Não sei bem se o neologismo midiacridade já terá sido proposto por alguém. Assim, desde já, prometo nunca reivindicar a paternidade lexical. Embora esteja quase evidente o sentido da palavra sugerida, não é demais deixar explícito que o termo, a título de ‘economia lingüística’, deseja equivaler à expressão ‘mídia medíocre’.
É obvio que nem tudo oferecido pela mídia (impressa ou eletrônica) está revestido de mediocridade. Todavia, é igualmente verdadeiro que a realidade presente vive o apogeu da sandice e da banalidade, reforçadas ambas por intensa atmosfera de ingenuidade e licenciosidade. Que tudo seja publicável é a garantia contra tendências autoritárias cuja sombra sempre ronda; daí, porém, a confundir com acriticidade é um agravo tão perigoso quanto o retorno de mecanismos de censura. Faz-se oportuno (anda em moda o tenebroso verbo ‘oportunizar’), portanto, clarear as coisas.
É inacreditável que diariamente a sociedade brasileira receba, sob o patrocínio das diversas fontes midiáticas, ‘lições’ de altas recompensas pela ausência de virtudes, quando não é pelo elogio ao delito. Vamos rememorar alguns acontecimentos da recente vida nacional.
Barraco, castelo e mansão
Sem muito esforço de pesquisa, vem à mente o casamento do século no reino encantado do castelo de Chantilly, com direito a toda sorte de baixaria (também chamam de ‘barraco’). Pelo visto, é fácil encontrar dignidade em barracos. Complicado parece reconhecê-la em castelos.
O modo como a mídia cobriu o ‘evento’, ridículo em todas as suas etapas, deixa seres normais um tanto perplexos, principalmente ao noticiar-se – sem nenhuma reserva crítica – que uma até então desconhecida modelo (nos dias atuais, basta alguém exibir algo ou posar assim ou assado e se torna ‘modelo profissional’; ninguém pergunta ‘modelo para quem?’), por haver sido expulsa de uma festa, quintuplica seu preço no mercado. Primeiramente, é de estarrecer o fato em si. Pior ainda, é a mídia simplesmente divulgar. Será que quem o faz tem dimensão do quanto contribui para a degeneração ética, sobretudo para jovens ainda em formação? O que outrora seria motivo de vergonha e humilhação hoje é transformado em prestígio e valorização? Aonde pretende chegar tamanho cinismo?
Outros, por serem radicalmente vazios e quase inúteis, disputam, destituídos de quaisquer princípios, o prêmio de 1 milhão de reais, numa suntuosa mansão, regida por infantilóide encenação do que querem vender com o rótulo de reality show. O mais farsante, travestido de ‘bom rapaz’ ou ‘boa moça’, será levado, em nome do mérito por suas idiotices e falcatruas, ao degrau da fama e da riqueza, sob o referendo frenético de milhares de telespectadores ensandecidos. Trata-se de outro exemplar ensinamento de ‘vigor ético’ que a mídia dissemina em rede nacional.
Severinos nada severos, nem sérios
Outro tema do qual jornais e emissoras de televisão muito se ocuparam diz respeito ao nobre acontecimento atinente à eleição do presidente da Câmara. A mídia não economizou informações quanto à jogatina que perpassou o fato. Todavia, como manda o figurino da hipocrisia tupiniquim, não houve matéria, afora raros artigos, que, à tramóia, somasse tom crítico.
Não bastasse a ‘neutralidade’ (dizem que existe ‘neutralidade’ em jornalismo), como decorrência da vitória, tiveram início as épicas entrevistas com o vitorioso que, entre outras características, tem a virtude de jamais incluir uma terceira frase sem tornar as duas anteriores truncadas ou incompreensíveis. Porém, nos confusos e insólitos depoimentos, algo ficou bastante claro para todos: a defesa intransigente da majoração dos salários.
Eis que, uma vez mais, a ‘midiacridade’ estava a postos para o registro necessário e sempre sem nenhuma intervenção desafiadora, menos ainda indignada. Ao contrário, fiel à fórmula da burra lógica binária, reduziu a cobertura ao clássico esquema do contra x a favor.
Emparedada a imoralidade da proposta nas fronteiras da fofoca planaltina, nenhuma voz na mídia se ergue para problematizar o sempre ‘terceiro excluído’ – que, no caso, seria forçar um debate nacional para eliminar a prerrogativa de empregados políticos da sociedade terem o direito de determinar quanto querem ganhar. Até quando pretendem manter essa cláusula que deixa tantos cidadãos perplexos?
Políticos, ao longo dos mandatos, são funcionários da nação. A eles, portanto, além de outras sugestões que seriam discutidas, poderia destinar-se a aplicação automática do maior índice de aumento salarial obtido por uma dada categoria. Simples, não? Por que a mídia não traz para a pauta de discussão? Fica a doação da idéia.
Registro acrítico
O nobilíssimo teatro planaltino ainda teria outras peças a encenar. Uma delas, igualmente sem o menor incômodo, a mídia pautou com invejável isenção. Refiro-me ao senador Antonio Carlos Magalhães, que foi alçado a presidente da ‘comissão mais notável do Senado’ (Folha de S. Paulo, 23/02/05).
Não há aqui nenhum juízo de valor quanto à figura do político. Contudo, é de causar espanto que um senador a cujo mandato anterior teve de renunciar, sob pena de vir a ser cassado, ressurja justamente para presidir a poderosa CCJ, Comissão de Constituição e Justiça, a mais importante instância do processo legislativo, depois do plenário.
Na mesma chamada, o texto da Folha arrematava o seguinte dado: ‘Luiz Otávio (PMDB-PA), acusado de desviar verba pública, vai chefiar a Comissão de Assuntos Econômicos’. No mínimo, é tudo pândego ou plena expressão do horror.
Por fim, o desastroso discurso presidencial no qual o direito à ingenuidade foi exorbitado. Um presidente declarar-se publicamente acobertador de, segundo ele, atos de corrupção era algo inimaginável. Mais ainda, em se tratando de alguém cuja obsessão na vida, além de aspirar ao cargo máximo, era a de denunciar tudo e todos. Mas nem diante de tamanho fato estarrecedor a mídia abdicou de sua elegante saia-justa, em versão quase ‘chapa-branca’. Nada além do registro.
Tragédias e incompetências
Para encerrar este painel de iniqüidade jornalística, vamos tratar agora de dois acontecimentos que, em razão de tematizarem vidas vitimadas, impõem, em nome da solidariedade e do profundo respeito aos atingidos, mudança de tom. Aqui, não há lugar para ironia.
De um lado, o destino de um compatriota seqüestrado no Iraque, o engenheiro João José de Vasconcellos Jr.; de outro, Irmã Dorothy, missionária e ambientalista, assassinada no Pará. Em ambos os casos, a mídia parece absolutamente despreparada para exercer seu papel. Desde os momentos iniciais, a cobertura, em relação ao seqüestro do engenheiro, não faz outra coisa senão conferir-lhe tratamento novelístico. De tudo que li e vi relativo ao triste episódio, nada encontrei que conferisse ao fato enfoque adulto. Tudo, à moda bem brasileira, tende para emocionalização.
Desde a insólita exibição do vídeo, fica evidente uma coisa: ou o engenheiro, a exemplo dos dois seguranças, morreu no atentado, ou deste saiu gravemente ferido, seguido de morte. A lógica é clara. Que não seja para os familiares é mais que humanamente compreensível, contudo não o pode ser sob o ângulo jornalístico.
De todos os seqüestros lá ocorridos, o único a exibir vídeo sem a exposição da vítima é o do brasileiro. O recurso usado pelos terroristas (por favor, sem outra denominação), limitando-se a documentos e cédulas, sem daquela data em diante não mais expor nada, parece não deixar dúvidas (embora, em solidariedade aos familiares, torça por estar radicalmente errado). Seja qual for a verdade, o que a mídia não pode fazer é tratar do caso como os conflitos sentimentais que escorrem pelos capítulos de novelas. O drama da vida real exige outros modos de condução.
Quanto ao assassinato no Pará, a mídia nem pressiona a omissão das forças políticas (em âmbito municipal, estadual e federal) nem aprofunda a abordagem requerida por tudo que, naquela região, está em jogo. De um lado, o descaso das autoridades, a despeito dos insistentes apelos da vítima, abandonada à obstinada resistência desprotegida. De outro, a feroz disputa pelo controle da Amazônia, seja pela ferocidade dos lucros, obtida pelos métodos bárbaros e cruéis, tendo à frente quadrilhas locais, seja pela cobiça de governos e corporações do capital, em escala internacional, que há décadas orientam políticas de preservação para, estrategicamente, quando a necessidade real se apresentar, implementar-se a ocupação por vias diretas ou indiretas.
A mídia ainda não noticiou as propostas que estão sendo elaboradas por forças hegemônicas cuja intenção consiste em ‘oferecer’ à Amazônia o que estão chamando de ‘gestão coletiva’. O mais recente a explicitar a questão foi o ex-comissário de Comércio da União Européia, Pascal Lamy – além de serem conhecidas suas relações com interesses norte-americanos.
Nenhum representante da chamada ‘grande imprensa’ abordou o assunto. Entretanto, o tema está presente em matéria assinada pelo correspondente em Genebra, Jamil Chade, reproduzido no Diário do Pará (25/02/05). Será que o pronunciamento de Lamy não atinge frontalmente questões de segurança nacional? Que espera a ‘grande imprensa’? Será que aguarda a posse da Amazônia, em algum momento do futuro, para futuras coberturas?
Como se pode concluir, não faltaram temas dos mais variados conteúdos para a demonstração do quanto a ‘midiacridade’, por ser como é, deixa de realizar em favor de uma prática jornalística responsável. Haverá ainda tempo para reverter o modelo, de modo a contemplar um possível casamento entre mídia e ética? É melhor imaginarmos que sim, embora os indícios atuais se alinhem em direção contrária. Em assim sendo, pelo menos, é possível que tais observações críticas sirvam para algumas discussões em aulas de jornalismo.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro