Enquanto por aqui sindicatos e parte substancial da academia perdem tempo com uma luta de caráter corporativista que ganho nenhum trará ao jornalismo ou aos jornalistas, lá fora novos olhares sobre as formas do ‘fazer jornalístico’ são lançados sobre o mercado. Salvo um ou outro raio de luz dos que tentam clarear o debate aqui no Brasil (ver, neste Observatório, ‘A difícil tarefa de fazer jornalistas‘ e ‘Diagnóstico inútil, o paciente está morto‘), o que resta são trevas. Continuamos focados no mainstream.
Uma análise superficial sobre os canais de discussão do jornalismo brasileiro deixa nítida a insatisfação de profissionais e gente interessada em boa informação com o que hoje está sendo feito nos ‘jornalões’ e nas emissoras de TV. Um jornalismo de qualidade duvidosa, comprometido com o poder econômico, seduzido pela ‘espetacularização’ da notícia, pouco comprometido com a essência do ofício.
Há saídas? Arrisco dizer que não há saídas fáceis. Para encontrá-las é preciso despir-se de dogmas e verdades absolutas sobre a profissão.
Algumas propostas têm surgido, em especial nos Estados Unidos. Se elas se adaptam a realidade brasileira é algo a ser analisado com cuidado. O debate local já teve início em alguns blogs de cunho jornalístico, como o Gjol e o Webmanario.
Duas experiências em andamento
De imediato, o que estas propostas sugerem é que é possível estabelecer uma prática jornalística diferente do que está posto como única alternativa, do que é oferecido como prato feito aos milhares de recém-formados e profissionais que gravitam num mercado de trabalho saturado.
É fato que já há algum tempo jornalistas incentivam seus leitores a colaborarem financeiramente com seus blogs. Lá fora, Josh Marshall, Andrew Sullivan, Jason Kottke e Jim Hopkins adotaram esta tática com sucesso. Da mesma forma, o jornalista Chris Allbritton levantou US$ 15 mil entre seus leitores para financiar sua viagem ao Iraque em 2003, que rendeu o blog Back to Iraq blog. No Brasil, jornalistas como Pedro Doria e Alex Castro – para citar alguns – também descobriram o caminho das pedras. A novidade é a sistematização deste conceito como opção para o mercado.
Entre as propostas já em andamento está o jornalismo representativo, preconizado pelo professor Leonard Witt – da Kennesaw State University – e o jornalismo financiado (crowdfunding journalism), defendido por David Cohn. Ambos propõem um modelo no qual jornalistas sejam financiados diretamente por parcelas da população para desenvolverem pautas do interesse dessas comunidades.
Uma das primeiras experiências concretas de um jornalismo financiado pela população – ainda que mesclado com o chamado citizen journalism – ocorreu ano passado por meio de uma parceria entre Cohn e Jay Rosen, professor da New York University. Ambos desenvolveram o projeto Assignment Zero, que não vingou. Hoje, duas experiências de jornalismo financiado estão em andamento, o Spot.us e o Representative Journalism.
Cinco tópicos básicos
No Spot.us, jornalistas freelancers são alimentados por sugestões de pauta e recursos financeiros provenientes da população residente na Bay Área, de San Francisco. O Representative Journalism (ou RepJ) testa a idéia em Northfield (Minnesota), a partir de um jornalista fulltime que cobre assuntos de interesse da comunidade local.
O Spot.us é fruto do trabalho de David Cohn, que investiu no projeto os U$ 340 mil que ganhou como bolsa da Knight Foundation.
Assim trabalha o Spot.us:
1. Qualquer pessoa sugere uma pauta que gostaria de ver transformada em reportagem.
2. Jornalistas freelancers se propõem a escrever estas reportagens, propondo um valor pelo trabalho.
3. Uma vez que um jornalista tenha sido designado para uma determinada reportagem, as pessoas podem doar recursos para viabilizá-la (mas ninguém pode doar mais que 20% do custo total dela).
4. Quando a reportagem tiver angariado recursos suficientes para ser viabilizada, o jornalista a escreve. Neste momento, 10% do valor angariado é pago para custos de edição e revisão.
5. Com a reportagem pronta, veículos de comunicação têm uma oportunidade de adquirir os direitos exclusivos de sua publicação, pagando o custo integral por ela. Neste caso, os fundos adquiridos como doação popular são devolvidos aos doadores. Caso nenhum veículo se interesse em publicar a reportagem exclusivamente, ela é postada na internet (no site Spot.us) e qualquer veículo de comunicação passa a ter o direito de reproduzi-la gratuitamente.
Um trabalho em três fronts
Em reportagem assinada pelo jornalista Mark Glaser, publicada no Mediashift, David Cohn assegura que esta é apenas uma forma de viabilizar este modelo de jornalismo. ‘Nunca tentei vender o Spot.us como fórmula para todas as organizações de mídia, embora possa vê-la ajudando a mostrar que é possível fazer algo além dos meios já estabelecidos. O jornalismo baseado na comunidade repousa sobre dois pilares básicos. Primeiro: o leitor tem que pensar o jornalismo como um bem público, como arte, algo que pode sustentar com seu próprio dinheiro; segundo: os jornalistas têm que se envolver e dar sua marca pessoal para conquistar o público’, afirma.
O RepJ trabalha de outra forma. Ao invés de jornalistas freelancers designados e pagos por cada reportagem, optou-se por um jornalista contratado para trabalhar para uma determinada comunidade ou para desenvolver um assunto específico. Leonard Witt sugeriu a idéia à Harnisch Family Foundation, e obteve um investimento de US$ 51 mil para estabelecê-la na comunidade de Northfield, em Minnesota.
Para financiar o projeto, pretende-se reunir mil pessoas (ou grupos) que se comprometam a pagar anualmente a quantia de US$ 100. Para isso, o jornalista Bonnie Obremski iniciou um trabalho de imersão na comunidade, cuja população chega a 17 mil pessoas. ‘Temos que trabalhar em três fronts: 1) temos que prover jornalismo de alta qualidade; 2) temos que fazer nosso jornalista conhecido pela comunidade; e 3) a comunidade tem que sentir que o seu jornalista e as notícias e informações que ele produz possuem valor parelho ao suporte financeiro provido por ela’, afirma Witt.
Importante é que há alternativas
Experiências do gênero, com diferenças sutis em seu formato, têm surgido com freqüência. Nelson de Sá publicou na quarta-feira (19/11) no blog Toda Mídia uma nota intitulada ‘Os novos cães de guarda?‘, onde cita reportagem do jornalista Richard Pérez-Peña, publicada no New York Times, sobre o site Voice of San Diego, um dos mais vigilantes veículos de comunicação no que diz respeito à fiscalização sobre o Estado. O Voice of San Diego funciona no estilo nonprofit, vive de doações, assim como o Propublica e o pequenino Crosscut.
Há quem critique estas propostas sob a égide da ética. Discutível, em especial frente ao direcionamento gerado por interesse econômico que vemos na grande mídia. Será pior escrever mediante o interesse de um setor da comunidade? Além disso, pode-se dizer que um ‘financiamento público do jornalismo’ teria características semelhantes à de uma assessoria de imprensa. Ocorre que, no Brasil, diferentemente de outros países como os Estados Unidos, a assessoria de imprensa é atribuição do jornalista. Portanto…
Outras objeções questionam se haverá público disposto a pagar pelas reportagens, ou se o alcance delas – se limitadas aos sites das próprias organizações – valerá o dinheiro investido. São questões importantes e que – creio – serão analisadas durante as experiências em vigência e outras que virão. O importante é percebermos que há alternativas para o ‘fazer jornalístico’ além das tradicionais e saturadas redações.
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Jornalista, Campo Grande, MS; editor do blog Escrevinhamentos