Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fabiano Maisonnave

‘Ignore esse tipo de assunto. Você tem de reportar apenas o que o governo diz ao invés do que realmente ocorre nos bastidores. Para o presidente da ONO (Organization of News Ombudsmen), o turco Yavuz Baydar, 47, foi esse o recado dado anteontem pelo relatório do lorde Brian Hutton ao jornalismo britânico e mundial.

Ex-jornalista da BBC, onde trabalhou nos anos 90, Baydar acredita que as conclusões de Hutton tenham sido muito ‘lenientes’ com o governo britânico e ‘um pouco duras demais’ com a rede estatal de comunicação.

A ONO reúne ombusdmans de 15 países. Leia, a seguir, a entrevista concedida à Folha por telefone.

Folha – O sr. concorda com o relatório Hutton, que conclui que a BBC falhou ao divulgar uma reportagem com informações erradas?

Yavuz Baydar – Não posso dizer que sim. Acredito que esse relatório já esteja sendo debatido. É muito leniente com o governo e um pouco duro demais com a BBC. É um relatório muito dúbio e questionável. Na apresentação e em outras partes, há certos aspectos que lorde Hutton ignora, o que dá a impressão de que ele não tenha dado nenhuma credibilidade aos argumentos da BBC.

Folha – A crise já provocou a saída do presidente e do diretor-geral. O sr. acha que a BBC perderá sua independência?

Baydar – Não quero acreditar nisso. Já se pode ver hoje que havia um grande apoio dentro da BBC, especialmente para o diretor-geral. Greg Dyke tem sido muito importante para transformar a BBC, deixá-la mais ousada. Martin Bell escreveu no ‘Guardian’ que obviamente é a pior crise na BBC dos últimos 50 anos, mas o futuro do jornalismo é que está em jogo.

O que esse relatório basicamente nos diz é: ‘Ignore esse tipo de assunto. Você tem de reportar apenas o que o governo diz ao invés do que realmente ocorre nos bastidores’. O relatório questiona a função básica do jornalismo.

Folha – Até que ponto esse caso reflete as dificuldades de cobrir a Guerra do Iraque?

Baydar – Pode-se dizer que a imprensa britânica tem feito um trabalho muito bom, certamente bem melhor do que a americana. Mas reflete um dos dilemas básicos. Essa guerra tem sido muito dura contra o jornalismo, especialmente nos países em guerra. Havia uma agressiva política governamental no Reino Unido -para não falar dos EUA-, e a BBC agüentou firme. Era evidente que essa crise ocorreria.

É um grande embate que continuará a perturbar a opinião pública mundial, que diz respeito às armas de destruição em massa. Pode-se questionar o estilo ou a forma com que [o jornalista da BBC Andrew] Gilligan fez a reportagem. Mas o centro dela foi feito nos padrões básicos do jornalismo. Ninguém pode questionar que, na essência, a história tem muitas chances de ser verdadeira.’

 

Anna Tomford

‘Crise constrange jornalistas’, copyright Jornal do Brasil / DPA, 30/01/01

‘Nunca nos 82 anos da prestigiosa BBC havia acontecido isso: a meia-voz e visivelmente emocionados, apresentadores e jornalistas da British Broadcasting Corporation tiveram de informar sobre uma ‘grave crise’ em sua própria casa.

O juiz Brian Hutton havia acusado a BBC de carências em relação à obrigação de meticulosidade jornalística e do grande fracasso dos órgãos de controle sobre o caso Kelly. O chefe dos apresentadores, Huw Edwards, iniciou o principal jornal do dia com a impactante frase: ‘O relatório de Hutton foi para a BBC muito pior do que se temia’.

E então aconteceram os golpes: mesmo antes de uma reunião urgente de controle dos chefes da BBC, seu presidente, Gavyn Davies, pediu demissão anteontem. Ontem, o diretor-geral, Greg Dyke, seguiu seus passos.

Davies disse não compreender o desfecho do caso, mas afirmou que, como presidente da BBC, tem de cumprir a sentença de seus ‘árbitros’. O ex-banqueiro e milionário de 53 anos, muito amigo do ministro da Economia, Gordon Brown, foi colocado na chefia da rede de rádio e TV pelo governo em 2001.

O consórcio informativo admitiu ter emitido a controvertida informação do jornalista Andrew Gilligan no programa matinal ‘Today’ sem que ela fosse confrontada.

O chefe do jornalismo, Richard Sambrook, chegou a responder uma carta de protesto do gabinete de Blair sem nem mesmo ter visto a controvertida reportagem. Nela, Gilligan, acusou Blair de ter ‘esquentado’ a ameaça de armas de destruição em massa de Saddam Hussein.

O diretor-geral Greg Dyke, na prática o redator chefe da rede de rádio e TV, também caiu na linha de fogo de Hutton. ‘Sem dizer expressamente, o juiz praticamente culpou a BBC pelo assassinato de Kelly’, publicou o jornal The Independent.

Segundo muitos comentaristas políticos, as fortes críticas à BBC e à sua credibilidade são ‘sujas e desmedidas’. O jornal de esquerda Guardian disse que o ataque contra a emissora põe em risco a liberdade de expressão.

Pesquisas haviam indicado que os cidadãos depositaram mais confiança na BBC que no governo.

– A BBC é e continuará sendo uma das melhores organizações de notícias do mundo. Mas sua estrutura, que se remonta inclusive ao império britânico, está ameaçada – disse ontem o escritor Frederick Forsyth numa entrevista. – Chegou o momento em que a BBC deve ser conduzida por um jornalista experiente e não por um grupo de homens e mulheres politicamente correto.

Quem ri em meio a tempestade que enfrenta a BBC, segundo o Guardian, são os concorrentes do setor privado.

Entre todos eles se destaca o czar dos meios de comunicação Rupert Murdoch, cujo conglomerado Sky é um dos principais competidores da BBC.

Seu jornal sensacionalista The Sun obteve algumas partes do relatório divulgado pelo juiz Hutton de forma misteriosa horas antes da publicação.’

 

Martin Bell

‘O futuro do jornalismo em jogo’, copyright O Estado de S. Paulo / The Guardian, 30/01/01

‘Foi um mau dia para a BBC. Não me recordo de nenhum pior nos 34 anos em que trabalhei na ainda maior organização de radiodifusão do mundo. É difícil encarar esse veredicto tão confortável para o governo e tão cruel para a corporação.

Claro que a BBC teve uma significativa responsabilidade na causa do próprio infortúnio. Os erros se originaram em entrevistas improvisadas de correspondentes que talvez não tenham atentado completamente para suas falhas, pelas quais a BBC está agora pagando um alto preço. A emissora já tinha pedido desculpas por esses erros e seu diretor-geral – que ontem pediu demissão – tinha voltado a se desculpar na quarta-feira.

Mas, diante das presentes dificuldades, espero que a BBC descubra como arrumar a casa em um dia ou dois. Este não é o caso de penitências exageradas. Embora a reportagem de Andrew Gilligan para o programa Today estivesse errada em um ponto importante, seu mote principal estava correto.

Gilligan não foi o único jornalista a informar que o governo tinha exagerado em seus relatos sobre o arsenal iraquiano para justificar o envolvimento do país na guerra. Mas sua reportagem foi a que mais causou furor e provocou a maior tensão entre a BBC e o governo britânico, na longa história de discordância entre as duas entidades.

Acho que Gilligan prestou a todos nós algum serviço, enquanto o relatório Hutton – que o acusa tão extensivamente – foi extraordinariamente tolerante com o governo. Sabemos, por exemplo, que Downing Street (sede do governo britânico) sugeriu o reforço na linguagem do dossiê (sobre o arsenal proibido do Iraque) apresentado em setembro de 2002. Isso era mais que uma questão de apresentação. Era uma questão de substância.

Lorde Hutton sentenciou que a exatidão do dossiê não foi comprometida. Mas esse dossiê era vital para justificar a guerra. A nação foi levada a acreditar que o Iraque era uma grave e atual ameaça. Sabemos agora que não era nem uma coisa nem outra. O veredicto de Hutton, apesar do alívio que trouxe ao governo, nada fez para justificar a guerra no Iraque pelos motivos sob os quais a necessidade dela era apresentada antes de as hostilidades começarem.

Espero profundamente que a BBC não perca sua verve como conseqüência desse revés. De muitas maneiras, o episódio estabelece padrões pelos quais outras emissoras de notícias serão julgadas.

Este não é um tempo para a BBC esmorecer, apesar da tentação de fazê-lo. Não é apenas sua reputação de independência que está em jogo, mas o futuro de todo o jornalismo do país. Manter o governo sob fiscalização e nunca permitir que ele se torne tão triunfalista – como ocorreu na quarta-feira – é importante para nossa democracia. Especialmente quando o governo trabalhista, quando questionado por causa de uma guerra impopular, teve tantos defensores em veículos britânicos administrados por proprietários estrangeiros.

É importante que a BBC, assim como outras organizações de notícia, não se permita intimidar-se.

Entendo por que Gavyn Davies, o presidente da BBC, sentiu a necessidade de renunciar, mas a autoflagelação deveria parar por aí. A BBC deve erguer-se, sacudir a poeira e continuar a nos prover com o serviço de notícias que a tornou famosa. Seria de grande ajuda se alguns dos novos diretores tivessem experiência em jornalismo de televisão. Um grande acordo dependerá da determinação e, se necessário, da sede de sangue, do próximo presidente. Mas quem apontará esse novo presidente? O governo, é claro. É fácil imaginar um cenário no qual a BBC mergulhe na timidez e se permita atender aos desejos do governo.

A BBC vinha recentemente experimentando um revival de seus bons tempos. O diretor-geral, Greg Dyke – que ontem se tornou outra vítima do episódio e pediu demissão -, vinha tentando elevar o moral do staff. Sua análise da cobertura, levada ao ar no programa Panorama, tinha sido um exemplo de jornalismo independente e robusto.

A direção da BBC deveria se aprofundar nisso, mantendo a agilidade e a verdade de suas posições. A maior parte das pessoas, ainda mais agora, está mais disposta a acreditar na BBC do que no governo.’