Nelson Rodrigues disse que toda unanimidade é burra. A grande imprensa mereceria essa declaração do singular dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro. Generalizou, na presente crise monetária, desencadeada pela explosão do setor imobiliário, nos Estados Unidos, a distinção, amplificada pelos editoriais e comentários econômicos, entre economia especulativa, irreal e economia real. O entendimento, pelo que se lê, é que ambas são seres estranhos entre si. Não se reconhecem no todo, expressam-se como partes. A parte estaria separada do todo, assim como o todo prescindiria das suas partes. Artificialismo mecanicista.
A tentativa de fazer crer leitores e leitoras nessa mentira caiu por terra no auge do sobe-e-desce das cotações dos fundos de investimentos alavancados, diante do comunicado do Banco Central dos Estados Unidos, na sexta-feira (17/8). Nele, as autoridades monetárias norte-americanas reconhecem o óbvio: a especulação desenfreada, ao chegar ao final, deixa a economia real à beira da recessão. Por isso, decidiram injetar dinheiro na veia do sistema capitalista. Afinal, este estava sendo falsamente dinamizado pela ficção, renda gerada na especulação, caracterizando a essência do capitalismo dominado pela financeirização econômica.
A cadeia da felicidade, bancada pela ficção, esticou a corda até esta rebentar o mercado e o entendimento equivocado da grande mídia relativamente à dualidade intrínseca do real concreto em movimento dialético e à interatividade entre especulação e produção, vistas como conteúdos estantes. O BC dos EUA mostrou a artificialidade mecanicista neoliberal.
O fetichismo das mercadorias
Evidenciaram-se dois fatos que a mídia ainda não destacou, para não colocar em causa sua própria falha no entendimento da crise. Primeiro, que deixada a si mesma, em seu movimento autodestrutivo, a especulação vigente no mercado livre neoliberal, impulsionada pela sobrevalorização de capital, tanto nos países ricos, como nos pobres e remediados, empurra a humanidade consumista-hedonista ao caos. Segundo, que a renda gerada na especulação, ou seja, na ficção econômica, transformou-se, sob a financeirização econômica global, no principal oxigênio da economia real.
A ficção passou a comandar o real, e não o real a determinar a ficção. Ambos se revelaram unidade ao se indentificarem na turbulência financeira que furou a bolha imobiliária especulativamente desenvolvida até o limite da explosão inexorável. O BC norte-americano, diante do horror econômico, praticou o mais puro anti-neoliberalismo em oposição ao neoliberalismo que prega para os outros. O Estado interveio no mercado para detonar a pregação que ele mesmo faz para os outros, mas não para si mesmo. A realidade neoliberal demonstrou ser irreal, mas a grande mídia cuidou – e ainda cuida – de mascará-la. Segue o conselho de Keynes: ‘Temos que fingir para nós mesmos que o útil é verdadeiro. Se deixa de ser útil, deixa de ser verdade.’
A roda da fortuna que se criou no mercado imobiliário – como já havia ocorrido no final dos anos de 1990 com as empresas de tecnologia ponto.com – em que o empréstimo à compra da mercadoria se submeteu ao mecanismo de multiplicação artificial-especulativa de sua própria reprodução em forma de supervalorização, chegou ao limite do estresse quando se percebeu que os investidores não tinham renda suficiente para quitar suas dívidas nem até à quarta ou quinta geração. A interatividade especulação-renda-produção-consumo, escondida dos editoriais, mostrou o despropósito midiático da tentativa de separar o real do irreal, visto que a renda gerada na irrealidade especulativa transformou em consumo do real refletido nas mercadorias. Nunca o fetichismo das mercadorias ficou tão claro.
‘Uma ciência lúgubre’
Só é possível entender o caráter fundamental do capitalismo, que tornou o real dependente da ficção e vice-versa, quando se compreende que a moeda capitalista, depois da crise de 1929, amplificada, agora, na crise imobiliária, não é apenas meio de troca, mas poder promotor da troca, na medida em que cria, via especulação, renda monetária que se destina ao consumo de bens e serviços. Dinheiro parindo dinheiro configura a realidade em que o trabalho deixa de ser fundamental ao capital, visto que o capital se reproduz, na atividade especulativa, sem precisar do trabalho. Esse é o perfil capitalista dominado pelo padrão monetário sustentado na moeda estatal sem lastro emitida pelo país mais poderoso do mundo, os Estados Unidos, que substituiu o padrão monetário sustentado em reservas metálicas, predominante no século 19.
O ouro e a prata, que antes representavam a reserva de valor por trás do fetichismo monetário capitalista, levaram o sistema, como previu Malthus, à impossibilidade de realização da produção no consumo, mediante seguidas crises deflacionárias, simplesmente porque a reprodução do capital impõe, necessariamente, a crônica insuficiência relativa de demanda global, que marca a vida do capitalismo desde os seus primórdios.
Todas as crises capitalistas, durante o século retrasado, a partir da de 1810, como a crise do algodão, na Inglaterra, passando, depois, pelas que a seguiram, em 1830, 1850, até a grande crise neoliberal de 1873-1893, como destaca Hobsbawm em A Era do Capital, foram produzidas por excesso de sobre-acumulação, responsável por produzir, incontrolavelmente, o sub-consumismo capitalista. Como resultado, depois de 1893, emergem os monopólios e os oligopólios que levam a humanidade à conquista desenfreada dos mercados, desembocando na primeira guerra mundial, como tentativa de fugir da destrutiva concorrência neoliberal. ‘A economia é uma ciência lúgubre’ (Malthus).
A moeda estatal
Sem conseguir reproduzir-se na produção, o capital sobre-acumulado descola-se das atividades produtivas e caminha para a Bolsa, onde busca sua sobrevivência nas atividades especulativas, como já dizia, no tempo de Napoleão, o grande especulador bursátil Talleyrand, conforme destaca E. Tarlé, em Talleyrand, diplomata da burguesia em ascensão.
A produção e a produtividade crescentes, no compasso do desenvolvimento científico e tecnológico a serviço da reprodução capitalista, não confirmou a Lei de Say, segundo a qual toda a oferta gera demanda correspondente, de forma que o sistema se equilibraria eternamente. Teria razão Jean Baptiste Say, pai espiritual dos neoliberais, frisou Marx, se as mercadorias que vão para o mercado, fossem vendidas sem lucro. Como o lucro é a motivação maior do sistema capitalista, pois nenhum empreendedor está disposto a pagar para trabalhar, já que, estacionado nos juros, pode ganhar sem suar a camisa, a realização do lucro impõe necessariamente o desequilíbrio entre oferta e demanda, elevando a formação de estoques excedentes, cujo resultado é queda dos preços e conseqüente deflação. Nada mais lúgubre.
O equilibrismo esquizofrênico, antinatural, tão ao gosto dos neoliberais, sob o padrão ouro, resultou sempre, quando expresso na prática, em destruição deflacionária. Torna-se, historicamente, necessária, no final do século 19 e início do 20, a emergência do oposto da deflação: a inflação, por sua vez, incompatível com o padrão ouro. A inflação, o contra-pólo da deflação, requereu novo padrão monetário e um novo consumidor – não mais de mercadorias, mas de não-mercadorias, adquiridas, não pela moeda ancorada nos metais, mas pela nova moeda destituída de qualquer lastro, a estatal, como viria a ser, durante o século 20, o dólar, depois que o padrão-ouro foi aos ares. Marx: ‘O capitalismo desenvolveria ao máximo as forças produtivas, entraria na senilidade e passaria a desenvolver as forças destrutivas, na guerra.’
Estado industrial-militar
Materializava-se, com o fim do padrão-ouro, o sonho histórico da burguesia em sua luta secular, permanente, contra as monarquias. Livre do cabresto estreito do padrão-ouro, cujos pressupostos, baseados no equilíbrio orçamentário, a burguesia pregava, para evitar que as monarquias gastassem demais, levando-as a aumentar impostos em cima das atividades burguesas, os burgueses, ao chegarem ao poder, livres das nobrezas e dos reis gastadores, perceberam que, no comando do Estado, poderiam agir de outra maneira. Por que se submeteriam ao controle monetário que pregavam para o rei, quando se transformaram igualmente em majestade, no comando do Estado capitalista?
A moeda estatal capitalista é a moeda da burguesia, que derruba a moeda monárquica, deficitária pelo excesso dos gastos do reino, e se safa da influência do poder monárquico. É o predomínio monetário burguês que se expressa, depois da grande crise de 1929, no comando do poder estatal, cuja característica principal passa a ser a de emitir dinheiro ancorado na própria força econômica e militar do Estado, como destacou o ex-presidente Eisenhower em 1960, ao caracterizar os Estados Unidos como o Estado industrial-militar, construído, graças ao dólar emitido sem lastro, para evitar que o socialismo triunfasse sobre o capitalismo.
Ricos têm direito
A força desse Estado, naturalmente, se encontra na sua capacidade de produzir moeda fictícia, ou seja, de sua capacidade de endividar-se, dado que a dívida pública se transforma, sob o padrão monetário estatal inflacionário, no instrumento principal de combate à inflação. A divisão internacional do pós-guerra consagrou essa prática. Mediante déficits públicos crescentes, os Estados Unidos, fortificados, realizariam, no consumo, via moeda fictícia, deslastreada, a produção exportada dos seus aliados. Em troca, protegeria o mundo capitalista, armando-se contra os comunistas. Com uma mão, o governo joga moeda estatal na circulação capitalista. Com a outra, lança títulos da dívida pública, para enxugar parte da oferta monetária, a fim de evitar enchente inflacionária. A dívida pública interna passa, dialeticamente, a crescer no lugar da inflação. Se o limite de endividamento bate no teto, quebra-se o instrumento anti-inflacionário.
A moeda do século 20 não é apenas mediadora das trocas de bens e serviços, como se fosse algo neutro, tão caro aos neoliberais, que os editorialistas e comentaristas da grande imprensa consomem com grande sofreguidão. Pelo contrário, ela ‘é o sopro do poder estatal que lhe dá vida e poder’, como destacou Hjalmar Schacht, o mago das finanças de Hitler, em Setenta anos de minha vida (Editora 34). O Estado vira capital, poder, dinheiro sobre coisas e pessoas (Marx).
Claro, tais limites estreitos do endividamento estatal capitalista valem para os países menos poderosos, mais endividados, que dependem da poupança externa, para se desenvolver, como é, historicamente, o caso brasileiro e de toda a América Latina. Não valem, naturalmente, para os Estados ricos, como os Estados Unidos. Pelo menos até agora, como demonstrou a ação do BC norte-americano na semana passada. Os ricos têm direito, garantido, naturalmente, pelos estoques de bombas atômicas acumuladas, de emitirem sem lastro, transformando em realidade a ficção monetária. Bancam a produção de bens e serviços que o padrão ouro deixara de estimular, levando a economia do livre mercado à crise de realização na deflação.
O discurso nacional-socialista
Tal fato permite que os Estados Unidos preguem aos países devedores ajustes fiscais e monetários ortodoxos, enquanto fogem dessa obrigação quando estão em situação complicada. A explosão imobiliária, gerada na superespeculação em cima da sobre-acumulação dolarizada, é exemplo patente. Demonstra, no entanto, que a nação mais rica do mundo, igualmente, alcançou seus limites. Mas, quem vai colocar o guizo no pescoço do gato?
A especulação passou a reproduzir o capital sobre-acumulado a partir da própria circulação monetária, isto é, lucro extraído da moeda, para gerar renda disponível ao consumismo hedonista da classe média global em atividade frenética, manipulada pela propaganda. Conclusão: os rendimentos do trabalho deixaram de ser suficientes para sustentar a reprodução capitalista sob o domínio financeiro. Exemplo: Brasil. Do total da renda nacional, 70% são rendimentos do capital; apenas, 30% correspondem aos rendimentos do trabalho, segundo o IBGE. É matematicamente óbvio que os 30% não conseguem reproduz os 70%. O milagre da multiplicação dos pães fica por conta da especulação fictícia.
O trabalho, como explica Jeremy Rifkin, em O fim dos empregos (Makron Books), tornou-se não apenas incapaz de reproduzir o capital sobre-acumulado, mas perfeitamente dispensável na economia meramente monetária, onde dinheiro produz dinheiro, demonstrando, sob a financeirização capitalista, que o ser humano tornou-se plenamente descartável. Talvez isso explique a banalidade da vida diante da violência que se espraia no ritmo da sobre-acumulação capitalista especulativa. Depois, não venham os editorialistas tentar explicar que o nascimento dos Fidel Castro e dos Hugo Chávez, com todas as suas idiossincrasias, é fruto do acaso. Certamente, no rastro do fracasso neoliberal especulativo, o discurso nacional-socialista terá amplo campo pela frente. Se representa solução ou não são outros quinhentos.
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Jornalista, Brasília, DF