Até o começo da noite da sexta-feira (17/3), o jornalismo político brasileiro estava às voltas com um problema de invasão de privacidade. Desde então, ficou com dois, o segundo mais grave do que o primeiro – para a imprensa, naturalmente.
O primeiro problema era até onde ir na divulgação das declarações do agora famoso Francenildo dos Santos Costa, ex-caseiro da sede da República de Ribeirão Preto em Brasília, sobre os motivos que, segundo ele, levavam o ministro da Fazenda Antonio Palocci à mansão do Lago Sul.
Entre meados de 2003 e começos do ano seguinte, mais precisamente quando rebentou o escândalo do Waldogate, a casa funcionava como um misto de entreposto financeiro e clube privê. Alugada pelo assessor do então prefeito Palocci, Vladimir Poleto, acusado de participar da suposta operação de internamento de dólares cubanos para o PT, ali se reuniam os homens do ex-prefeito – um dos quais, Ademirson da Silva, o ministro levou consigo para a Fazenda como secretário particular.
Os mais notórios entre eles são Rogério Buratti, secretário de governo em Ribeirão Preto, que acusou o antigo chefe e amigo de receber propina regular da Leão Leão, empresa de serviços urbanos que atendia o município e recebia por trabalhos que não fazia ou mediante superfaturamento.
O outro era Ralf Barquete, falecido em 2004, quando era assessor especial da presidência da Caixa Econômica Federal, que responde ao Ministério da Fazenda. Assim como Buratti, foi executivo da Leão Leão.
Quando a sombra dos escândalos do mensalão e arredores alcançou Palocci, ele assegurou que desde a sua ida a Brasília só teve raros encontros – sociais – com Buratti. Depois, depondo à CPI dos Bingos, afirmou categoricamente que nunca pôs os pés no tal do casarão.
Duas semanas atrás foi desmentido pelo motorista Francisco Chagas da Costa, que trabalhava para o grupo. À mesma CPI ele disse ter visto ali o ministro ‘uma ou duas vezes’. Palocci continuou negando. [No sábado (18), ele se corrige na Folha de S.Paulo, falando que foram ‘muitas’ as vezes.]
‘Por causa de mulher’
O jogo de versões estava empatado – embora a torcida tucano-pefelista de Palocci já começasse a se retirar do estádio – quando o Estado de S.Paulo saiu na terça-feira (14), com uma devastadora entrevista do caseiro Francenildo à repórter Rosa Costa, na qual acusa o ministro de estar mentindo, e explica por que, com descrições absolutamente verossímeis.
O jornal não publicou tudo que Nildo, como é chamado, declarou. Apenas ‘os principais trechos da entrevista’, como se lê na abertura que a precede. [Da mesma forma, a Folha só publica ‘trechos’ da entrevista com o motorista Francisco Chagas.]
Uma pista do que o Estado não considerou suficientemente ‘principal’ para publicar está numa quase ininteligível passagem do que foi publicado:
‘O doutor Rogério ficava lá com a mulher dele. Quando iam para São Paulo, Carla vinha no fim de semana.’
A esta altura, a frase faz sentido. Quem ia para São Paulo não era o casal. Era o doutor Rogério e o resto da patota.
Para encurtar uma história que resvala pela sordidez, Carla, da equipe de Madame Corner, foi o pivô, como dizia a crônica policial em outros tempos, do rompimento entre Buratti e Palocci – com tudo o que se seguiu.
Para preservar a vida pessoal do ministro, o Estado expurgou da edição da segunda entrevista do caseiro – esta, coletiva – as referências àquilo que o ministro Cezar Peluso, do STF, chamaria ‘atos censuráveis do ponto de vista dos costumes ou da moral social’, ao conceder a liminar pedida pelo PT para que Nildo não fosse ouvido pela CPI dos Bingos, na quinta-feira.
A Folha, não:
‘O caseiro contou que nas noites de quinta-feira em que Palocci esteve na casa, sempre havia uma mulher, normalmente trazida uma hora antes por Ademirson ou por Poleto. Em todas as vezes, apenas Palocci e a mulher ficaram na casa. O caseiro e sua mulher permaneciam numa casa nos fundos do imóvel.’
Nos 55 minutos que tiveram para inquiri-lo, antes que fosse amordaçado pela liminar de Pelusio, os membros da CPI dos Bingos também cuidaram para que Nildo não enveredasse por alusões aos tais ‘atos censuráveis do ponto de vista dos costumes ou da moral social’.
Não adiantou. Ele contou ter ouvido do motorista que trabalhava para o pessoal da casa que Palocci e Buratti ‘tinham brigado por causa de mulher’.
E disse que o ministro ia à casa se encontrar com ‘meninas’. ‘Era sempre a menina que ficava lá com ele’, reafirmou, antes de ser interrompido pela senadora psolista Heloísa Helena [a quem, tempos atrás, Jeanny Mary Corner, abriu o coração].
Interesse público, vida privada
O dilema da imprensa era claro: como falar das alegadas visitas de Palocci à mansão onde rolava grana, sexo e sabe-se lá mais o que, sem falar das razões que o faziam comparecer regularmente ao clube? As mesmas razões, se não todas, por trás da sua decisão de negar de pés juntos o que um motorista e um ex-caseiro afirmaram e tornaram a afirmar.
Se a casa servisse apenas de habitat para as presumíveis escapadas do ministro – e se o seu ocupante ocasional fosse o único a usá-la – se sustentaria o argumento de que a mídia devia deixar o assunto para lá, mesmo depois dos indícios veementes de que ele mentira ao Congresso.
Não sendo o Brasil, felizmente, um país puritano onde os chamados escândalos sexuais derrubam governantes e acabam com reputações de políticos e autoridades, o silêncio da imprensa teria uma justificativa adicional: se o ministro mentiu, não foi para se dissociar dos esquemas de corrupção que envolvem a sua tchurma, mas para salvar o seu casamento e o respeito da família.
Só que não é bem assim, como se sabe. Tantas são as suspeitas de malfeitorias a que não estaria alheio o então prefeito Palocci, para não falar no que teria vindo depois…
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um eventual acerto com negociantes angolanos do ramo da tavolagem que doariam R$ 1 milhão para a campanha de Lula;**
os supostos dólares de Cuba; a ‘impropriedade terminológica’ do ministro sobre o uso do mesmo avião do empresário amigo que teria transportado as verdinhas;**
a alegada tentativa da sua corriola de extorquir a Gtech para renovar o seu contrato de loterias com a Caixa;**
o apontado envolvimento de um dos irmãos de Palocci em tráfico de influência a favor do PT em Goiânia……que ficou impossível separar interesse público [objeto legítimo do trabalho da mídia e de uma comissão parlamentar de inquérito] e vida particular [que merece toda a proteção em circunstâncias, digamos, normais].
Uma comparação vem a calhar. Faz pouco, morreu o ex-premier britânico John Profumo. Nos anos 1960 ele foi derrubado não porque, sendo casado, tinha um caso com a call-girl, como então se dizia, Christine Keller, mas porque a moça mantinha no paralelo outro caso – com um diplomata soviético em Londres, que espionava para a KGB.
Frase lapidar
Eis, já não sem tempo, que se chega ao segundo problema de invasão de privacidade, mencionado no início deste texto.
No que parece, por todos os ângulos, ter sido uma infame operação de ‘assassinato de caráter’ do ex-caseiro Nildo, uma fonte mantida no anonimato passou a dois jornalistas da revista Época em Brasília um extrato de sua conta na Caixa Econômica Federal.
Pelo extrato obtido criminosamente, porque viola o sigilo bancário de um correntista que não figura em nenhum inquérito policial, muito menos é réu em algum processo, e não resultou de decisão judicial, se vê que, desde janeiro último ele recebeu depósitos em dinheiro somando R$ 24.990. A movimentação total chega a R$ 38 mil.
Tratava-se, sem a menor dúvida, de sugerir que alguém comprara não o silêncio, mas a fala do empregado que deixou na pior o doutor Palocci – aquele a quem Lula diz dever muito, muito e que, também segundo Lula, ficará no governo mesmo que peça para sair. Jogo sujo, portanto.
Os jornalistas da Época, Gustavo Krieger e Andrei Meirelles, fizeram quase tudo certo – menos o essencial.
Antes de colocar no site da revista o extrato a que tiveram acesso, para usar o eufemismo clássico nessas situações, não apenas ouviram o outro lado, no caso o advogado de Nildo, mas publicaram o que lhes foi explicado.
Só que a matéria verdadeiramente relevante não era essa, como ficou evidente horas depois de sua postagem, em nova coletiva concedida pelo ex-caseiro.
A matéria era a tentativa de desmoralizá-lo mediante, repita-se, um ato criminoso, cuja vítima, para provar que não havia sido corrompida por adversários do governo, acabou obrigada a tornar pública uma pungente história familiar de que ninguém precisava tomar conhecimento porque só interessa aos seus protagonistas.
Se a Época achou que era o caso de ir adiante com a matéria do extrato, deveria tê-la cercado do máximo de informações que pudesse publicar sobre a sua origem. Não podendo dizer nada sobre isso, talvez não devesse dizer nada sobre o assunto inteiro – por uma palpável questão ética.
Em resumo, a semana começou com uma decisão jornalística – depois encampada por membros de uma CPI e por um ministro do STF – de poupar de constrangimentos o mais poderoso ministro da República. E terminou com uma decisão jornalística que significou a devassa da vida privada de quem entrou para a história das denúncias de corrupção no governo Lula graças a uma frase:
‘Do lado dele [Palocci], não sou nada. Mas ele está mentindo.’
[Texto fechado às 10h40 de 18/3/06]
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