O jornal O Estado de S. Paulo comprometeu a própria credibilidade perante seus 232,8 mil leitores diários (*) ao dedicar, na edição do dia 22 de agosto (domingo), uma página dupla (duas páginas vizinhas) para publicar um conjunto de textos, aparentemente jornalísticos, sobre o conflito entre ruralistas e indígenas.
Aparentemente jornalísticos porque, segundo o site Intercept, os textos foram produzidos por uma agência publicitária com o suporte financeiro de uma instituição mantida por associações de grandes ruralistas e por empresas produtoras de adubos e agrotóxicos. O objetivo é fazer lobby contra o STF que deve julgar nos próximos dias um processo regulando a demarcação de terras indígenas em todo país.
A página dupla foi produzida pela empresa Estadão Blue Studio, que segundo consta em sua página web, cria “soluções publicitárias inovadoras e orientadas à performance”, ou seja, promoção dos interesses (políticos e comerciais) de seus clientes. Logo é uma produção publicitária disfarçada de material jornalístico com o objetivo de promover a ideia de que o STF deve derrubar o chamado “marco temporal”, que segundo os ruralistas “pode acabar com o agronegócio no país”.
O conjunto de três textos publicados pelo Estadão foi patrocinado pela organização AgroSaber, que se apresenta como uma “agência de notícias do agronegócio” e que segundo o Intercept é uma entidade vinculada à Frente Parlamentar da Agropecuária, a associações de produtores rurais como a ABRAPA (produtores de algodão), APROSOJA (soja) e ABRASS (produtores de sementes).
Não há nada de ilegal no fato de um jornal criar uma agência publicitária para produzir anúncios. E nem há nada condenável no fato dos anúncios serem pagos por empresas, governos ou organizações civis. Mas quando o material publicitário usa o formato conhecido no jornalismo como “publi-reportagem”, ele disfarça interesses políticos ou corporativos como se fossem informações sérias, garantidas pela credibilidade do jornal.
Enganar o leitor usando este expediente pode ser uma solução financeira de curto prazo, mas aumenta a chance de acabar se transformando num problema de longo prazo, quando o vírus da dúvida na credibilidade do jornal contagiar seus leitores. O descrédito é praticamente a sentença de morte de um jornal, especialmente na conjuntura atual com a crise no modelo de negócios da imprensa.
Engodo lucrativo
As dificuldades financeiras da maioria dos grandes conglomerados jornalísticos nacionais e internacionais tornam mais atraente a alternativa das “publi-reportagens”, que são hoje mais comuns do que se pensa na imprensa mundial. Só que a maioria absoluta deste tipo de desinformação paga passa desapercebida pelos leitores, porque as manchetes e o espaço dado no papel ou em tempo de transmissão via rádio ou TV impacta muito mais do que pequenas inserções identificando os verdadeiros interessados e objetivos do material publicado.
É nestas circunstâncias que aumenta a importância de organizações jornalísticas, como o Intercept e a Agência Pública, dos grupos de checagem de fatos e de instituições como o Observatório da Imprensa. Os conglomerados industriais na imprensa brasileira não dissimulam sua hostilidade aos críticos de publicidade disfarçada de notícia, deixando de levar em conta que a verificação e cobrança da credibilidade das notícias, artigos e entrevistas são na verdade uma preocupação com o futuro dos jornais, revistas e programas audiovisuais de informação.
A premeditada confusão entre jornalismo e publicidade começou a ser discutida em larga escala já na primeira década do século atual, com a polêmica em torno da chamada publicidade nativa (ver texto publicado aqui no OI). David Ogilvy, criador da expressão, afirmou que a publicidade disfarçada de notícia poderia aumentar em até 50% a tiragem de jornais impressos. Segundo o respeitado Nieman Lab, da Universidade Harvard, a publicidade nativa gerou receitas de 17 bilhões de dólares para jornais no mundo inteiro em 2017. Aqui no Brasil, não há dados sobre esta modalidade de anúncio pago.
É compreensível a preocupação dos grandes jornais brasileiros diante da queda acumulada de 12,2% na circulação das versões impressas desde 2016. Mas o preço da sobrevivência de empresas, que no passado acumularam lucros consideráveis, não justifica vender ao leitor versões distorcidas da realidade como se fossem notícias verdadeiras.
(*) Soma dos leitores da edição impressa (de maio), e da versão online (em junho), segundo o Instituto Verificador de Circulação (IVC) .
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.