-caças Oliver podem ter incendiado a imaginação de outras gerações, mas D. H. Lawrence é hoje um romancista para menininhas. Escritor quente, mesmo, é o anônimo redator da ata do Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central. Cada reunião tem duas etapas, uma na terça, outra na quarta-feira, e nenhum participante conta o que rola a portas fechadas. O relato, divulgado uma semana depois, é farto em argumentos e números, mas discreto quanto aos detalhes de quem fez isto ou aquilo.
Nesse aspecto, há uma semelhança entre a ata e o envelhecido romance inglês. Ainda há uma polêmica, entre os críticos, sobre o que ocorreu na cena em que Oliver agarrou Constance por trás. O escritor sonegou os detalhes, deixando ao leitor o trabalho de interpretar se o fato subentendido foi heterodoxo ou não.
A controvérsia sobre a modalidade do intercurso entre o guarda-caças e sua patroa é hoje meramente acadêmica. Variações não provocam mais escândalo, assim como já não chamam atenção as interpenetrações das classes. A mobilidade social, para cima e para baixo, é um dado aceito sem grande resistência.
Muito mais excitante é a polêmica entre os intérpretes da ata. “BC avisa que os juros vão cair em ritmo mais lento”, noticiou O Globo em manchete, no sábado (9/9). A Folha de S.Paulo disse o contrário: “Juro pode cair mais 0,5 ponto, sinaliza BC”. O Estado de S.Paulo foi cauteloso: “Corte dos juros vai continuar, diz BC”, foi o título de abertura do caderno de Economia. O texto, com igual prudência, chamou a atenção para as duas possibilidades – 0,25 e 0,50 ponto porcentual.
Duas mensagens
O talento literário do autor da ata revela-se mais admirável quando se examina o texto com a cabeça mais fria, depois do primeiro impacto. A finura consiste, em boa parte, em pôr uma pitada de mistério numa narrativa sem grande novidade – ou, pensando bem, sem nenhuma novidade.
Quando o Copom decidiu reduzir a taxa básica de 14,75% para 14,25%, não havia dúvida sobre a tendência da inflação. A alta de preços vinha diminuindo rapidamente. As projeções mais citadas apontavam claramente para um número abaixo do centro da meta, neste ano. As perspectivas para 2007 eram também muito favoráveis. Além disso, não havia dúvida sobre a forte desaceleração da economia no segundo trimestre.
A ata registrou os argumentos mais previsíveis do mundo. Argumentos previsíveis também agitam os corações e mentes, é verdade, mas a explicação, nesse caso, foi oferecida há muitos anos por Chico Anísio: o público se diverte, mesmo, é com piadas conhecidas. Mas o toque de finura é outro. É o toque de mistério, que dá ao leitor o prazer um tanto masoquista da insegurança.
Mesmo esse toque de mistério, quando bem examinado, perde parte do encanto. Ao afirmar que “o Copom entende que a preservação das importantes conquistas no combate à inflação e na manutenção do crescimento econômico […] poderá demandar que a flexibilização da política monetária seja conduzida com maior parcimônia”, o autor da ata não conta grande novidade.
Esse trecho contém duas mensagens simples e meramente sensatas. Em linguagem mais direta e menos encantadora, a tradução seria a seguinte: 1) a decisão pode ter sido surpreendente, mas o BC continuará formulando as decisões, em cada reunião, com base nas novas informações e projeções, que podem ser diferentes das atuais (quem sabe, por exemplo, para onde vai a economia americana e que diabo acontecerá no Oriente Médio?); 2) o Copom pretende continuar no comando da política monetária e das expectativas.
As mesmas lentes
Afinal, como poderia dizer o leitor mais prosaico, o pessoal do BC ganha mesmo para esse trabalho. O pessoal do mercado financeiro também ganha para fazer de cada ata do Copom um evento de importância transcendental. E a imprensa? Gastar um espaço enorme com declarações de analistas que apontam razões para esperar um corte de 0,25 ou de 0,50 ponto na reunião de outubro pode ser uma questão de gosto literário. De toda forma, sucesso inegável é o do anônimo redator da ata, que a cada mês e meio, com um pequeno truque, desbanca os melhores novelistas da TV.
A cobertura econômica tem-se tornado mais variada e pauteiros e editores, na maior parte dos grandes jornais, têm feito um esforço para escapar da rotina. Na última semana, boas matérias enriqueceram a discussão a respeito da proposta de Orçamento para 2007, um assunto repleto de implicações econômicas e políticas. Além disso, têm aparecido com alguma freqüência reportagens no bom e velho estilo em que os jornalistas contam o que vêem, sem depender de intermediários. Isso revaloriza o material impresso e é uma boa forma de responder à concorrência da TV e de outros canais eletrônicos de comunicação. Mas, apesar desses bons lances, permanece a tentação de ver o mundo através das lentes do mercado financeiro.
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Jornalista