As imagens das despedidas ao líder palestino Yasser Arafat e dos combates em Faluja monopolizaram a edição do Jornal Nacional de 12/11. Tanto num como noutro acontecimento, viu-se uma cobertura pautada sobretudo pela exploração da emoção. Mas, no caso da ação dos marines nas ruas da cidade iraquiana, a angulação dada à matéria atingiu um paroxismo digno de um filme de guerra de Hollywood. O repórter cinematográfico ‘embutido’ nas tropas flagrou cada rajada de balas, cada centímetro do território invadido com uma riqueza de detalhes que somente o cinema e os seus atributos ficcionais podem proporcionar.
A reportagem atingiu o clímax no instante em que um grupo de soldados americanos subjugou um prisioneiro iraquiano e o submeteu a interrogatório doutrinador. O som original foi mantido pela editoria do JN. A cena poderia ser tranqüilamente confundida com uma passagem de O resgate do soldado Ryan ou similar saído de um script de Oliver Stone, Francis Ford Coppola ou Steven Spielberg.
Essa midiatização do palco de guerra, a transformação do sofrimento humano em atração fílmica promove não somente a escamoteação da informação, como contribui para reforçar algumas das características presentes na cobertura telejornalística dos conflitos do Oriente Médio, desde a Guerra do Golfo, e em outras zonas conflagradas do planeta.
Por trás da informação
A seqüência vertiginosa de imagens de Faluja, tomada pelas agências de notícias internacionais e veiculada sem qualquer interferência crítica pelo JN – a não ser por um rápido ‘colorido’ do repórter William Waack – mostra uma visão unilateral da ofensiva. Em primeiro lugar, adota o ponto de vista do invasor: do outro lado da mira está o inimigo que precisa ser combatido e exterminado, numa luta do Bem contra o Mal. Aqui estão refletidos o maniqueísmo e o fundamentalismo de Bush e sua tropa de choque do Pentágono, devidamente encampados pelas grandes corporações noticiosas. A cena do marine passando uma descompostura moralista no indefeso iraquiano é lapidar e sintomática da imposição dos ‘princípios morais’ dos Estados Unidos sobre o resto do mundo.
Na velocidade, no imediatismo dessas imagens, a impossibilidade da reflexão. Na ausência dela, passa a ser absorvida como moeda sonante a versão do Exército americano. Por outro lado, a lógica da emissão da notícia de TV se pauta pelo impacto da emoção. Esta bastaria, por si só, para sensibilizar o telespectador para os fatos que se desenrolam diante de seus olhos. A emoção, assim, funciona como um espelho pálido da verdade, substituindo-a.
No caso da reportagem sobre Faluja, deu-se ênfase aos tanques que avançavam sobre o que restou da cidade, ou ao soldado americano que mirava e disparava, num jogo rápido de imagens que fizessem por garantir a fixação das retinas compenetradas na tela da TV, como num filme. E naquele filme a mensagem era clara: o pelotão vitorioso de Bush avançava firme sobre o território inimigo, conquistando-o.
Mas a questão não está naquilo que vem sendo mostrado com status de verdade, mas o que se oculta por trás da informação. Quantos morreram do ‘outro’ lado, entre velhos e crianças, vítimas civis da invasão que não pediram para essa guerra começar e jamais saberão quando ela vai terminar? Esses aspectos não ocuparão os espaços dos telejornais até o momento em que se transformem em notícias sensacionais e monopolizadoras da emoção do telespectador. Não são, afinal, informações fílmicas. Elas precisarão passar por uma seleção, conforme notou Pierre Bourdieu [Sobre a televisão]:
Os jornalistas têm ‘óculos’ especiais a partir dos quais vêem certas coisas e não outras; e vêem de certa maneira as coisas que vêem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado. O princípio da seleção é a busca do sensacional, do espetacular. A televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico.
A versão do futuro
O foco sobre os marines em Faluja esconde o que poderia ser revelado: o ‘outro lado da história’, que é ocultado, eliminando a hipótese de qualquer outra versão, o que, de resto, é um hábito da mídia – e, claro, dos telejornais –, segundo referiu Pierre Bourdieu, ainda na obra citada:
(…) A televisão pode, paradoxalmente, ocultar mostrando, mostrando uma coisa diferente do que seria preciso mostrar caso se fizesse o que supostamente se faz, isto é, informar; ou ainda mostrando o que é preciso mostrar, mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou construindo-o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à realidade.
Numa era como a nossa, marcada pelo monopólio crescente da televisão, ‘lembrar, cada vez mais, não é recordar uma história, e sim ser capaz de evocar uma imagem’, reflete Susan Sontag em Diante da dor dos outros. Se confirmada essa reflexão, é a versão do Departamento de Estado americano sobre Faluja que vai prevalecer no futuro, graças a enfoques jornalísticos como os do Jornal Nacional. Nada mais falso.
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Estudante de Jornalismo e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)