Como se sabe, um dos desafios postos hoje para jornais e revistas, a ‘velha’ mídia, é oferecer não apenas a simples descrição dos fatos, tal como apurados pelos repórteres, mas também mais análises. A descrição é indispensável, mas cada vez menos suficiente porque o fato chega ao conhecimento do leitor, de uma maneira ou de outra, com uma instantaneidade que os periódicos convencionais nem sonham em alcançar.
A análise credenciada se tornou tanto mais importante na medida em que a internet, em seus 15 anos de existência no Brasil, foi deixando de ser basicamente uma plataforma de diálogo solidário, colaborativo, atributo que felizmente não perdeu, e se tornou também canal de facciosismo e de espírito de manada. Para não falar em agressividade, calúnia, injúria e difamação; o que a internet revela sobre a alma e a mentalidade de alguns internautas é constrangedor, quando não dá calafrios.
Os repórteres foram treinados, até aqui, para sobretudo se aterem aos fatos (o que já não é pouca coisa). Será necessária, possivelmente, uma revisão cultural nas redações, para que uma dose maior de análise seja incorporada à própria descrição factual. Não apenas a análise ao lado da matéria, num box, mas a análise integrada à reportagem. O treinamento dos jornalistas precisa ser modulado para fazer face a essa necessidade. Com cuidado, porque o risco de se cair no opinionismo é grande.
Outro terreno que precisa ser revisto é o da exagerada dependência de numerologia. As redações continuam viciadas. Precisam se desintoxicar.
Professores neuróticos
Duas reportagens recentes da Folha de S.Paulo ‒ que poderiam ter saído em qualquer outro grande jornal e são avaliadas aqui apenas em caráter exemplificativo ‒ mostram isso. São matérias que partem de números e não vão muito além deles.
A primeira, de 11 de outubro, foi publicada no caderno ‘Cotidiano’ sob o título ‘SP dá 92 licenças por dia para docente com problema emocional’. Subtítulo, ou, como se diz no jargão, linha fina: ‘De janeiro a julho, estado teve 19.500 afastamentos de professores com depressão e estresse’. E há ainda um ‘olho’ que antecede o início da reportagem: ‘Número corresponde a 70% do que foi dado em todo o ano passado; problema leva docentes a ‘explodirem’ em sala’.
O texto trabalha com cases de São Paulo e do Rio e vem ilustrado com foto de uma professora que não pretende pisar nunca mais numa sala de aula. O que não se fica sabendo, entretanto, é algo a respeito do mundo de problemas que estão por trás dos colapsos nervosos de professores. A única pista vem minguada, rala:
‘Relatos de professores à Folha mostram que a bagunça da sala, somada às vezes a problemas pessoais, leva a reações como batidas de apagadores, gritos, xingamentos e até violência física. Atos que acabam afastando muitos docentes das aulas.’
Crianças ‘endiabradas’
Convenhamos: bagunça na sala de aula é pouco para fazer um professor perder as estribeiras. É um fenômeno mais velho do que a Sé de Braga. Só não há em colégios onde vigora disciplina militar, se é que eles ainda existem. Não justifica o que a matéria, curiosamente, descreve como ‘sintomas de um distúrbio chamado histeria’. O nervo da questão não é mencionado: o formato da escola não convence mais os estudantes, não responde mais às necessidades deles. Entre outras razões, pela facilidade com que têm acesso a informações, de boa ou duvidosa qualidade.
A irreverência cresce em proporção ao sentimento de inutilidade da faina escolar. Muitos professores não têm treinamento em didática porque isso não é objeto de atenção na universidade. Há escolas em áreas altamente problemáticas, onde é arriscado entrar, ficar e sair. Muitos diretores não se empenham em manter padrões mínimos de qualidade do ensino, aprendizagem, convivência, urbanidade.
A explicação dos ‘problemas pessoais’ não leva a lugar nenhum. Quem não os tem? Quem pode dizer que eles nunca interferiram em sua atividade profissional?
Uma nota pitoresca. A reportagem diz que ‘Daniela [nome fictício], 40, também não quer mais voltar. Ela tirou uma licença de 90 dias depois de ‘explodir’ na sala de aula e gritar com os alunos. Foi socorrida por colegas. Docente do 3º ano fundamental (alunos com oito anos), diz ter sido ameaçada e agredida pelo estudantes’. Ora, como é que alunos com oito anos de idade podem ‘ameaçar e agredir’ uma professora? Parece filme de terror, com crianças ‘endiabradas’. Será que os ex-aluninhos de Daniela estão com essa bola toda?
Notícia seria o contrário
A outra reportagem também mergulha na numerologia e, quando sai do outro lado, constata-se que não disse rigorosamente nada. É do dia 14 de outubro, caderno ‘Poder’, e tem os seguintes título e complemento: ‘Tiririca é o mais votado nos presídios de SP. Ele foi notificado por ação que o acusa de ter falsificado documento entregue ao STF’.
Aqui, para começar, temos um caso típico em que o autor do título forçou a barra porque uma informação não tem qualquer relação com a outra. São duas matérias diferentes que alguém resolveu unificar. Ou será que o nobre redator quis dar a entender que Tiririca, por ter sido acusado de falsificação, deveria estar preso à espera de julgamento? Ou então, em outra vertente, que o fato de ter sido o ‘mais votado’ (com 122 votos num universo de 1.464 eleitores, diga-se de passagem) é explicado pela acusação de falsificação?
É o caso de se perguntar: Tiririca foi o mais votado; e daí? Por que os presos provisórios habilitados a votar teriam comportamento diferente de seus concidadãos paulistas em liberdade que deram 1,3 milhão de votos ao candidato puxador de votos? Notícia mesmo, segundo os manuais de redação, seria exatamente o contrário: ‘Tiririca não foi o mais votado nos presídios’, o que faria suspeitar de um nível de consciência diferenciado entre os que andam vendo o sol nascer quadrado.
Mudança cultural
Fato interessante aparece quase no pé da matéria: ‘O candidato a deputado federal Ney Santos (PSC), que foi acusado pela polícia de ligação com a facção criminosa PCC, conseguiu apenas dois votos nos presídios (e 40.319 votos fora deles; o Partido Social Cristão de São Paulo elegeu Marco Antônio Feliciano, com 211.855 votos, e Marcelo Theodoro de Aguiar, com 98.842 votos)’.
A matéria sobre a votação de Tiririca nos presídios também esteve em destaque no serviço ‘Eleições 2010’ do portal UOL. Ela contém toda a numerologia dos resultados produzidos por esses 1.464 votantes: presidente, governador, senador, alguns candidatos a deputado federal e outros a deputado estadual. Não chega a conclusão alguma, não contém nenhuma análise.
Sem querer desmerecer o trabalho que deu fazer essa matéria, o retrato superficial só reforça a tese de que a mudança cultural que vai garantir a saúde futura dos jornais e revistas mal começou – e precisa avançar com velocidade.
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Jornalista