Yo no creo en conspiración de prensa, pero las conspiraciones de lectores… que las hay, las hay.
A frase acima é uma brincadeira, naturalmente. É uma paráfrase de outra, aquela que fala em brujas etc. Eu a redigi no meu melhor portunhol pensando no nível de desaforo de parte dos e-mails que chegam aos articulistas aqui do Observatório e de outros sites. São raivosos, brutais, bestiais. O pior é que se trata de uma doença generalizada e suprapartidária: da esquerda e da direita, vêm ondas de ataques igualmente deseducados, que nos agridem sem argumentar, ofendem sem pestanejar, xingam em caixa alta. Armam tocaias para jornalistas de todos os matizes, com fúria e desespero. A internet virou um ambiente inóspito, corrosivo, um beco de baixo calão. É desanimador. Às vezes a gente pensa em desistir, e se pergunta: mas então era isso? É assim que era para ser o tal jornalismo da nova era?
Tento inferir de onde viria tal profusão de injúrias e infâmias. Talvez o grande culpado não seja o cinema falado, mas a televisão. Sim, a televisão. Na forma de caricatura, lá vai a explicação da minha hipótese heterodoxa. Penso nas posturas habituais da dupla Beavis e Butt-Head diante da TV. Os dois se batem contra o monitor vomitando impropérios entre arrotos que parecem risadas e risadas que soam como arrotos. Imagino um sujeito grudado no sofá, berrando vulgaridades para a mocinha seminua que dá duro no programa de auditório e que, por certo, não pode escutá-lo. Ele não sabe que a insulta, ou, pior, supõe que a elogia. Em seu delírio, acredita que a rapariga, se o ouvisse, tomaria seu grunhido gutural por galanteio.
A televisão adestrou o sujeito anônimo, diluído na multidão, a falar sozinho entre quatro paredes. Adestrou-o com a promessa de que ele jamais seria visto nem ouvido. Ela o ensinou que seus impulsos primários eram a razão de ser dos meios de comunicação de massa. Ela o converteu para a lógica do entretenimento, segundo a qual todo critério de qualidade repousa sobre as paixões mais baixas, inconfessáveis e anônimas que ele experimenta em seu próprio corpo.
Diante do monitor, esse sujeito foi intimado, durante décadas, a vituperar para ninguém. A televisão o domesticou a persistir na ilusão de sua própria invisibilidade como se ela fosse um manto protetor. Ela o ensinou a gozar na invisibilidade. ‘Sou invisível diante da atriz’, ele comemorava. ‘Sou inaudível para o apresentador do telejornal.’ E assim, na presunção suprema do nada que significava, aprendeu a fazer micagens, sonoras ou gestuais, contra o vídeo. Para ele, o termo invisibilidade virou sinônimo de impunidade. Ele se refestelava dentro dela e, ao mesmo tempo, não a suportava – e aqui reside o nó mais complicado. Ele abominava, sem saber, sua própria invisibilidade. Ele a odiava com todas as vísceras.
O ofício cobra pedágio
A minha hipótese heterodoxa tem um quê de anedótica, eu sei, mas as anedotas têm um quê de realidade. Ela flagra o comportamento íntimo da platéia numa sociedade mediada por meios de massa, um padrão de comunicação que mascarava ou descartava sumariamente o comportamento íntimo da platéia. De repente, o que era descartável entrou em cena.
Com a transformação da tela da TV em tela da internet, deu-se um fenômeno estranho. O ser invisível de ontem revelou-se o candidato a tirano da moderníssima interatividade. Vingou-se de sua condição dos tempos do vídeo, a condição de nada. Com a internet, os seres do subterrâneo da democracia, os tais que, com seus gostos deformados pela oferta de sensacionalismo justificavam todas as excrescências do espetáculo, vieram à luz. Que coisa! Eles cospem, esbravejam, ateiam fogo ao diálogo. Eles são contra o pensamento. Querem reduzir o entorno à sua imagem e semelhança: a nada, a restos de nada. Pior: eles se fazem disfarçar de povo, de sua excelência o povo.
Venham da suposta esquerda – contra os latifundiários, por exemplo – ou da direita – contra o MST, por exemplo –, os agressores disfarçados de povo parecem iguais entre si. Ou melhor: são iguais. Inviabilizam o ambiente da comunicação. A internet vai mostrando que o público não é público – é massa, e massa truculenta. Massa antidemocrática, que despreza a dignidade humana, a própria e a dos semelhantes.
Como são mal escritas e vis as aleivosias que chegam para os jornalistas pelo correio eletrônico. Não obstante, como são capazes de ferir. Lembro-me de depoimentos de jornalistas, principalmente mulheres, sobre como as estultices que recebem da internet são capazes de ultrajá-las de fato. O nível desce aos porões do inferno. Há quem seja chamada de prostituta porque opinou contra as pretensões de um político qualquer. É incrível. O ofício do jornalismo, na era das redes interconectadas, passou a cobrar um pedágio de seus praticantes: o pedágio de ser alvo de desaforos diários.
Não venham dizer que faço aqui um queixume elitista: elitista, no limite, é o projeto político dos que agem para silenciar o debate pela intimidação dos seus profissionais. Mais que elitista, totalitário. Elitista, portanto, é quem se põe a serviço desse tipo de agressão.
E o que a imagem tem a ver com isso?
Visto como um vetor de interesses dissimulados, os jornalistas recebem bordoadas de um lado e de outro. São virtualmente – para usar o termo preciso – atropelados por hordas de destemperados fanáticos. Para certa ala de destemperados, tudo o que sai na imprensa é obra do conluio dos ‘patrões da mídia’ para desestabilizar o ‘governo de esquerda’ e promover o retorno glorioso das elites ao poder. Todo jornalista, portanto, não passaria de pau-mandado do patrão.
Claro que há nisso uma dose cavalar de preconceitos múltiplos e combinados: a idéia de que todos os patrões de todos os veículos jornalísticos estão conluiados é um preconceito (há patrões das mais diversas orientações ideológicas, muitos deles competindo entre si); a idéia de que todos se articulam com fins partidários é outro preconceito (a lógica econômica não se confunde com a lógica partidária); a idéia de que são contrários ao governo federal é outro preconceito (muitos ganham dinheiro com esse governo assim como ganhavam no passado; alguns ganham mais).
Para outra ala de destemperados, tudo o que a imprensa publica é produto do lobby sindicalista, ongueiro e comunista para matar as instituições que garantem a livre iniciativa e a liberdade de opinião. Mais preconceitos. Num extremo ou no outro, só há premissas absurdas, que abastecem os franco-atiradores de agressões verbais.
Por obra desses exércitos, as premissas absurdas ganham força. Os preconceitos ganham força. E o que são eles senão imagens distorcidas, imagens fixas e asfixiantes, deturpadas e deturpadoras? Sim, o preconceito é uma imagem, uma imagem que decorre de estereótipos, tal como os definiu o jornalista americano Walter Lippmann (1889-1974), em Public Opinion, publicado em 1922.
Lippmann ensinou que as opiniões que temos sobre isso ou aquilo se assentam como estereótipos – o que não é necessariamente negativo, mas apenas natural. Sem a condensação de sentidos promovida pelo estereótipo, seria impossível organizar o discurso e o entendimento entre as pessoas. As imagens subjetivas, aquelas que cada um traz, como ele diz, ‘dentro da cabeça’, constituem os estereótipos. O repertório de idéias de um sujeito, idéias sobre qualquer coisa, sobre fatos, personagens, países, episódios históricos, constituem um portfólio de estereótipos, originados de todas as fontes possíveis.
‘As formas estereotipadas emprestadas ao mundo não procedem apenas da arte, no sentido da pintura, da escultura e da literatura, mas também de nossos códigos morais, das filosofias sociais e das agitações políticas’, escreve Lippmann. E continua: ‘A americanização, por exemplo, pelo menos superficialmente, é a substituição dos estereótipos europeus pelos norte-americanos’.
O interessante é que Lippmann supõe uma razoabilidade nos estereótipos. Eles sintetizariam um modo de ver, um julgamento, e seriam essenciais para, digamos, fechar questão em torno de certos temas. Sem estereótipos, nesse sentido, não haveria vida em sociedade. Não haveria opiniões pessoais nem haveria a Opinião Pública, com maiúsculas, como ele mesmo diz: a Opinião Pública resulta de estereótipos compartilhados entre muitos. O estereótipo, enfim, não é um dado negativo, mas um processo mental inevitável. Surgem problemas, porém, quando um estereótipo deixa de ter parte com a razoabilidade. Lippmann não se aprofunda na idéia de preconceito, mas podemos dizer que, desvinculado da experiência comum, da vivência e da razoabilidade, o estereótipo deságua no preconceito – ou na loucura.
É mais ou menos isso, infelizmente, o que temos visto nesses ataques furibundos contra os jornalistas, vindos de um lado e de outro: eles partem de visões estereotipadas, anacronicamente estereotipadas. Em suma, partem de puro preconceito. Quem considera que todo jornalista não passa de um instrumento a serviço do Mal, esteja esse Mal à esquerda ou à direita, não entendeu nada. Não acredita na imprensa, na democracia, na produção de sentido; não acredita em comunicação.
Os agressores da honra de jornalistas têm dentro da cabeça uma imagem deturpada das funções da imprensa. No fundo, são contrários à existência da imprensa independente. Eles moralizam qualquer discordância, qualquer divergência – e condenam moralmente quem pensa com autonomia. Essas hordas prenunciam – e desejam – o obscurantismo.
O recurso do anonimato, outra vez
Temos falado muito de ética da imprensa – e nunca tratamos da ética do leitor. Os jornalistas não podem ofender as pessoas, mas alguns leitores pensam que podem ofender livremente os jornalistas. O mais inacreditável é que parecem pensar assim em nome da ética.
Ora, a ética da imprensa não existe sem a ética do público e a ética dos leitores. Em tempos em que a participação do cidadão incide sobre a própria confecção da notícia – o público deixou de ser apenas ‘receptor de conteúdos’ –, a existência de uma relação respeitosa entre leitores e profissionais dos blogs e sites jornalísticos é requisito básico. Tanto é assim que Bill Kovach e Tom Rosenstiel, na edição revisada e atualizada, lançada no ano passado, de The Elements of Journalism, apontam, no décimo elemento constitutivo do jornalismo, exatamente os direitos e responsabilidades dos cidadãos em relação à imprensa. ‘Como cidadãos’, dizem os autores, ‘temos a obrigação de buscarmos as notícias com mente aberta, aceitando novos fatos e examinando novos pontos de vista à medida que eles se apresentam.’ Se os cidadãos não fazem sua parte, a imprensa não se sustenta. A responsabilidade que cabe ao público não é cosmética. É central.
As avalanches de e-mails desaforados e ofensivos não apenas não cumprem essa responsabilidade como acabam por jogá-la no lixo. O nível desce a tal ponto que, às vezes, surge em muita gente a desconfiança de que alguns andam escrevendo para jornalistas escondidos atrás de nomes falsos e de endereços eletrônicos fajutos. Isso, se comprovado, torna o quadro mais preocupante: além de falta de formação democrática, estaríamos falando em má intenção e burla.
Jornais têm o sábio costume de exigir o número do RG para reproduzir uma carta em suas edições. Os sites não fazem a mesma exigência. Deveriam fazer. Se é mesmo verdade que alguns se valem de identidades forjadas para agredir os demais, temos aí uma situação em que o anonimato é construído como rota de fuga da responsabilidade. Outras vezes, fica no ar a impressão de que alguns leitores se articulam para agir em grupo. Haveria, nesse caso, uma ação organizada para simular uma reação natural e espontânea do público. Em lugar da manipulação da edição das notícias, teríamos então uma nova e curiosíssima modalidade de manipulação: a falsificação da reação do público. É uma hipótese, apenas uma hipótese, embora alguns jurem que isso acontece mesmo, todos os dias. De minha parte, não me cabe entrar em especulações, mas pelo que vi e vivi, retomo a frase que inventei para começar este artigo: Yo no creo en conspiración de prensa, pero las conspiraciones de lectores… que las hay, las hay.
Já é tempo de virar o disco. Já é tempo de buscar outro nível de diálogo. Já é tempo de remover do nosso meio o entulho dessas imagens preconceituosas. Uma imprensa ética exige leitores éticos, leitores comprometidos com um pacto de busca da verdade e da qualidade da interlocução. Ou vamos continuar falando sozinhos, todos ao mesmo tempo e em tempo nenhum.
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Adendo necessário
Eugênio Bucci (incluído às 14h03 de 2/4/2008)
Diante dos vários comentários sobre o meu artigo, quero observar o seguinte:
1.
O público – a reunião dos cidadãos em público – é a razão de ser do jornalismo. Já escrevi sobre isso muitas vezes. A existência do cidadão, fonte do poder e dotado do direito à informação, é quem funda o jornalismo, ou seja, só há relato jornalístico se há, também, o público soberano ao qual ele se destina. De modo nenhum, portanto, eu poderia considerar o jornalista mais importante que o leitor. Considero justamente o contrário: o jornalismo é um serviço para o público.2.
No artigo acima não manifesto nenhuma saudade do mundo antigo. Em vez disso, faço uma crítica às relações que os meios de massa firmavam com a platéia, na qual não havia lugar para o receptor ocupar o posto de enunciador da comunicação. Acredito que essa relação ‘descivilizou’ a sociedade em lugar de aprimorá-la – e essa ‘descivilização’ agora vem à tona, por vias tortas, injustas, selvagens. Muitas vezes, as manifestações que chegam por e-mail parecem vir de alguém que não sabe que vai alcançar seu interlocutor, que será ouvido por ele. Muitas vezes, parece que o remetente não leva em conta que poderá magoar aquele a quem se dirige. Isso denota que não há a expectativa de diálogo. Sequer há a expectativa da resposta. É uma pena que seja assim, mas é assim que é.3.
É claro que não generalizo nada. Logo no início, o meu texto fala em ‘parte’ dos e-mails que chegam às redações. É claro, também, que não considero o jornalismo bom, satisfatório ou melhor do que os leitores. Parte da ‘deseducação’ (‘deseducação’ política, não se trata meramente de descortesia) que aponto no público é, sim, reflexo de um ambiente rebaixado que às vezes encontramos no próprio meio jornalístico. Isso, porém, não desculpa nem leitores nem jornalistas. Ou encaramos a busca do diálogo como um valor ético ou vamos ficar patinando na armadilha de pôr a culpa no outro – ou no outro lado.4.
Passei a minha vida profissional criticando a comunicação e seus profissionais. Às vezes fui mal compreendido. Outras vezes, não. Para mim, a crítica da imprensa deve fazer parte de um esforço geral para que melhoremos os padrões pelos quais trabalhamos a informação. Foi isso e apenas isso o que me moveu ao longo da carreira. Agora, creio que é tempo de criticar também o público. Por que não? O público, hoje, é co-autor das narrativas jornalísticas, assim como os profissionais, mas muitos do público se imaginam inteiramente desobrigados com relação aos bons padrões de comunicação. Estão errados, profundamente errados. Os profissionais têm nome e endereço conhecido. Respondem pelo que escrevem. Nem sempre os leitores se apresentam com a mesma transparência. E nem sempre apresentam argumentos na direção da busca da verdade.É, enfim, disso que procuro tratar. Que ninguém se iluda. Mais dia, menos dia, o tema será tão relevante quanto o tema da ética dentro das redações. Não será excessivo declarar aqui que eu não quis ofender ninguém, de modo algum. Quero apenas propor que olhemos a ética da imprensa – que inclui o público – também por esses novos ângulos. Afinal, estamos nisso juntos ou não? (E.B.)
Leia também
A quem cabe o papel de Chapeuzinho Vermelho – E.B.
Os donos da floresta e o jornalismo cultural – E.B.
A vida pelas tabelas – E.B.
Mulheres, mulheres peladas – E.B.
Uma coroa de louros (ou um souvenir de viagem) – E.B.
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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007