Em sua última edição, Veja mostrou que não está empenhada em acompanhar as investigações da Polícia Federal sobre os mandantes & executantes do ‘Vídeo da Propina’. Se o fizesse com a proficiência habitual, ou simplesmente ‘cozinhasse’ as informações que os jornalões estão produzindo, seria obrigada a revelar como o vídeo chegou às suas mãos.
A imprensa brasileira ainda não assimilou a prática de cobrir e discutir os seus procedimentos. A revelação do mandante da gravação do vídeo da propina na tarde de segunda-feira (13/6), com a desculpa de que a peça fora entregue à direção dos Correios, é o exemplo mais recente de uma cobertura enganosa ou pelo menos ostensivamente defeituosa quando se trata de acercar-se dos métodos empregados pela mídia.
Tanto os jornalões como as revistinhas não se entusiasmaram em avançar nesta seara porque se pegar a moda de desvendar as fontes secretas de dossiês-fitas-vídeos também secretos, o exercício do jornalismo investigativo no Brasil ficará um pouco mais complicado. E muito mais dispendioso.
A Folha de S.Paulo, no sábado (11/6), já havia indicado o nome de Jairo Martins de Souza (que se apresenta como jornalista mas seria cabo da PM) como o possível realizador do ‘Vídeo do Ano’. Aparentemente foi, ou ainda é, agente da Abin – e a Abin já estava fuçando o que se passava nos Correios antes da divulgação do flagrante.
Só que a nossa central de inteligência deixou de fazer jus à sua atividade-fim ao esquecer-se de avisar a Polícia Federal a respeito do que fazia. Parece filme dos trapalhões ou comédia de erros, mas atrás dessa palhaçada policial surgem indícios de que a Abin esteja praticando os vazamentos de ‘delações premiadas’ [ver remissões abaixo].
Uma indústria como as outras
Se o comportamento da Veja fica parecendo suspeito, o da Folha é diametralmente oposto: a repórter Renata Lo Prete (ex-ombudsman do jornal), em seguida à primeira ‘entrevista-bomba’ de Roberto Jefferson, revelou candidamente num chat do UOL que ela e o jornal foram pautados pelo deputado-canoro para veicular suas acusações. Deveria ser o contrário, mesmo porque dias antes Roberto Jefferson já prometia botar a boca no trombone [leia aqui a íntegra do chat].
Embora na matéria do último domingo (12/6) o entrevistado tivesse declarado não possuir provas do que afirmava, a Folha resolveu publicá-las assim mesmo – transferindo ao acusador todas as responsabilidades. Pode-se discutir o teor da decisão do jornal, sobretudo diante da gravidade das denúncias, mas foi positiva a forma transparente de revelar os seus procedimentos e resistir à tentação de exibi-la como matéria investigativa.
Estabeleceu-se um precedente que conviria consagrar. E, se possível, desenvolver. Pois não cabe apenas ao órgão veiculador oferecer as explicações sobre os critérios empregados na obtenção das informações. Cabe aos outros, concorrentes ou não, manter a sociedade permanentemente atualizada sobre a forma através da qual é informada.
Isto significa que a imprensa brasileira precisa adotar o princípio de que a indústria da comunicação precisa ser coberta e acompanhada como todas as demais indústrias. Ao lado dos repórteres especializados em economia, política ou esportes é indispensável a contratação de um profissional incumbido de cobrir a mídia. Não apenas os seus feitos mas também – e principalmente – seus defeitos e desfeitas.
Segredos e intimidades
A imprensa deve aprender a pautar a imprensa para fazer-se respeitar, para promover a diversidade, para mostrar-se capaz de defender a sociedade em troca dos privilégios que lhe são garantidos pela Constituição.
Não será uma decisão fácil. Não são muitas as instituições, entidades, empresas ou poderes dispostos a descer do pedestal para submeter-se ao escrutínio público. Além disso, convém levar em conta a especificidade do sistema midiático brasileiro, organizado em lobbies monolíticos – como a ANJ (jornais), Abert (rádio e TV) e ANER (revistas) – constituídos justamente para assegurar a sua opacidade.
Não bastasse este obstáculo crucial, pergunta-se: qual o jornalista que encarregado de cobrir a cobertura de Veja, da Folha ou do Globo teria coragem de apertar suas fontes ou entrevistados – como se faz com políticos e empresários – se aqueles são seus potenciais empregadores ou contratadores?
É por essa razão que o acompanhamento da mídia no Brasil confina-se aos veículos alternativos, à coluna ‘Ombudsman’ da Folha ou à esfera acadêmica. Não alcança o grosso da audiência nacional e priva-a do acompanhamento de um setor vital do processo político.
A imprensa brasileira não poderia escolher melhor momento para deixar de lado sua onipotência e equiparar-se aos demais poderes. Nas últimas quatro semanas, apoderou-se da chave da rinha onde transcorre o mais importante embate antes do pleito de 2006 e que, certamente, influirá em seus resultados. Para livrar-se de qualquer suspeição é indispensável que desde já aprenda a despojar-se da tradicional inacessibilidade.
Foi no decorrer da cobertura do Caso Watergate que a imprensa americana descobriu a necessidade de desnudar-se e expor-se ao debate. Precisava mostrar-se confiável. O media criticism e o media watching (até então limitados à esfera acadêmica e corporativa) passaram a ser praticados de forma irrestrita e ostensiva.
A disposição de revelar segredos e intimidades foi decisiva para conferir à imprensa americana a aura de respeitabilidade que produziu a renúncia de Nixon. Foi o jogo limpo da mídia que obrigou o presidente renunciante a proclamar aquele patético ‘I’m not a crook’ (não sou um pilantra).
Estamos longe disso.
[Texto fechado às 21h46 de 13/6/05]