Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Falta a Guerra Fria acabar no jornalismo

O restabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba, a despeito da permanência do bloqueio econômico, ainda que com o parafuso mais frouxo, merece mesmo os festejos dos povos separados geograficamente por escassas milhas náuticas e, por mais de meio século, por um oceano de desinteligências entre os seus governantes.

Os presidentes Barack Obama e Raúl Castro, ao menos nesse mês iluminado de dezembro de 2014, valem um copo de rum cubano ou de pinot noir californiano.

Se o camisa 10 da Casa Branca e o antigo guerrilheiro da Sierra Maestra conseguiram se entender, a distensão também poderia prosperar noutros fronts, o jornalismo incluído.

Conforme anotaram observadores, como o jornalista e escritor Fernando Morais, de algum modo a Guerra Fria enfim encontrou uma cova para ser sepultada – o confronto surreal das Coreias não conta, pois não parece coisa deste mundo.

No Brasil, o espírito permanente de gladiador ideológico e a paranoia da era das quizumbas entre Moscou e Washington resistem à passagem do tempo.

Como explicar o surto denuncista contra o suporte ao porto de Mariel, construído em Cuba e financiado com recursos brasileiros? Era uma evidente aposta na reincorporação plena da ilha ao mercado mundial, sobretudo nos negócios, ali do lado, com empresas de capital norte-americano. Em suma, uma típica iniciativa capitalista, que ontem [quarta, 17/12] se provou certeira.

“Nós” e “eles”

Mas por que tantas vozes do jornalismo foram tão estridentes contra a ação do Planalto?

Na grita geral, ecoava a intolerância da Guerra Fria – e o muro de Berlim foi derrubado há 25 anos.

No noticiário deflagrado a partir da tarde da quarta-feira sem futebol, o jornalismo brasileiro foi ostensivamente discreto ou silenciou sobre um episódio decisivo na relação conflituosa entre Cuba e EUA: a covarde e desastrada invasão organizada e comandada pela CIA em 1961, na Baía dos Porcos (ou Playa Girón, como a chamam os caribenhos).

Imagine se o serviço secreto cubano, dirigido por um ex-aluno da Columbia University, tivesse tramado e executado uma invasão maluca ao gigante ao norte. Alguém deixaria de mencionar na cobertura das novas de ontem?

Ou se agentes cubanos tivessem montado dezenas de planos para assassinar um presidente americano…

De novo, o espírito da Guerra Fria dominou, “eles'' e “nós'', seja lá quem sejam eles e quem sejamos nós.

Jornalismo tem de ser crítico, mas jornalismo, e não propaganda.

Já chega, né?

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Mário Magalhães é jornalista