Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Falsa revista financiada por laboratório farmacêutico

Duvidar da eficácia, segurança e resultados divulgados pelas empresas farmacêuticas, sem qualquer base, pode ser taxado de extremismo. O caso em questão parece teoria da conspiração, mas, infelizmente, trata-se da mais pura verdade. Denunciada inicialmente há algumas semanas pelo jornal The Australian, uma investigação da revista The Scientist aponta para uma publicação por demais suspeita, patrocinada pela indústria farmacêutica Merck, na gigante editorial de revistas científicas Elsevier.

Cientistas, médicos e acadêmicos foram recrutados pela empresa farmacêutica Merck para endossar artigos que atestam a segurança do seu medicamento Vioxx. Este antiinflamatório, lançado em 1999 e usado por cerca de 80 milhões de pacientes, teve muito sucesso por ser eficiente e não causar problemas estomacais. No entanto, após várias denúncias de problemas cardíacos causados pelo seu uso, o produto foi retirado do mercado em 2004.

A denúncia da manutenção de um periódico destinado à promoção dos produtos da Merck veio à tona durante o julgamento da indústria, em processo por causa dos efeitos colaterais deste medicamento, e foi primeiro divulgada no jornal The Australian, no dia 9 de abril deste ano. De acordo com a denúncia, a Merck, Sharp and Dohme Austrália (MSDA) teria patrocinado vários números de uma publicação da Exerpta Medica, uma subdivisão da gigante editorial Elsevier – a revista Australasian Journal of Bone and Joint Medicine. A revista não é indexada no Medline e não tem website.

Valor do patrocínio não foi revelado

No dia 30 de abril, a revista The Scientist publicou alguns trechos do depoimento do médico australiano George Jelinek, membro de uma associação de editores, que fez a análise das publicações. No depoimento, Jelinek afirma que mesmo para muitos especialistas, os artigos publicados entre 2003 e 2004 parecem tratar de artigos científicos perfeitamente genuínos, que passaram por revisão aos pares, o método tradicional de publicações científicas. No entanto, o médico afirma que ‘somente uma inspeção profunda das revistas, juntamente com o conhecimento das revistas e convenções de publicações médicas, permitiram que eu pudesse determinar que a revista não era, de fato, uma publicação médica avaliada por pares, mas sim, uma publicação de marketing para a Merck, Sharp and Dohme Australia (MSDA)’.

Jelinek também notou que quatro dos 21 artigos do primeiro número da revista eram sobre o medicamento para osteoporose Fosamax (marca registrada de Merk, Sharp and Dohme Australia, certamente). No segundo número, dos 29 artigos, nove eram sobre o Vioxx e 12 sobre o Fosamax. Todos os artigos apontam conclusões positivas para os produtos da MSDA. Outro caso interessante são alguns artigos de revisões publicados, contendo apenas uma ou duas referências, assinados por B & J editorial. Assume-se que B & J sejam as iniciais de Bone and Joint, parte do nome da referida revista. Trata-se de um mecanismo interessante para que os proprietários da revista exponham suas opiniões podendo passar despercebidos por leitores desavisados. Estas publicações podem ser caracterizadas como puro marketing, e nada de científico.

De acordo com as explicações da MSDA, a Elsevier compreende que esta seja uma publicação complementar que leva resumos e compilações de artigos publicados em outras revistas avaliadas por pares e publicadas pela editora, incluindo a respeitada revista Lancet. Entretanto, a Elsevier afirma que não considera uma publicação de compilações como sendo uma revista científica. Embora não apareça em nenhum número da revista, tanto a Elsevier quanto a MSDA afirmam que a publicação era patrocinada pela MSDA, mas o valor não foi revelado.

‘Teorias da conspiração’

Como se não bastasse esta revista, a Elsevier admitiu que publicou entre 2000 e 2005 seis revistas patrocinadas por indústrias farmacêuticas que pareciam ser revistas avaliadas por pares, mas não divulgavam o patrocínio. A editora afirma estar reexaminando suas publicações após as denúncias de irregularidades, mas, embora tenha divulgado as revistas patrocinadas, não divulgou quais as empresas farmacêuticas eram patrocinadoras.

As publicações científicas sérias, avaliadas por pares, em geral podem ser de duas formas. Pagas por propagandas e assinatura das revistas e venda de reprints (excerto de determinado artigo individualmente); ou pagas pelos autores e liberadas ao público, em geral gratuitamente.

Não é incomum que as empresas patrocinem números suplementares em revistas indexadas e avaliadas por pares, com compilações de artigos publicados que sejam interessantes para ela, para que possam divulgar e distribuir tais artigos gratuitamente. Essa prática está associada à divulgação da empresa, o que faz com que os leitores tenham em mente que se trata do ‘lado bom’ dos resultados de seus produtos, não descartando um possível ‘lado ruim’. No entanto, o caso da Merck e das outras cinco publicações da Elsevier não passa de puro marketing, com o propósito de enganar os leitores, pela não divulgação de quem está patrocinando a publicação. Ou seja, tal prática pode fazer com que os leitores achem que não há um ‘lado ruim’ no uso destes medicamentos.

É interessante que nada disso tenha sido divulgado pela imprensa brasileira. O que parece uma teoria da conspiração, neste caso, trata-se da mais pura verdade. E o silêncio da imprensa nacional pode reforçar as especulações com relação a outras teorias da conspiração envolvendo corporações…

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Respectivamente, biólogo e professor da Universidade Federal de Viçosa e bióloga e pós-doutoranda pela Universidade Federal de Viçosa, Rio Paranaíba, MG