Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eu sou a anta do Mainardi

O jornalista Paulo Francis possuía um texto impecável em argumentações, observações sarcásticas, mas, principalmente, uma lição de cultura, fosse qual fosse o assunto tratado.


Era um exercício divertido de reflexão ter em mãos um texto onde ousadia e erudição caminhavam juntas, resultando numa ironia refinada. Mesmo quando atribuía ao então presidente Sarney a pecha de ‘matuto esperto’ ou ao ex-presidente Jimmy Carter o atributo de ‘caipira, plantador de amendoim’, o fazia com certa classe e bom humor. Muitos leitores pediam sugestões bibliográficas, num arremedo sincero de se conquistar um pouco de conhecimento de uma pessoa tão familiarizada com o assunto. Todas as quintas e sábados, na Folha de S. Paulo, sua coluna de página inteira era aguarda por muitos. Ninguém ficava impassível às suas reflexões, mesmo às mais banais.


Sabe-se lá por que, Francis foi mudando de tom. O sarcasmo ficou mais virulento, suas observações mais venenosas, por vezes ofensivas. Foi considerado, por alguns, como ‘o cara que adoramos detestar’. Criou-se até um termo na época: ‘a metralhadora giratória de Paulo Francis’, tamanha a velocidade de suas palavras e os estragos que elas causavam no alvo atingido. Trocou o plano das idéias pelas críticas pessoais. Caetano Veloso, Arnaldo Jabor e Ruth Escobar que o digam. A polêmica cedeu lugar ao bate-boca. Mas vendia jornal também e muito jornal mesmo – a Folha passou a ser ‘independente, sem rabo preso’ – alguém se lembra?


Até para xingar é preciso talento


Com o tempo, Paulo Francis deu tanto tiro que acabou acertando no próprio pé e saiu da Folha de S. Paulo pela porta dos fundos. Ninguém da redação se pronunciou. Os leitores até que exigiram uma retratação, mas não convenceram.


Paulo Francis foi pro Estadão e depois terminou seus dias sendo uma caricatura dele mesmo na rede Globo.


A vaga da ‘metralhadora giratória’ ficou em aberto. Aquilo que acontecera de certa forma natural transformou-se em uma grande jogada de marketing. A idéia de que, em nome da liberdade de imprensa, vale tudo, virou um grande lance… De vendas. Afinal, é só atacar aquilo que as pessoas possuem de mais precioso – suas convicções. E está feita a polêmica, tudo em nome da liberdade de expressão. Criam-se os prós e contras e grupinhos de Orkut por aí. As associações de classe ou de gênero se manifestam e o negócio rola mesmo.


A Folha tentou manter o esquema com outros tantos ‘colunistas independentes’; alguns se deram bem, mas a maioria não. Até para xingar num jornal é preciso ter um pouco de talento e formação cultural.


Melhor estratégia é o achincalhe


Outros veículos de mídia também entraram na onda, afinal por que não? Somos ou não uma imprensa participativa? E então chegamos ao sr. Mainardi, da revista Veja.


Mainardi é um deles. Tal qual um filho bastardo que tudo tenta para se igualar ao pai. Mainardi segue rumo ao estrelato. Construindo ‘ganchos’ provocativos onde o limite entre a grosseria e o bom senso inexiste em suas declarações.


Nos poucos textos que eu admito que li, Mainardi descarta a hipótese de o brasileiro possuir um sentido moral. Decreta que Xuxa é o que há de mais viável para o nosso nível cultural. E por aí vai. Por outro lado, usa a antiga metralhadora giratória do Francis de forma mais objetiva e engajada: desgastar o presidente eleito e impedir que qualquer candidatura futura venha dos movimentos sociais ou que possua algum vínculo com a transformação real da sociedade. Assim sendo, quando um sujeito como ele se compara a um ícone da esquerda revolucionária ou se diz ameaçado de morte, por exemplo, não o faz gratuitamente. Faz de forma estratégica, pois sabe que vai provocar reações fortes e respostas emocionais, muitas vezes sem o viés da reflexão, que a palavra escrita e publicada exige. Aí é só deitar e rolar sobre o assunto.


Criando ‘ganchos’ com a habilidade de um roteirista de novela, ele sobrevive pela polêmica criada da indignação, protegido pela liberdade do livre pensar e de opinião. Logo, quando publica um livro intitulado Lula é minha Anta, não está se referindo a uma estratégia de caça, e sim utilizando o duplo sentido da frase para vender matéria requentada. Ele sabe que a melhor estratégia, principalmente para quem não tem talento, é o achincalhe, o comentário rasteiro, pois esse cria barulho e talvez assim não tenha mais um livro encalhado nas prateleiras das livrarias. Na verdade, nós, leitores que buscamos informação, é que somos as antas da imprensa. Corremos atordoados pela floresta tentando fugir das flechas ideológicas que nos querem impingir diariamente sem descanso ou refresco.

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Psicólogo