Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Fim do mistério, início da história

Deep Throat: caso encerrado. Após três décadas de suspense, o mistério sobre a identidade da fonte secreta do então repórter do Washington Post Bob Woodward no caso Watergate foi finalmente revelado. O ‘Garganta Profunda’, que ajudou o jornalista a expor o escândalo que levaria à renúncia do presidente Richard Nixon, ganhou nome e rosto na semana passada. Ele é Mark Felt, ex-agente do FBI, 91 anos e saúde frágil depois de um derrame sofrido em 2001.

O furo foi dado na terça-feira (31/5) pela revista Vanity Fair, em artigo assinado pelo advogado John O’Connor, a quem Felt concedeu entrevista. O advogado procurou a revista pela primeira vez em 2003, afirmando representar a fonte anônima mais famosa da história do jornalismo, informa Peter Johnson [USA Today, 1/6/05]. O editor David Friend – a quem costumam chegar dezenas de pautas sensacionais que nunca dão em nada – desconfiou, mas resolveu escutar o que O’Connor tinha a dizer. Na ocasião, Friend e outros editores assinaram um acordo para manter a informação segura, e a matéria demorou tanto a sair porque o advogado tinha planos de antes publicar um livro sobre o assunto.

Entrevistado pelas principais redes de TV americanas na semana passada, O’Connor afirmou que optou por procurar a Vanity Fair, publicação com circulação mensal de 1.1 milhão de exemplares, porque queria um veículo que tivesse credibilidade e boa reputação. Ponto para a revista.

Post: orgulhosamente furado

‘Como, depois de 33 anos de segredo, o Washington Post foi furado em sua própria história sobre o mistério de Deep Throat?’, questiona Howard Kurtz em artigo no próprio Post [2/6/05]. Ter sido furado, neste caso, parece ter caído bem para a imagem do jornal e para as únicas três pessoas – além de Felt – que tinham a chave para o mistério. Woodward, seu companheiro nas investigações sobre o caso Watergate, Carl Bernstein, e o editor responsável pelos dois repórteres na época, Ben Bradlee, prometeram que só revelariam a identidade da fonte secreta quando esta morresse. Cumpriram a promessa, já que não participaram da divulgação da informação.

O editor da Vanity Fair Graydon Carter disse ter se sentido ‘muito mal’ por ter publicado a matéria sem antes consultar Woodward e Bernstein, mas temia que, se o fizesse, pudesse ser furado por eles – pois a revista demoraria cerca de duas semanas para ser publicada. Já o editor-executivo do jornal, Leonard Downie Jr., afirma que não ficou desapontado com a perda do furo porque Woodward – hoje editor-assistente do diário – agiu de forma ‘honrada’ e ‘nunca pressionou Felt a fazer algo que ele não quisesse’.

‘Repórteres vivem pela lei da selva’, analisa Tom Rosenstiel, diretor do Project for Excellence in Journalism, da Universidade de Colúmbia. ‘Você tem a sua palavra, e ela tem que, literalmente, significar algo. Sua credibilidade com todas as suas fontes futuras e a credibilidade do veículo para o qual você trabalha dependem de que as pessoas compreendam isso. O Post parece um melhor jornal hoje porque Woodward e Bernstein se permitiram serem furados’, completa.

Conselheiro, depois fonte

O Post começou a planejar uma matéria sobre Deep Throat há dois meses, quando Downie Jr. ouviu Woodward falar, em uma entrevista, sobre a idade avançada e a saúde debilitada da lendária fonte. Procurado pelo editor-executivo, o jornalista contou que já estava preparando um longo texto sobre sua relação com ela.

O artigo foi publicado no Post na quinta-feira (2/6), e nele Woodward conta como conheceu Felt, em 1970, quando estava na Marinha e não sabia muito bem que carreira seguir. No primeiro encontro entre os dois, em uma sala de espera na Casa Branca, o jovem e falante Woodward puxou conversa com Felt, pois, segundo ele, ‘aquele era um tempo de considerável ansiedade sobre o meu futuro. (…) Durante aquele ano em Washington, gastei muita energia tentando conhecer coisas ou pessoas interessantes’. Felt se tornou uma espécie de conselheiro para Woodward, antes que ele pensasse em ser jornalista. Depois que optou pela carreira, o agente do FBI virou também sua fonte.

Técnicas de espionagem

Em junho de 1972, o repórter foi acordado por uma ligação de um editor do Post pedindo que ele cobrisse o caso de uma tentativa de roubo bastante estranha na madrugada anterior. Cinco homens de terno, com notas de US$ 100 no bolso, carregando escutas telefônicas e equipamento fotográfico, haviam sido flagrados dentro do comitê do partido Democrata, no edifício Watergate, em Washington. Ao investigar, Woodward, junto com Bernstein, começou a descobrir ligações entre os presos e o governo Nixon.

Assim, procurou Felt e ouviu de sua antiga fonte que a partir daquele momento eles não poderiam mais tratar por telefone; teriam que se encontrar pessoalmente e escondidos de qualquer pessoa. O jornalista concordou, e o agente – que em seu início de carreira, durante a Segunda Guerra Mundial, trabalhara na Seção de Espionagem do Bureau – traçou planos e sinais de comunicação. Woodward mudava um vaso de flores com uma bandeira vermelha de lugar quando precisava falar com Felt – seu apartamento, ele não sabe de que maneira, era vigiado. O agente deixava mensagens na página 20 do New York Times que o jornalista recebia em casa – ele também não sabe como isso era feito. Os encontros aconteciam de madrugada, em um estacionamento subterrâneo. Woodward devia seguir orientações de Felt – como sair pelos fundos de seu prédio e tomar dois táxis diferentes – para chegar ao local.

Livro, filme e um segredo

O apelido ‘Garganta Profunda’ foi retirado de um filme pornô do início dos anos 1970, e a emocionante trama política e jornalística foi parar no cinema em 1976, no longa baseado no livro Todos os Homens do Presidente, escrito por Woodward e Bernstein – ou ‘Woodstein’, como a dupla ficou conhecida. Para resumir a história: os ‘ladrões’ que invadiram o comitê democrata eram na verdade espiões, e o dinheiro encontrado em seus bolsos, descobriu-se depois, era proveniente dos fundos de campanha de Nixon. O caso inspira jovens jornalistas até hoje, e a fonte secreta que guiou os dois repórteres a ‘seguirem o dinheiro’, embora haja controvérsias, é vista por muitos como herói.

Por que então Mark Felt se escondeu por trás da sombra de Deep Throat durante tantos anos? O ex-agente, que hoje mora na Califórnia, não achava que suas ações eram apropriadas para um homem do FBI. Segundo o artigo da Vanity Fair, ele chegou a dizer a seu filho que não acreditava que ser Deep Throat era ‘algo para se sentir orgulhoso’. Felt só contou para a família sobre sua ‘identidade secreta’ em 2002, e foi ela quem o convenceu a deixar a informação ir a público. Em depoimento lido pelo neto Nick Jones, os familiares dizem que ele ‘é um grande herói americano que se arriscou para salvar seu país de uma terrível injustiça’.

Além do reconhecimento do grande papel de Felt na história da política e da imprensa americanas, a família admite também que espera ter retorno financeiro com a revelação. Grandes editoras do país, como HarperCollins e Random House, receberam ligações na semana passada de David Kuhn, agente de mídia que representa a família de Felt. Kuhn começou a fazer as ligações menos de 24 horas depois da publicação da história. A família estaria interessada também em projetos de filmes para televisão e cinema. ‘Se me perguntassem antes quanto eu pagaria pelas memórias do Deep Throat, eu diria que o céu é o limite; agora que o mistério foi solucionado, estou certo de que o céu está um pouco mais baixo’, afirma David Hirshey, vice-presidente da HarperCollins, que acredita que o livro com a história de Felt poderia ser vendido por mais de US$ 1 milhão.

Suspeitas, apenas suspeitas

O ex- agente já havia sido apontado como a possível fonte secreta de Woodward, dentro de uma lista maior de pessoas – entre elas a jornalista da rede de TV ABC Diane Sawyer, que então trabalhava no escritório de imprensa da Casa Branca, o ex-conselheiro jurídico do governo Nixon, Fred Fielding, e Ray Price, redator de discursos do presidente.

Em 1992, artigo de James Mann na revista Atlantic Monthly apostou em Felt. Em 1999, a especulação aumentou quando um estudante afirmou que o filho de Bernstein havia revelado a identidade de Deep Throat em um acampamento de verão em 1988, quando os dois tinham cerca de oito anos de idade. Em 2002, Ronald Kessler, ex-repórter do Post, revelou que Woodward havia encontrado Felt para um almoço em 1999, poucos meses antes do 25° aniversário da renúncia de Nixon.

Há três décadas, alguns homens do presidente já desconfiavam do agente, reporta a Economist [2/6/05]. Em uma das gravações das conversas de Nixon com membros do governo, em 1972, Bob Haldeman, chefe de Gabinete, afirma saber a identidade da fonte secreta. ‘Alguém do FBI?’, pergunta o presidente. ‘Sim, senhor. Mark Felt’, responde Haldeman, para completar: ‘Ele sabe tudo o que há para saber no FBI. Ele tem acesso a absolutamente tudo’. Nixon conclui em tom ameaçador: ‘Você sabe o que eu faço com aquele bastardo?’. Na gravação, o presidente não termina o pensamento.

Ainda assim, tudo não passava de especulação. Ninguém sabia ao certo quem era Deep Throat – ou ‘A Fonte’, como Nixon o chamava. Em seus últimos anos de vida, no início da década de 90, o ex-presidente ainda se enfurecia quando pensava no assunto, afirma a matéria da Economist. Ele considerava o ato da fonte secreta desleal, e lia e relia arquivos, marcando e desmarcando possíveis nomes para tentar descobrir sua identidade, sem entender o que havia feito para merecer tal traição.

Ressentimento e proteção

Os motivos que levaram Felt a ajudar Woodward em suas apurações no caso Watergate parecem hoje bem mais pessoais do que altruístas. Segundo homem do FBI, Felt admirava o diretor do Bureau, J. Edgar Hoover. A situação era diferente em relação à Casa Branca de Nixon. ‘As pressões políticas eram imensas, dizia Felt, sem ser específico’, escreve Woodward em seu artigo. Quando Hoover morre, em maio de 1972, Felt seria, por motivos práticos, a pessoa mais indicada a substituí-lo. Nixon, entretanto, nomeia um de seus homens.

Woodward conta que apenas após a renúncia do presidente começou a se questionar sobre as razões que teriam levado Felt a se arriscar – e a arriscar o próprio FBI. ‘Felt acreditava que estava protegendo o Bureau’, diz o jornalista. De forma clandestina, divulgando informações guardadas nos arquivos da instituição, ele ajudaria a construir uma pressão pública e política sobre a administração Nixon – e acabaria com os esforços do governo em tentar manipular o FBI por razões políticas.

‘Se Felt fosse exposto antes, não seria um herói. Tecnicamente, seria ilegal falar sobre arquivos do FBI’, diz Woodward. ‘Mas o ex-espião da Segunda Guerra gostava do jogo. Eu suspeito que, na sua mente, eu era seu agente.’

Serviço à democracia

Jogando ou não, Felt ajudou a estimular os jovens Woodward e Bernstein a conseguirem manter o assunto em evidência, o que levou Nixon a renunciar, em 1974, para evitar um impeachment. As conseqüências do caso, entretanto, foram bem mais profundas. Depois de Watergate, uma série de medidas tornou o governo americano mais transparente. Entre elas está o Freedom of Information Act, que facilita o acesso a documentos secretos. O caso também ensinou o público a sempre suspeitar do governo – qualquer governo.

Na imprensa, Deep Throat reforçou o conceito de jornalismo investigativo e deu legitimidade ao uso de fontes anônimas – ironicamente, hoje enfraquecido e questionado nos EUA com os recentes casos Valerie Plame e Newsweek. Com informações de William Branigin e David Von Drehle [The Washington Post, 31/5/05], Greg Sandoval [AP, 31/5/05], Jennifer Frey [The Washington Post, 2/6/05] e Todd S. Purdum [The New York Times, 3/6/05].