Quando se anuncia um grande negócio, é fácil embarcar nas comemorações. A notícia é dada com alarde, com o claro objetivo de espalhar boas vibrações e acalmar os mercados. O discurso se apoia basicamente nas cifras envolvidas e na ideia (nem sempre verdadeira) de que foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Isso aconteceu na fusão das empresas para a criação da Ambev – “Uau! Teremos agora uma multinacional da cerveja!” – e em diversas jogadas de Eike Batista – “Esse cara é agressivo! Isso sim é empresário de verdade!”. Por isso não se surpreenda com o que ouvirá nos próximos dias, agora que foi confirmada a venda dos ativos do Grupo RBS em Santa Catarina. Vão tentar convencê-lo de que é uma excelente notícia e que os benefícios são de todos. Mas será mesmo? Afinal, quem ganha com a venda da RBS no estado?
Alardeada várias vezes, a notícia só se tornou fato hoje, com anúncio formal da cúpula da RBS. Boatos mais insistentes começaram a circular em Florianópolis no começo do ano a partir do jornalista Paulo Alceu. Da sede em Porto Alegre, o grupo se apressou a desmentir. Um mês depois, passaram a circular a conta-gotas informações mais consistentes, como a de que os acionistas do grupo teriam sido comunicados, e que uma videoconferência daria a notícia aos empregados. Isso se deu no início da tarde de hoje, 7, quando os funcionários foram reunidos para um comunicado oficial. Nelson, Pedro e Eduardo Sirotsky falaram pela RBS. Ao lado deles, estavam Lírio Parisotto, Carlos e Marcus Sánchez, os compradores.
Para alguns analistas, um fator foi decisivo nesta história: o suposto envolvimento da RBS num grande esquema de corrupção para abater ou perdoar dívidas fiscais, investigado na Operação Zelotes. A menção ao grupo não apenas teria trazido prejuízos financeiros e de imagem como teria azedado as relações com a TV Globo, principal parceira.
O raciocínio faz sentido, mas não vamos alimentar a esperança de que confirmem as cartas na mesa. De concreto, o que se tem é que a transação fez com que metade de um conglomerado de comunicação trocasse de mãos num passe de mágica. Não é pouca coisa, a se julgar que o Grupo RBS era o maior grupo regional privado de mídia do país, reunindo 57 veículos e atuando com supremacia no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina.
Não se falou em dinheiro, mas o acordo dos acionistas estaria na casa dos R$ 700 milhões, que, se forem confirmados, é um ótimo negócio para quem comprou. Em Santa Catarina, as operações em comunicação incluem a RBSTV – afiliada da TV Globo e líder de audiência -, TV COM (Florianópolis), quatro emissoras de rádio (Atlântida, CBN Diário e Itapema de Florianópolis e Joinville) e os quatro maiores jornais do estado (Diário Catarinense, A Notícia, Jornal de Santa Catarina e Hora de Santa Catarina). Mas a presença do grupo no estado não se marca apenas pela ocupação e exploração dos principais segmentos. É preciso reconhecer que o conglomerado contribuiu para profissionalizar muitas práticas (editoriais, comerciais e de gestão) e soube projetar sombras assustadoras sobre seus concorrentes. Não é exagero dizer que as comunicações nunca mais foram as mesmas depois que os Sirotsky esticaram os olhos para além de suas fronteiras gaúchas.
Magnatas
O lance anunciado hoje não aponta apenas mais um grande negócio no Brasil. É também pouco comum que conglomerados midiáticos – ao menos por aqui – sejam adquiridos numa única tacada. Do ponto de vista gerencial, há ainda uma distinção bem clara: se a família Sirotsky sempre foi identificada com o ramo das comunicações, os novos compradores são neófitos na área.
Carlos Sanchez construiu um império no setor de fármacos, e foi o primeiro a produzir nacionalmente medicamentos genéricos. Dono da EMS, lidera o segmento de genéricos desde 2013 e tem outros três laboratórios: Legrand, Germed e Nova Química. É discreto e agressivo nos negócios, e vem alardeando há pelo menos dois anos que vai entrar com tudo no ramo de medicamentos inovadores.
Lírio Parisotto, que vai responder por 25% do conglomerado que era da RBS, é médico de formação e conhecido e bem sucedido homem do mercado de capitais. Foi agricultor pobre, mas conseguiu romper com as estatísticas, tornando-se mais um bilionário brasileiro. Entre suas empresas, está a Videolar, que, entre outras coisa, fabrica mídias removíveis para DVDs, CDs e Blu-Rays. Afora esse detalhe, Parisotto também não tem qualquer expertise na área de comunicação, mas isso não parece preocupar.
A transição da RBS para o Grupo NC deve durar dois anos e os dois lados do negócio anunciaram que o atual diretor-geral de Televisão em Santa Catarina, Mário Neves, presidirá o novo player. Comitês setoriais serão criados nas próximas semanas para facilitar a passagem do bastão. Órgãos como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) também precisarão dar anuência ao negócio. Como se trata ainda de concessões públicas de rádio e TV, o Congresso Nacional deve ser comunicado. Nelson Sirotsky ligou hoje cedo ao ministro das Comunicações, André Figueiredo, para antecipar a novidade.
Dois pequenos detalhes poderiam vincular os compradores à RBS e à Santa Catarina. Parisotto vem do Rio Grande do Sul, sede do grupo de comunicação. Carlos Sanchez cresceu atrás do balcão do estabelecimento comercial do pai, curiosamente a Farmácia Santa Catarina. Ambos não entram em disputas para perder. Uma piada interna no grupo de Sanchez ajuda a entender: dizem que EMS significaria “Eu mando sozinho”.
Amor e ódio
Embora motivo de boatos há décadas, o negócio pegou muita gente de surpresa. Seu principal jornal por aqui – o Diário Catarinense – está comemorando trinta anos em 2016, e recentemente passou por um reposicionamento de mercado, que consistiu, por exemplo, na reafirmação do jornalismo como propósito de existência e na ênfase dos laços com a comunidade. A história dos Sirotsky entre os catarinenses vem de 1979, com a primeira emissora de TV, e de lá pra cá a história teve altos e baixos. Se por um lado a RBS ajudou a organizar o mercado, por outro, foi constantemente acusada de forasteira, conforme analisa Carlos Alberto de Souza no livro “O fundo do espelho é outro: quem liga a RBS, liga a Globo” (Ed. Univali, 1999). Ao informatizar redações, fixar padrões de qualidade editorial e tentar domesticar agências de publicidade e anunciantes, o grupo deu impulsos importantes para que o setor se modernizasse no estado. Mas as constantes demonstrações de força não foram suficientes para garantir um ambiente sem críticas, queixas e contestações.
As últimas quatro décadas produziram uma relação tumultuada entre sociedade e o Grupo RBS. Por isso, o anúncio da venda das operações no estado pode gerar sentimentos contraditórios e confusos. Não duvido que haverá saudosos dos “bons tempos da RBS” muito em breve. Assim como certamente ouviremos dizer muitos “já vão tarde”.
O abandono do mercado catarinense é uma boa notícia para os Sirotsky? Não, não é. Ele se traduz em perder uma praça rentável, completamente pacificada e habitada por concorrentes nanicos. As perdas se dão nos planos financeiro, simbólico – pois o conglomerado encolhe! – e político. O comunicado da RBS agradece à sociedade catarinense pela experiência, frisa que vai se concentrar no Rio Grande do Sul e ponto. Se for verdadeira a história de que a Operação Zelotes foi determinante, tratou-se do conhecido movimento de dar os anéis para não perder os dedos. Mas isso é a se conferir…
Foi então um bom negócio para a concorrência? Não necessariamente. Note-se que, com a venda de todas as operações da RBS no estado, o mercado continua a ter um player gigante, agora com apetite renovado. Ainda não sabemos qual o projeto ou estratégia dos novos proprietários, mas o discurso usado nesta segunda-feira foi de que nada muda, esperado para tranquilizar o mercado. Se for assim, teremos apenas a troca de letras: de RBS por NC. Se o grupo tivesse se pulverizado, poderíamos ter uma nova correlação de forças em diferentes segmentos, mas isso não se deu. Concorrentes fragilizados como a TV Band SC – que fechou recentemente duas sucursais no interior e atrasa salários há meses – também pouco podem fazer para reequilibrar a balança local.
Se não foi uma boa para os vendedores nem para a concorrência, foi ao menos positivo para o público? É cedo para dizer já que não temos qualquer garantia de mudança na qualidade dos produtos e serviços. O jornalismo e o entretenimento fornecidos podem melhorar ou não, mas de imediato se pode afirmar que a oferta de conteúdos se mantém limitada. Isto é, quem assume as operações da RBS em Santa Catarina o faz de forma concentracionista, pouco plural e violando regras constitucionais, como a que impede a propriedade cruzada dos meios de comunicação. Traduzindo: a Constituição Federal proíbe que o setor seja oligopolizado e que uma mesma empresa atue no segmento de jornal e rádio ou TV simultaneamente. Os Sirotsky – e outros por aí – ignoravam esses entraves e nada deve mudar sob nova direção.
A saída da RBS de Santa Catarina foi positiva para os funcionários? Difícil dizer ainda. A depender dos planos de Parisotto, Sánchez e demais investidores. O fato é que hoje pela manhã os funcionários nada sabiam, além do que circulava pelas redes sociais. Próximo do meio-dia, mensagens eletrônicas confirmaram a videoconferência para o início da tarde. O clima era de apreensão e expectativa, que foi substituído depois por relativa calma, após garantias de não fechamento de jornais ou demissões. Entretanto, a transição de dois anos deve trazer novos episódios em breve, imaginam alguns.
No final das contas, a venda da RBS em Santa Catarina foi uma ótima notícia para seus compradores. Ganham os empresários porque amealham uma marca forte, uma estrutura consolidada e um mercado servil. Divisões menores – como o Jornal de Santa Catarina e A Notícia – talvez ganhem novo fôlego, pois eram tratados com algum menosprezo pelos dirigentes de Porto Alegre. Diário Catarinense e a RBSTV também deixam de ficar à sombra de Zero Hora e da emissora da capital gaúcha. Mas isso são suposições num jogo cheio de variáveis.
A tendência é que o Grupo NC se aproxime do governo do estado e de alguns municípios estratégicos, estabelecendo relações de parceria e boa convivência. Não que o governo Raimundo Colombo fosse distante do governo dos Sirotsky, mas novos mandatários precisam de aliados assim que assumem novas terras. Pelo menos até que as coisas se reacomodem como estavam até antes do fatídico anúncio da venda, quando as zonas de atrito eram mínimas e o respeito próprio dos gigantes permitia que habitassem o mesmo território. Isso pode ser muito ruim para o público, potencialmente privado de um jornalismo que fiscalize mesmo os movimentos dos governos e que seja mais autônomo.
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Rogério Christofoletti é professor da UFSC e pesquisador do site ObjETHOS