Até quando a mídia poderá se comportar de forma irresponsável impunemente? Só na semana passada, dois episódios demonstraram de forma clara o sensacionalismo da mídia ao tratar de assuntos de alto interesse público de forma leviana, para gerar audiência.
O brutal assassinato de crianças dentro de uma escola cometido por um brasileiro desequilibrado, de 24 anos, que invadiu na manhã de quinta-feira (7/4) a Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro, e atirou nos alunos, foi exemplar. Uma chacina perpetrada por um maníaco que mostrou uma vez mais que a mídia brasileira não dispõe de jornalistas preparados à altura para noticiar fatos dessa envergadura, menos ainda para explorar outros lados da notícia e do fato em si. É verdade que o ineditismo do episódio dantesco em terras brasileiras espantou todos, mas já deveríamos ter aprendido com os exemplos dos EUA, onde essa loucura é quase rotina.
A irresponsabilidade da mídia está em apontar a suposta adesão do assassino e suicida à religião muçulmana, considerada como fundamentalista e xiita. De uma mera suposição de um policial numa entrevista tumultuada, houve relatos dos repórteres, em jornais e TVs, lembrando casos de fanatismos religiosos, como o 11 de setembro americano, ou o 11 de março espanhol. Pela falta de consistência na suspeita, pela agressiva resposta e protesto de alguns blogs, até mesmo pelo vazamento de informações via WikiLeaks, semanas antes, de que o Pentágono desejava desqualificar a religião islâmica, a mídia tupiniquim estancou as análises dessa hipótese e foi em frente testar outras hipóteses, como a versão de bullying apresentada por professores e analisada por um psiquiatra infantil, que avaliou que apenas o bullying não seria capaz de explicar ataques brutais como o ocorrido em Realengo.
Versões estapafúrdias
As entrevistas de praxe com psicólogos de plantão, ou com opiniões do povo, vizinhos, parentes, estudantes, encheram as páginas dos jornais e o noticiário das TVs, numa repetição monocórdia da mediocridade, da evidente falta do que noticiar, da ausência de conteúdo, da inexistência de editores que direcionassem os repórteres a buscar fatos com um mínimo de verossimilhança e importância diante de um fato tão brutal. Já no domingo, o que restava de notícia na mídia estava no corpo do assassino, ainda sem reconhecimento oficial no IML, a casa onde morou nos últimos seis meses, que teria sido depredada e debates e mais debates abertos com especialistas sobre a necessidade de se desarmar a sociedade, de se estabelecer segurança nas escolas, de se implantar catracas com detetores de metal, ou colocar policiais de plantão, ou ainda câmeras, como se os poderes públicos tivessem recursos para tudo isso, pois mal conseguem manter as escolas.
Nesse caso, mais uma vez, a mídia brigou com a notícia. Menos de uma semana nas manchetes, já na segunda-feira (11/4) o assunto sumiu da mídia e da blogosfera. Só os efeitos colaterais estavam presentes e a imagem dos muçulmanos cada vez mais negativa no imaginário da população. A registrar-se que a grande maioria de casos policiais que acontecem no Rio de Janeiro possui essa característica comum de fatos e versões intermináveis e estapafúrdios.
Fato lamentável
Uma estudante do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva ISC/UFMT, mestranda da Universidade Federal de Mato Grosso, concluiu dissertação de mestrado. Para a formulação da tese fez pesquisas e levantou dados de contaminação de agrotóxicos em mães que estavam amamentando na cidade de Lucas do Rio Verde, norte do Mato Grosso. Coletou leite de 62 nutrizes e alegou que 100% das amostras estavam contaminados com agrotóxicos, com índices acima do tolerável.
Ora, tolerável por quem? Não há no mundo nenhum estudo ou indicador nesse sentido com análises de resíduos em leite humano. Pois o professor e orientador, um toxicologista, não se deu por vencido e comparou o leite humano ao leite de vaca, onde existem índices que são acompanhados pelas autoridades de fiscalização – no Brasil e lá fora. Detectaram traços e/ou a presença de diversos agrotóxicos nos resultados dos exames feitos em cromatógrafos e outros equipamentos provavelmente ultrapassados, citados com pompa e circunstância na tese.
Apareceu nos resultados dos exames do leite de algumas nutrizes até mesmo a presença de Aldrin, um inseticida-formicida clorado que tem fabricação e venda proibida no Brasil desde 1986 (são só 25 anos!). Como as mães moram na ‘área urbana’ em Lucas do Rio Verde, apesar de as informações da sinopse da tese não especificarem se moradoras da periferia, próximo às lavouras de soja – pois o município é um dos maiores produtores de soja do Brasil – são trabalhadoras rurais, lançou-se a suspeita pelas TVs (Bandeirantes e Globo) de que a população estaria contaminada.
Sinopse de duas páginas
O toxicologista, no auxílio da orientanda, antes de a dissertação ser apresentada à banca, deu conhecimento dos resultados em um simpósio realizado em Belém. E ainda criou indicadores de que gente especializada nunca ouviu falar. Ou seja, deitou falação de que a média de litros de agrotóxicos por habitante, em Lucas do Rio Verde, era de 40 litros/habitante, enquanto no Brasil, em média teríamos 1,5 litros/habitante. Como se se pudesse fazer essa média, que parece o samba do professor que ficou doido.
Depois, já em Cuiabá, o professor e orientador da tese deu entrevista e tripudiou à vontade contra o uso de agrotóxicos, como já havia feito em ocasiões anteriores, pois é um inimigo declarado do agronegócio. Até aí, nada demais. Tem muita gente na mídia que adotou o agronegócio como o grande vilão de todas as questões ambientais do país. A mídia mancheteou o assunto, que foi parar em matéria do Globo Repórter, deixando a população de Lucas do Rio Verde e de todo o estado de Mato Grosso devidamente alarmada, com pânicos visíveis, em diferentes níveis, é claro. A mídia esqueceu do alarme provocado pela febre amarela em São Paulo, alguns meses atrás. Alguém se lembra do pânico? E das mortes provocadas por quem se vacinou sem ter necessidade? Pois o sensacionalismo midiático gera pânico e os alarmismos provocam isso.
Quando a indústria de agrotóxicos pediu esclarecimentos, através de sua associação, e solicitou a leitura da tese completa, esta foi negada. Alegou-se falta de revisão final do texto e de alterações na bibliografia, conforme sugerido pela banca. E não explicaram – nem a aluna, nem o professor – a metodologia aplicada nos testes ou os equipamentos usados. Apenas uma sinopse de duas páginas, de um trabalho com mais de 100 páginas.
O estrago está feito
Tive conversas com um amigo, médico-toxicologista já aposentado, e o coloquei a par da notícia. Ele é contra os agrotóxicos, consome orgânicos, quando possível, mas foi enfático: o inseticida do grupo organoclorado, o Aldrin, nunca apareceria no leite materno, pois se concentra nas gorduras do corpo, e por lá fica inerte. Passaria a ser perigoso se o portador, digamos com 150 kg, fizesse um regime de emagrecer muito rígido, com redução de peso para 80 ou 90 kg, pois poderia morrer envenenado pela absorção rápida do organoclorado estacionado na sua adiposidade.
Disse mais o meu amigo toxicologista: para aparecer no leite examinado, as mães deveriam ter tomado pelo menos um copo de Aldrin puro algumas horas antes. De uma mãe se poderia suspeitar, seria caso de suicídio; mas de uma dúzia de mães, fora de cogitação. Isto leva à suspeição de exames mal conduzidos em equipamentos antiquados, com uma leitura forçada, digamos assim, no mínimo. A alternativa seria de uma análise com má-fé, mas em se tratando de um professor de universidade federal, prefiro acreditar apenas no equipamento ultrapassado e numa análise ‘não amigável’, já que o professor é, declaradamente, inimigo dos agrotóxicos. Como diz o ex-ministro Delfim Neto, as estatísticas, quando torturadas adequadamente, confessam qualquer coisa.
Faz mais de duas semanas que o assunto é abordado pela mídia no estado, teve notícias breves na Folha de S.Paulo e somente na Folha com direito de resposta dos fabricantes, mas as TVs seguem seu curso. O estrago está feito, os produtores rurais mais uma vez pagam o pato, são chamados de ‘criminosos ambientais’, acusados de usar agrotóxicos de forma irresponsável, conforme o professor, e ‘são fabricados por multinacionais que só visam lucros, também autênticas criminosas ambientais, inclusive porque produzem soja transgênica’.
Leviandade e inconsequência
Alarmar a população com notícias baseadas em ‘fatos científicos’, não importa em que profundidade, é fato corriqueiro nos tempos contemporâneos. A mídia gosta e dá o devido destaque porque está impune.
Por isso, acredito que deveríamos debater uma ‘Ley de Medios’ neste país, estabelecendo responsabilidades, pela qual profissionais e empresas teriam de responder com indenizações ou multas e, principalmente, com a crítica pública, como ocorre com médicos, por exemplo, ou a expulsão, ou cassação de diplomas (que não valem mais nada) de profissionais que se comprovem antiéticos e até mesmo a prisão, quando se provar a má-fé. Acredito que seria um excepcional momento de a própria mídia criar uma autorregulamentação, como já fizeram outras profissões, os publicitários especialmente. No mínimo, tem de haver o direito de resposta – é legítimo qualquer cidadão exigir isso.
O que não é possível é compactuar com a leviandade e a inconsequência, com a irresponsabilidade de ‘acusar, julgar e condenar’, como faz a mídia, mesmo quando não tem provas concretas ou, no mínimo, evidências científicas avaliadas por cientistas sérios e respeitados. Preferencialmente de cientistas sem apetite midiático, é claro.
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Jornalista e escritor, editor da revista DBO Agrotecnologia; seu blog