Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Folha de S. Paulo

DIREITOS HUMANOS
Paulo Vannuchi

Os direitos humanos em 2008

‘EM 2008 se comemora o 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Aprovada em 10 de dezembro de 1948, quando as Nações Unidas tentavam imaginar regras de convivência entre os países e também entre ricos e pobres de cada país para afastar o fantasma de uma nova guerra, essa convenção-mãe dos instrumentos humanitários de alcance internacional desdobra em 30 artigos a idéia central: todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

Eleanor Roosevelt, que jogou papel decisivo em sua aprovação, considerou o documento uma verdadeira Carta Magna da humanidade. O aniversário deve ser aproveitado para uma reflexão abrangente, visando a formatar novas políticas públicas e iniciativas da sociedade civil para transformar em fato concreto os belos enunciados que apontam para um contexto de paz e justiça que só os ingênuos acreditam estar ao alcance das mãos. Vale lembrar o alerta de Bobbio sobre a distância que separa a declaração e o mundo real que nos cerca.

Acaba de ser aprovada, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, a proposta brasileira de aproveitar o 60º aniversário para construir consenso em torno de metas mundiais referentes aos direitos humanos, seguindo o êxito obtido com as Metas do Milênio.

Com forte apoio sul-americano, a iniciativa do Brasil abre caminho para que seja lançado um subconjunto de metas a serem perseguidas nas décadas seguintes. Fim da pena de morte em todo o planeta? Eliminação definitiva da tortura? Efetiva abolição da escravidão e do racismo? O que mais?

No Brasil, a 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em dezembro, será o desaguadouro de debate nacional para atualizar o Programa Nacional de Direitos Humanos. Em 1996, José Gregori era o titular da área, e o Estado brasileiro recolheu 228 propostas da sociedade civil para instituir a primeira edição do programa, com ênfase nos direitos civis e políticos. Em 2002, sendo Paulo Sérgio Pinheiro o titular, o PNDH-2 acolheu 518 proposições, com acento nos direitos econômicos, sociais e culturais.

O debate de 2008 deve estabelecer os contornos do PNDH-3, a ser oficializado por decreto presidencial, como os anteriores.

Em resumo, trata-se de atualizar propostas e planejar as intervenções necessárias para que o Brasil seja, cada vez menos, o país daquela jovem presa e violentada em Abaetetuba (PA), do bebê morto na prisão de Cariacica (ES), do adolescente executado sob choques elétricos em Bauru (SP). E, cada vez mais, uma terra onde a fome e a extrema pobreza sejam erradicadas, onde cresça a inclusão social e educacional e onde declinem as estatísticas a respeito da violência. No aspecto atualização, merece registro a emergência de novos sujeitos.

No calendário de 2008, teremos em maio a primeira conferência nacional do segmento GLBT, abordando o direito à diversidade sexual; no segundo semestre, a segunda edição de duas conferências iniciadas no governo Lula -direitos do idoso e direitos da pessoa com deficiência- e um encontro mundial, em novembro, com 5.000 participantes, sobre exploração sexual de crianças e adolescentes.

São temas e atores que ocuparão espaço crescente na terceira versão do PNDH, assim como as várias questões abordadas nos encontros nacionais sobre igualdade racial, direitos da mulher, segurança alimentar, saúde, criança e muitos outros.

Queremos convidar para esse mutirão de debates, de forma especial, três segmentos que ainda não se integraram plenamente ao itinerário de lutas que as comissões parlamentares e os movimentos sociais dos direitos humanos trilharam nas últimas décadas. Os três segmentos são a universidade, o Judiciário e a mídia.

O ministro Fernando Haddad vai articular nas federais seminários e debates -que proporemos a todas as outras universidades. Tivemos audiências com a ministra Ellen Gracie abordando a idéia e levaremos a sugestão também ao Judiciário dos Estados, chamando juízes, procuradores e defensores públicos. A mídia pode ter papel decisivo nesse campo, informando que os direitos humanos não podem ser confundidos com a defesa de bandidos, como ainda divulgam alguns veículos diariamente.

Avanços existem, são palpáveis e muitos. Mas a violência que segue grassando no país torna o chamado a esse debate muito mais que um simples convite. É uma convocação aos brasileiros e brasileiras de todos os credos, de todas as convicções e de todos os partidos a um esforço solidário.

PAULO VANNUCHI é ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.’

LULA
Folha de S. Paulo

Os príncipes

‘UM PRESIDENTE confiante e tranqüilo ocupou as telas de televisão brasileiras na noite de quinta-feira, e não eram imaginários os motivos de seu otimismo. Neste final de 2007, Lula colhe os frutos de um programa econômico e de uma política de correção das desigualdades implantados há mais de dez anos, nos quais teve o bom senso de persistir e que soube aprofundar.

Só interessa aos sectários de uma ou outra filiação partidária estabelecer as responsabilidades pessoais -se de Fernando Henrique, se de Luiz Inácio, que travam uma batalha de egos pelo cetro do príncipe- a respeito dos índices positivos que a economia e a sociedade brasileiras ostentam nesta passagem de ano.

Verdade que as expectativas têm sido modestas. Passou o tempo em que se acreditava numa súbita elevação do Brasil ao status de potência. Todos -petistas ou tucanos- aprenderam com o tempo que o fim do regime militar não seria o abre-te sésamo de uma era de prosperidade automática e de justiça social isenta de conflitos.

Durante um bom tempo, o PT concentrou em torno de si mesmo as expectativas mágicas de que poderia dar conta de todos os problemas do país. Em certa medida, esse papel já tinha sido desempenhado pelos tecnocratas tucanos -mais modestos, sem dúvida, do que tantos petistas embriagados de pureza falsa e moralismo imaginário.

Arrogância não faltou, contudo -e não falta- na atitude de governistas e oposicionistas. A propaganda de ambos se beneficia de uma conjuntura internacional favorável, e é duvidoso que pudessem ostentar seus feitos sem o concurso da sorte.

Sorte, ou ‘fortuna’, no vocabulário de Maquiavel, faz par com o conceito de ‘virtù’. A palavra pode ser traduzida menos como um senso de integridade moral, idéia que os dias presentes estão longe de incentivar, e mais como espírito de oportunidade, ímpeto de renovação.

Beneficiado pela ‘fortuna’, o governo Lula de algum modo minimizou seu próprio senso de ‘virtù’. Equilíbrio e prudência evitaram que o pior acontecesse. Evitaram, também, que o melhor fosse tentado.

Na TV, Lula comemora fatos que ninguém deixará de encarar como positivos. São poucos, entretanto, diante do que se poderia esperar de seu governo.

O que foi feito diante da crise terminal vivida pela segurança pública no país? Como enfrentar as óbvias distorções do sistema previdenciário? O que fazer diante da escandalosa disfuncionalidade, mais uma vez escancarada no caso da CPMF, do sistema político?

Ainda que justas, as comemorações presidenciais carregam o travo da omissão. Nisso reside a diferença maquiaveliana entre ‘fortuna’ e ‘virtù’.

Sobrou ‘fortuna’ e faltou ‘virtù’ a Lula em 2007. Não se deu nenhum desastre; não se assumiu, tampouco, risco nenhum. A mediocridade pode ser vista, de qualquer modo, como um triunfo. Desde que se abandonem, o que seria deprimente, as perspectivas de fazer do Brasil um grande e civilizado país.’

 

Roger Noriega

Lula pode fazer de 2008 um ano muito bom

‘A CADA ano, a venerável revista norte-americana ‘Time’ escolhe um importante protagonista dos acontecimentos mundiais como ‘pessoa do ano’. Ao explicar a seleção do presidente russo Vladimir Putin para essa distinção, em 2007, os editores de ‘Time’ apontaram para o impacto dramático que o controverso líder exerceu ao restaurar a auto-estima de um país importante. Antecipando críticas à escolha do autocrata, eles admitem que Putin ‘representa, acima de tudo, estabilidade -estabilidade acima da liberdade, estabilidade acima da escolha…’.

Nos termos dessa definição, uma seleção muito melhor como pessoa do ano teria sido Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente da República Federativa do Brasil. Ao escolher Lula, ‘Time’ não precisaria se desculpar por ter selecionado um autocrata, porque Lula é o ‘democrata’ definitivo. Tendo em vista suas origens notavelmente humildes, ele fez uma contribuição à humanidade simplesmente por ter sido eleito.

Ao contrário do voluntarioso Putin, Lula conquista o sucesso ao provar que não é necessário sacrificar a liberdade em nome da estabilidade e que não existe motivo para ceder a liberdade política em troca de oportunidades econômicas. Quanto à importância comparativa das duas nações, a economia brasileira tem dimensões semelhantes à russa e sua população é bastante superior. O Brasil é um país respeitado e influente e serve de força propulsora à auspiciosa meta de integração sul-americana. Ainda que suas instituições não sejam perfeitas, ao contrário do que acontece na Rússia, elas vêm sendo reforçadas a cada dia.

O Brasil é uma das mais estáveis democracias mundiais, uma realização notável dado seu caráter multiétnico, sua diversidade geográfica e a grande proporção de sua população que continua vivendo na pobreza -motivos suficientes para que concedamos certa dose de respeito aos seus líderes.

Lula trabalhou nos limites de um processo livre e pluralista a fim de atingir sua meta de romper o ciclo de expansão e contração que afligia a economia brasileira havia gerações. Ainda que seja elogiado por ter mantido as políticas macroeconômicas ‘ortodoxas’, sua maior contribuição está no reconhecimento de que o crescimento econômico e a justiça social são metas indispensáveis e complementares. Em lugar de recorrer a uma retórica populista vazia e divisiva, Lula está implementando programas práticos de combate à fome e à pobreza que vêm se tornando exemplos concretos para o resto do mundo.

Dados seus antecedentes como negociador sindical, Lula consegue observar a pessoa do lado oposto da mesa, avaliá-la e obter o melhor acordo para seu povo. O relacionamento pessoal inexplicável que estabeleceu com o presidente Bush pôs o Brasil como parceiro igual de Washington. Talvez o ponto mais forte de Lula seja que, diferentemente de Putin e de alguns dos líderes do setor de política externa do governo brasileiro, ele não considera que o relacionamento com os Estados Unidos seja uma questão definida em branco e preto. E sua persistência e autoconfiança representam o Brasil com perfeição.

Lula pode tornar a economia brasileira inabalável caso liberalize o mercado de trabalho, reforme o antiquado sistema tributário, dê incentivos ao setor de alta tecnologia e proteções dignas de um país de Primeiro Mundo à propriedade intelectual.

Ao fazê-lo, pode garantir que o Brasil concorra efetivamente pelo capital mundial necessário para sustentar um ritmo elevado de crescimento, gerar os milhões de empregos que representam a cura da pobreza e conduzir a economia brasileira a uma órbita mais elevada. Isso fará do Brasil um gigante industrial por direito próprio, em vez de um simples armazém de matérias-primas para a China.

Lula também pode resgatar sua política de comércio internacional das garras dos burocratas. Ele ocupa posição ideal para salvar um acordo mundial de comércio baseado em regras comuns, a fim de proteger os interesses das pequenas economias, pôr fim aos subsídios agrícolas que prejudicam os agricultores do Terceiro Mundo e gerar ampla prosperidade.

Por fim, Lula precisa encontrar uma maneira de domar os vestígios de corrupção que ainda afetam a maioria dos países da região. Um Estado de Direito é essencial a um governo responsável, à estabilidade política e a uma economia de mercado florescente. Não é tarde demais para enfrentar a praga da corrupção.

Lula pode não ser um homem perfeito, mas é um bom homem. E mesmo a revista ‘Time’ deveria reconhecer que um verdadeiro democrata e reformista é melhor que um autocrata superlativo -em qualquer lugar, em qualquer ano.

ROGER NORIEGA , diretor do escritório de advocacia Tew Cardenas e pesquisador visitante do American Enterprise Institute, foi secretário-assistente do Departamento de Estado dos EUA para o Hemisfério Ocidental (2001-2005) e embaixador na Organização dos Estados Americanos.’

 

TEATRO
Lucas Neves

Perguntas a Shakespeare

‘‘Por que temos tanta inveja? Qual o significado dela, se somos [os brasileiros] pessoas tão bem resolvidas em termos de raça? Por que a inveja fica tão coerente com a sensação contemporânea?’ Quem indaga é o ator Diogo Vilela, 50, que recorreu a William Shakespeare (‘Depois de Cristo, quem mais clareou as idéias de todo mundo’) para obter respostas.

Em março, ele sobe ao palco na pele de Iago, o alferes que leva o personagem-título de ‘Otelo’ a crer que sua mulher, Desdêmona, o está traindo com um de seus protegidos.

‘O Iago é a negação da afetividade, que é o que nós vivemos. O diabinho do século 17 [data do texto] ficou sendo um ser contemporâneo demais, já que, hoje, parece que todo sentimento é anacrônico. A peça faz a catarse do século 21’, define o ator, recebendo a reportagem em seu apartamento, em Copacabana, numa tarde em que os termômetros cariocas roçam nos 40 graus. ‘Não sei como vou fazer uma peça de época neste calor’, emenda ele, também diretor e produtor.

A ‘ordem’ para encarnar Iago partiu de um saudoso colega. ‘Foi a última coisa que ouvi do Paulo Autran. A morte dele foi um abalo sísmico para mim, o fim da história de alguém que conseguiu se fazer lembrar por muito tempo. Gerou em mim uma angústia, pois não sei por quanto tempo terei forças para me fazer lembrar no palco.’

A inquietação -ele logo retifica- não é tão recente assim. ‘Essa questão do esquecimento está em mim desde cedo. Eu sempre acho que vão se esquecer de mim como artista, não sei por quê. Essa ansiedade é que me faz criar.’

Criar em várias frentes, bem entendido. Para refletir sobre o fato de ‘a ilusão, hoje em dia, ser melhor do que a realidade’, ele escreveu ‘Uma Nova Peça’. No texto, um ator leva a mãe a um teatro abandonado e sugere que ali, ao abrigo dos humores da crítica e do público, instalem-se definitivamente.

O protagonista é seu alter ego? ‘Não sei dizer. É uma visão do que eu sinto pelo teatro. A vida justifica essa preferência pelo palco, porque ela não está legal. Estamos vivendo um vazio. O século 21 decreta o fim das relações pessoais’, diz ele, para mais à frente entregar suas semelhanças com o personagem ermitão. ‘Não me sinto ameaçado no teatro. Mas na vida, muito, porque tenho pavor da violência. Fico muito vulnerável em público ou me expondo como pessoa. Tenho sempre um medo que me persegue.’

‘Estou com papo?’

A sessão de fotos para esta reportagem atesta que é no papel de si próprio que Vilela fica menos à vontade. ‘Não queria fazer [as fotos] sentado… Estou num momento formal, não informal. Está fechando [o enquadramento] onde? Estou com papo?’

Despojando-se da vaidade, o ator viveu Nelson Gonçalves (‘Metralha’) e Cauby Peixoto (‘Cauby’) em musicais elogiados pela crítica. Na mesma seara, mas com recepção bem menos calorosa, dirigiu ‘Elis’ (2002). ‘Fui escorraçado em praça pública só por colocar ‘O Bêbado e a Equilibrista’ em versão instrumental’, diz.

Com a cancha adquirida, ele avalia musicais ‘importados’ da Broadway, como ‘Miss Saigon’: ‘Não tenho horror aos espetáculos montados no Brasil, mas à Broadway. É um teatro Disneylândia, ‘fake’. Tínhamos que usar nossa espontaneidade, herdar a técnica americana e tentar ter uma cabeça que criasse musicais brasileiros’.

Drama na TV

Na televisão, o ator atualmente é o Arnaldo da sitcom ‘Toma Lá, Dá Cá’, da Globo, que terá uma segunda temporada em 2008. Conhecido pelos tipos cômicos, ele gostaria de experimentar outros ares. ‘Queria fazer um personagem dramático na TV, mas não sei se me escalariam.’

É também fazendo rir que surge em ‘A Guerra dos Rocha’, filme de Jorge Fernando com estréia prevista para abril. Na trama, vive um político que disputa a herança da mãe quando ela desaparece -e é dada como morta. Também para o cinema, concluiu há pouco o roteiro do docudrama ‘Cauby -°Uma Voz, Uma Paixão’, que narra a sua preparação para encarnar a voz de ‘Conceição’.

Mas é para sua alma mater desde os anos 70, o teatro, que Vilela guarda mais projetos: um solo cômico e uma remontagem do ‘Édipo’ de Sófocles. ‘Quando tinha 26 anos, a Fernandona [Montenegro] me falou: ‘No teatro, os primeiros 20 anos são os mais difíceis’. Essa frase determinou tudo para mim, penso nela até hoje. Podia terminar assim, né?’’

 

Bia Abramo

Falta espaço para a ironia de Vilela

‘Talvez seja efeito do furacão Miguel Falabella, talvez a falta de acabamento no texto de ‘Toma Lá, Dá Cá’. O fato é que o Arnaldo de Diogo Vilela está um tanto aquém dos melhores trabalhos do ator.

No humorístico de Falabella, ele interpreta um dentista, casado com Rita (Marisa Orth) e ex-marido de Celinha (Adriana Esteves). O papel é o do chato e sem imaginação de plantão -e, como o humor de ‘Toma Lá, Dá Cá’ não é dos mais sutis, sobra pouco espaço para a ironia de Diogo Vilela.

Embora sua atuação em ‘TV Pirata’ seja das que logo vêm à memória quando se fala no ator, um de seus primeiros papéis notáveis foi em ‘Guerra dos Sexos’ (1983), de Silvio de Abreu. Na novela, inspirada pelas chanchadas brasileiras e pelas comédias românticas holywoodianas, ele fazia Kico, um sujeito obcecado por Elvis Presley. Depois da experiência, ele se tornaria um dos atores prediletos de Abreu.

Além de novelas e da ‘TV Pirata’, Vilela participou de algumas das melhores séries que foram produzidas nos anos 90, como ‘A Comédia da Vida Privada’ (1995) e ‘O Auto da Compadecida’ (1999). Seu tipo tímido, sua maneira de fazer graça meio insuspeita, mais evidente quando há humor mais bem elaborado, estão apagados em ‘Toma Lá, Dá Cá’. Na verdade, o programa é das mulheres, muito mais do que os homens, com destaque para Arlete Salles, como Copélia, e Alessandra Maestrini, como Bozena.’

 

MÚSICA
Luiz Fernando Vianna

Mario Reis mudou o canto brasileiro

‘Chico Buarque abria seu último show, ‘Carioca’, com ‘Voltei a Cantar’, que Lamartine Babo compôs em 1939 para marcar o primeiro dos cinco retornos de Mario Reis à música profissional. Às vésperas de seu centenário, que se completa amanhã, falta a volta definitiva de Reis ao lugar de um dos maiores intérpretes e inventores da música brasileira.

Um de seus admiradores é Chico, que fez para ele ‘Bolsa de Amores’ (1971) -proibida pela censura por, supostamente, ofender a mulher nacional: ‘A moça é fria/ É ordinária/ Ao portador’. Mas a influência de Reis vai muito além de um caso aqui, outro acolá

‘A história de que ele cantava como se fala é menos importante. Com o surgimento das gravações elétricas, surgiram Marios Reis em todos os países. O que o diferenciava é que ele cantava com bossa. Ele incorporou a bossa ao canto popular e, desde então, qualquer um que interprete música brasileira está, mesmo sem saber, seguindo Mario’, avalia o jornalista e pesquisador Ruy Castro.

Mario da Silva Meirelles Reis, filho da elite carioca (criado com os lucros da Fábrica Bangu de Tecidos, formou-se em direito, sendo chamado de ‘bacharel do samba’), surgiu para a música profissional em 1928, um ano depois de os microfones começarem a ser usados por aqui. Como Luís Antônio Giron ressalta em ‘Mario Reis – O Fino do Samba’ (2001), ele tinha voz extensa, mas logo notou que não precisava gritar para transmitir a letra. O ‘x’ da questão era o estilo, a bossa.

‘Mario e Carmen [Miranda] são os dois inventores do canto brasileiro. Como Mario começou em 28, e Carmen, em 30, a primazia pode ficar com Mario, mas, nos primeiros sucessos, como ‘Jura’ e ‘Gosto que me Enrosco’, ele ainda está inseguro, próximo dos cantores anteriores, como Bahiano. Ainda não é o que seria a partir dos duos com Francisco Alves, quando, até por contraponto, impôs seu charme. Já Carmen era, desde o começo, Carmen Miranda’, afirma Ruy Castro.

Revolucionário

A opinião do biógrafo da pequena notável é polêmica, já que o Mario dos anos 20, a quem Sinhô deu alguns de seus melhores sambas, é tido como um intérprete pronto, revolucionário. ‘Imagine alguém daquela época ouvindo as primeiras gravações do Mario, uma antivoz. A pessoa sairia correndo. Era transformador. O sistema do Mario se espalhou para muito além dele’, opina o cineasta Julio Bressane, amigo do cantor em seus últimos 15 anos e que o homenageou no filme ‘O Mandarim’ (1995).

Paulinho da Viola está entre os artistas não influenciados diretamente por Reis, mas consciente de ser devedor do primeiro intérprete de ‘Filosofia’ -samba de Noel Rosa que Paulinho viria a gravar, assim como Chico. ‘Eu ouvia Orlando [Silva], Sílvio [Caldas], Cyro [Monteiro], Moreira [da Silva], mas percebia que Mario soava diferente. Era aquela voz sem vibrato, transmitia algo delicado e, ao mesmo tempo, forte. Há influências que não são diretas, mas certamente estão na gente’, reconhece Paulinho.

Para a voz grave e teatral de Maria Bethânia é que Mario Reis não seria referência mesmo. Mas ela se lembra de ouvi-lo no rádio de casa, em Santo Amaro da Purificação (BA). ‘Minha mãe sempre foi apaixonada por ele, e eu o tenho dentro do ouvido. É uma das raízes de João Gilberto, sem dúvida.’

Bethânia toca num ponto polêmico, para o qual seu irmão Caetano Veloso e João Gilberto não dão muita ênfase. Para eles, a tal linha evolutiva do canto brasileiro passa de Orlando Silva -mais do que de Reis- para o estilo de Gilberto, apesar da voz pequena, sem vibrato, e de divisões peculiares.

‘No sentido da voz com bossa, ele pode ser um dos precursores de João, sim. Mas João também tinha a vertente romântica, do Orlando, assim como Cyro tinha. E ninguém canta com mais bossa do que Cyro. Essa divisão é esquemática, as vertentes podem se conciliar’, acredita Ruy Castro.

‘Não ouço semelhanças entre o Mario e o João Gilberto. Em João, a voz e o violão, as harmonias, os ritmos, as divisões que se cruzam, tudo é mais complexo. Mario é um inovador. João, um inventor’, diz o escritor Nelson Motta, que apresentou Reis a Chico.

Motta tem uma história curiosa: fez com Marcos Valle um jingle para uma marca de feijão, e o cliente queria um cantor remetendo aos anos 30. Sem coragem para convidar Mario, o letrista acabou gravando ele próprio a música, imitando o original.

Situação similar viveu Bressane ao descartar um ator que representasse um clone do cantor em ‘O Mandarim’ -a função de Fernando Eiras é, digamos, mais poética, sendo acompanhado no elenco por Chico, Caetano, Bethânia, Paulinho, Gilberto Gil, Gal Costa e Edu Lobo, a título de homenagem ao mestre. ‘Não havia como reproduzir Mario, seria ridículo. Ele era um homem único, um artista integral, que vivia em pânico criativo. A arte era sua vida, e segurava sua patologia’, diz Bressane.

Autocrítica

Mario Reis não era um homem com quem fosse fácil conviver. Tinha princípios muito arraigados e, por isso, largou a carreira enquanto fazia sucesso, em 1936, aos 29 anos.

Fez breves voltas em 39, 51, 60, 65 e 71. Inovava um pouco, mas o repertório era, em geral, o mesmo: Sinhô, Noel, Lamartine, Ismael, Bide/Marçal. Segundo Bressane e outros, era muito autocrítico. ‘Esse pegar e abandonar as coisas era uma característica da psicologia dele, uma forma de ser crítico. Mas nunca se afastou totalmente da música. Preservava a imagem de artista. Queria ter a dignidade da morte de um César. Tinha horror à velhice, pudor do próprio corpo’, diz o cineasta, para quem Reis vivia entre a razão e a loucura.

Esse jeito de ser contribuiu em muito para uma mística em torno de Mario. Jovem rico que aprendia samba entre os compositores pobres do bairro do Estácio de Sá, tornou-se cada vez menos sociável, freqüentando apenas lugares de elite: o Country Club, a sede social do Jockey Club e o Copacabana Palace, onde morou na suíte 140 de 1957 até morrer, em 1981. O dinheiro tinha acabado havia muito tempo, mas a elegância permanecia, um pouco como aconteceria mais tarde com seu amigo Jorge Guinle.

Para aumentar a mística, possivelmente morreu casto. Não por ser gay, mas pelo excesso de pudor e, segundo Bressane, por uma fimose nunca resolvida. Giron acredita que ele tenha tido namoradas -Carmen Miranda não foi uma delas, diz Ruy Castro. ‘Ela gostava de homem alto, forte, bonito e burro. E não namorava colegas. O que ela e Mario tiveram foi uma amizade, além de fazerem ótimas gravações juntos’, diz.’

 

CINEMA
Silvana Arantes

Lucélia Santos roda longa entre a China e o Brasil

‘Acompanhados pela câmera do diretor Moacyr Goes, os atores Chao Chen e Lucélia Santos atravessam os jardins, sobem as escadas e vão até a porta de um monastério budista na província de Emeishan, na China.

O público não deverá notar a diferença, mas, quando Luísa e Tching -o casal formado por Lucélia e Chen no filme ‘Um Amor do Ouro Lado do Mundo’- entram no monastério, é no Brasil que a cena ocorre.

Uma réplica do interior do mosteiro foi construída no Pólo de Cinema e Vídeo, em Jacarepaguá (Rio), assim como outros 14 cenários utilizados no filme, incluindo uma loja de porcelanas e uma escola de circo.

Cada cenário dura apenas o tempo exato de seu uso. No dia em que se encerram as filmagens ali, ele deixa de existir.

Os objetos de decoração que ajudam o diretor de arte Paulo Flaksman a reproduzir em Jacarepaguá o aspecto de endereços reais na China são doados. Todo o resto (paredes, pisos, tetos) não sobrevive à demolição.

Lucélia, que é também produtora do longa, decidiu encarar a destruição dos cenários como um exercício budista: ‘É um treinamento para a mente sobre a impermanência e o desapego’, diz ela.

Na trama do filme, cujo roteiro, assinado por Marcílio Moraes (‘Vidas Opostas’), Moacyr Goes e Caio de Andrade, foi supervisionado por lamas (sacerdotes budistas), a personagem dela também faz um percurso de aprendizado pelos preceitos do budismo. A história começa em 1990, no Brasil, onde a jornalista Luísa se vê ameaçada, após publicar reportagens sobre organizações criminosas.

Pequim

Para se afastar do país, ela é enviada para um trabalho na China. Numa escola de circo, conhece Tching, cujo passado tem um mistério associado ao Brasil, para onde ele decide vir, depois do encontro com Luísa.

Aqui, os dois montam uma escola de circo, têm um romance e um filho, Tao (Thomas Li), que moverá a segunda parte da história, num salto de 17 anos.

Com essa idade, Tao vai viver no monastério budista em Emeishan, onde Luísa e Tching tentam encontrá-lo, na cena filmada no exterior do monastério real, em junho passado, e num estúdio em Jacarepaguá, no início deste mês.

‘O filme tem como fundamento a idéia do carma, o entendimento budista do que é o destino’, afirma o diretor.

Lucélia diz que a história lança ‘um olhar amoroso para a China’, diferentemente dos filmes ‘que costumam retratar os chineses como mafiosos’.

Quando conversa com os chineses, Luísa fala inglês. Entre si, os personagens chineses falam mandarim, e os brasileiros, português. ‘É um filme falado em três línguas. A crítica vai dizer que ele é mal falado em três línguas’, diz Goes, num tom entre a ironia e a resignação ao hábito de ‘apanhar da crítica’.

Diretor de filmes como ‘Maria – Mãe do Filho de Deus’ e ‘Dom’, ele cita o recente ‘O Homem que Desafiou o Diabo’ (2007) como exemplo de um título com bom desempenho de público, ‘quase 400 mil espectadores’, considerando o rechaço que teve da crítica. ‘A crítica só faz mal ao ego. O público é a melhor companhia’, diz.

Goes visitou a China dois meses antes de filmar lá. ‘A gente tem a idéia de que a China é zen. Não é. O país parece uma reunião do século 19 com o 21, como se o século 20 não tivesse existido’, afirma.

O elenco asiático inclui atores não-profissionais e foi selecionado em testes com candidatos em Pequim e entre a comunidade chinesa no Brasil.’

 

‘Escrava Isaura’ originou projeto de minissérie para TV chinesa e filme

‘‘Tive todos os motivos do mundo para desistir desse projeto’, diz Lucélia Santos que, no entanto, passou os últimos dez anos insistindo em fazê-lo.

Ela enumera, entre os fatores de dificuldade ou de exaustão, ‘as 30 horas de vôo [entre Brasil e China]; as conversas de madrugada, por causa da diferença de fuso de 12 horas e o périplo atrás do dinheiro para viabilizar a produção’.

Na década de tentativas, o projeto mudou de forma e de conteúdo. A proposta inicial, conta a atriz, partiu de uma TV chinesa e previa realizar uma minissérie em 25 capítulos, em co-produção com o Brasil.

‘Eles queriam ter a escrava Isaura numa história deles’, afirma Lucélia, referindo-se à personagem da novela global que lhe deu fama na China.

‘Ninguém até hoje explicou como ‘Escrava Isaura’ [exibida entre 1976 e 1977 no Brasil] foi parar na China em plena Revolução Cultural’, afirma a atriz.

Mas os chineses acabaram desistindo da proposta, antes de realizá-la. Entre os R$ 8,2 milhões que Lucélia e o produtor Diler Trindade reuniram para o projeto não há participação chinesa.

Todo o montante foi obtido com empresas brasileiras, sobretudo estatais, com uso das leis de incentivo, baseadas no princípio da renúncia fiscal -o destino de parte do Imposto de Renda a projetos culturais.

No Brasil, há cem profissionais envolvidos com as filmagens, que ocorrem em três estúdios, em Jacarepaguá, e estão previstas para terminar em janeiro. Para rodas as cenas na China foram daqui oito atores e sete integrantes das equipes de direção e produção.

O orçamento de R$ 8,2 milhões prevê a realização de uma minissérie em quatro capítulos, além do longa ‘Um Amor do Outro Lado do Mundo’.

Trindade afirma que a gravação e a exibição da minissérie só deverá ser negociada com emissoras brasileiras depois da estréia do filme, que ainda não tem contrato com distribuidoras brasileiras.

O objetivo dos produtores é exibir o filme pela primeira vez no Festival de Xangai, que ocorre no mês de junho, e aproveitar em seguida a data de início das Olimpíadas na China- 8/8/2008- para lançá-lo nos cinemas dos dois países.’

 

TELEVISÃO
Bia Abramo

Poucas e boas da TV em 2007

‘O ANO se despede com duas notícias interessantes: Glória Maria deixa de apresentar o ‘Fantástico’, depois de dez anos, e Xuxa não mais terá programa diário, pelo menos em 2008. Dois dos mais famosos rostos da Rede Globo dão um descanso ao telespectador no ano que vem -e talvez isso possa ser tomado como um sintoma de que muitas renovações devem acontecer na TV nos próximos tempos. E não estamos falando (ainda) em TV digital, pois isso só será, de fato, assunto para daqui a algum tempo para os espectadores comuns. Por ora, é cara demais, restrita demais.

O ano de 2007 foi de abalos sísmicos no comportamento dos telespectadores: a queda de audiência sistemática de produtos específicos, como as novelas, e as fissuras no império da Rede Globo são evidentes demais para serem ignoradas.

Daí o fato de a própria Globo estar reagindo, tirando ou diminuindo o tempo no ar de nomes considerados ‘intocáveis’ parecer promissor. Ou talvez seja só o otimismo desse período, a ver.

Este ano também foi marcado pelas tentativas de o Estado fiscalizar mais de perto o que decidem, em nome dos espectadores, as empresas de TV. As emissoras não gostaram, conseguiram impor algumas modificações, mas a classificação indicativa por faixa de horário entrou em vigor -e já fez uma vítima famosa.

A novela ‘Duas Caras’, programada para entrar no ar cinco minutos antes das 21h, horário para as atrações destinadas aos maiores de 14 anos, forçou a barra com uma dança erótica da personagem Alzira: ganhou os picos de audiência de que precisava, mas perdeu a classificação de 12 anos. Nesse cenário de guerra pelo público, onde vale todo e qualquer artifício para levantar a audiência, a medida pode, de alguma forma, ser uma aliada do espectador e, talvez, obrigar a teledramaturgia a repensar o que fazer para conquistar a atenção dos espectadores.

O lançamento da TV Brasil, no final do ano, recolocou a discussão sobre o lugar e a importância de uma TV pública. A programação ainda não disse muito a que veio -nos poucos programas que, de fato, estrearam, o tom oficial ainda impera. Mas se metade -ou até mesmo apenas 25%- das promessas de diversidade de programação se cumprirem, o espectador só vai ter a ganhar. Ah, e teve também a dança do siri.

Molecagem inventada pelo pessoal do ‘Pânico na TV’ -cujo sucesso, pena, já ameaça subir à cabeça- para arreliar a Rede Globo, ganhou até pódio coletivo do time de basquete nos Jogos Panamericanos, que a Globo teve de transmitir.’

 

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