Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Folha de S. Paulo


FSP ACUSA ALCKMIN
Frederico Vasconcelos


Banco estatal beneficiou aliados de Alckmin


‘O governo Geraldo Alckmin (PSDB) direcionou recursos da Nossa Caixa para
favorecer jornais, revistas e programas de rádio e televisão mantidos ou
indicados por deputados da base aliada na Assembléia Legislativa.


Documentos obtidos pela Folha confirmam que o Palácio dos Bandeirantes
interferiu para beneficiar com anúncios e patrocínios os deputados estaduais
Wagner Salustiano (PSDB), Geraldo ‘Bispo Gê’ Tenuta (PTB), Afanázio Jazadji
(PFL), Vaz de Lima (PSDB) e Edson Ferrarini (PTB).


A cúpula palaciana pressionou o banco oficial para patrocinar eventos da Rede
Vida e da Rede Aleluia de Rádio. Autorizou a veiculação de anúncios mensais na
revista ‘Primeira Leitura’, publicação criada por Luiz Carlos Mendonça de
Barros, ministro das Comunicações no governo Fernando Henrique Cardoso. Ele é
cotado para assessorar Alckmin na área econômica. Recentemente, a Quest
Investimentos, empresa de Mendonça de Barros, foi escolhida para gerir um novo
fundo da Nossa Caixa.


O banho de ética anunciado pelo candidato tucano à Presidência da República
torna-se uma ducha de água fria com o resultado de uma auditoria na área de
publicidade da Nossa Caixa, que revela o descontrole nas contas, e com a
investigação, pelo Ministério Público do Estado, a partir de denúncia anônima,
sobre o uso político-partidário do banco oficial.


Entre setembro de 2003 e julho de 2005, as agências de propaganda Full Jazz
Comunicação e Propaganda Ltda. e Colucci Propaganda Ltda. continuaram prestando
serviços sem amparo legal, pois o banco não renovara os contratos, conforme a
Folha revelou em reportagem de dezembro último. O caso está sendo apurado pelo
promotor de Justiça da Cidadania Sérgio Turra Sobrane.


Ao analisar 278 pagamentos às duas agências no período em que operaram sem
contrato -no total de R$ 25 milhões-, a auditoria interna apontou
irregularidades em 255 operações (91,73%).


Não foram localizados documentos autorizando pagamentos que somavam R$ 5,1
milhões. Em 35% dos casos, não havia comprovantes da realização dos serviços. Em
62,23%, os pagamentos não respeitaram o prazo mínimo legal de 30 dias. O
patrocínio de campanhas de marketing direto era autorizado verbalmente.


A responsabilidade por esses pagamentos é atribuída ao ex-gerente de
marketing Jaime de Castro Júnior, 48, ex-auditor do banco, com 28 anos de casa.
Ele admitiu ter liberado pagamentos em valores acima dos limites que podia
autorizar e, a partir de 2002, sem ter procuração para tal. ‘Reafirmo que assumi
a responsabilidade pela liberação dos pagamentos, dados sua urgência e os
interesses da instituição’, afirmou à comissão de sindicância.


Ele foi demitido por justa causa, em dezembro, pelo presidente do banco,
Carlos Eduardo Monteiro, sob a acusação de ‘mau procedimento’, ‘desídia’ e
‘indisciplina’. O ex-presidente do banco Valdery Frota de Albuquerque também foi
responsabilizado.


Pressões


Por entender que a comissão de sindicância poupou outros envolvidos,
inclusive o presidente do banco, o ex-gerente preparou um relatório de 42
páginas em que revela outras irregularidades e as pressões que recebeu do
Palácio dos Bandeirantes. ‘Houve atendimentos a solicitações de patrocínio e
mídia, de deputados estaduais da base aliada, nas ocasiões de votação de
projetos importantes para o governo do Estado’, afirma Castro Júnior nessa
peça.


O ex-gerente explicitou: ‘Por ser um órgão do governo do Estado, a pressão de
cunho político para liberação de anúncios, verbas para eventos e patrocínios
sempre foi muito forte. Fosse através da Secretaria da Comunicação, diretamente
por deputados, vereadores, secretarias de Estado, do gabinete do governador,
para atendimentos de natureza política, para sustentação da base política do
governo do Estado’.


Há suspeitas de que o esquema envolve outras empresas do Estado. Consultadas,
Sabesp, Prodesp, CDHU e Dersa não responderam questionário da Folha.


O direcionamento da publicidade pelo Palácio dos Bandeirantes veio à tona com
a quebra de sigilo da correspondência (e-mails) de Castro Júnior, autorizada
pela direção do banco nas investigações.


Essa troca de mensagens indica que as determinações para a veiculação de
interesse dos tucanos partiram do assessor especial de Comunicação do governo do
Estado, jornalista Roger Ferreira.


Ele atuou nas equipes de marketing das campanhas presidenciais de Fernando
Henrique Cardoso e José Serra. Foi chefe da Assessoria de Comunicação da Caixa
Econômica Federal, entre 1999 e 2002, na gestão de Valdery Frota de Albuquerque,
que o levou para assessorá-lo na Nossa Caixa.


Jornada dupla


Antes de trabalhar com Alckmin no Palácio dos Bandeirantes, Ferreira foi
assessor da presidência da Nossa Caixa, entre março e outubro de 2003. Recebia
R$ 17 mil mensais, salário superior ao do presidente do banco. O jornalista foi
contratado pela agência Full Jazz, empresa cujos serviços deveria controlar. A
agência pagava a Ferreira, que fornecia nota fiscal da RF Produções e Editora
Ltda., com sede em São Lourenço da Serra (SP). A agência cobrava esses
‘serviços’ do banco, com acréscimo de 10% a título de honorários. Trata-se de
forma de driblar a legislação que veda a contratação sem licitação de serviços
de publicidade e divulgação.


Segundo Castro Júnior, ‘a partir de sua contratação, o sr. Roger Ferreira
passou a manter estreito relacionamento com as duas agências de propaganda, por
ordem da presidência, coordenando as ações de marketing, notadamente aquelas
pertinentes a campanhas e anúncios na mídia’.


‘Ele não poderia jamais ser contratado pela agência. Houve uma ilegalidade’,
diz o advogado Toshio Mukai, especialista em contratos e licitações públicas.
Com a saída de Ferreira, Monteiro determinou a contratação da jornalista Shirley
Emerich, para substituí-lo, no mesmo esquema da Full Jazz e o mesmo salário. Ela
deixou a Nossa Caixa em julho de 2005, com o rompimento do contrato com a
agência. Castro Júnior diz que não havia rubricas contábeis específicas para os
pagamentos mensais dessas contratações.’


***


Ex-gerente de marketing denuncia pressões do governo em relatório


‘Sentindo-se o ‘bode expiatório’ por irregularidades que também envolveriam
outros funcionários e diretores, o ex-gerente de marketing da Nossa Caixa, Jaime
de Castro Júnior, entregou ao Comitê de Disciplina e Ética do banco relatório em
que faz denúncias e cita pressões que recebeu do Palácio dos Bandeirantes.


Ele narra, por exemplo, que, de maio a outubro de 2004, ‘período das últimas
eleições municipais’, a Contexto coordenou uma campanha publicitária intitulada
‘O que faz a diferença’, com verba de R$ 30 milhões, distribuída entre empresas
estatais, cabendo à Nossa Caixa a fatia de R$ 5 milhões.


Castro Júnior diz que, na campanha, houve ‘atendimento a veículos de
comunicação que apoiavam as candidaturas do PSDB e a bases aliadas do
governo’.


Em junho de 2005, num e-mail a Carlos Eduardo Monteiro, presidente da Nossa
Caixa, Castro Júnior confirma que os anúncios e patrocínios para os veículos de
Wagner Salustiano -revista ‘De Fato’ e ‘Entrevista de Fato’, na televisão- foram
programados para um período longo e envolveram também a Sabesp. O plano de mídia
da estatal previa anúncios de página dupla (R$ 42.600) e 25 comerciais de
televisão de 30 segundos (R$ 91.487,50), no período de maio a dezembro de
2004.


Castro Júnior narra episódio ocorrido em março de 2005, na época em que os
tucanos tentaram eleger presidente da Assembléia Legislativa o deputado estadual
Edson Aparecido (PSDB), preferido de Alckmin.


O ex-gerente diz que recebeu telefonema da área de marketing da Secretaria de
Comunicação do Estado, ‘informando sobre a necessidade política do governo do
Estado patrocinar’, através da Nossa Caixa, com R$ 70 mil, a décima edição do
‘Troféu Talento Música Cristã’, no Credicard Hall, evento da Rede Aleluia de
Rádio (da Igreja Universal).


Esse patrocínio foi considerado ‘um compromisso assumido pelo governador com
deputado estadual da base aliada do governo, que estava exercendo fortíssima
pressão sobre o Palácio, visto a votação iminente na Assembléia Legislativa, de
projeto de extremo interesse do governo do Estado’.


A condição: ‘o pagamento deveria ser feito imediatamente, antecipadamente’. O
ex-gerente diz que o presidente da Nossa Caixa pediu-lhe que o pagamento fosse
feito ‘o quanto antes, se possível, imediatamente’. Mesmo tendo reduzido o valor
negociado, de R$ 70 mil para R$ 40 mil, Castro Júnior diz que o pagamento foi
feito três dias antes do evento.


O ex-gerente narrou que ‘o projeto inicial para uma política de patrocínios
foi encomendado pela presidência da Nossa Caixa a uma empresa de consultoria, a
Articultura Comunicação Ltda., com custo final de R$ 80 mil, sem qualquer
cotação ou consulta de custos a outras empresas’.


Disse que conseguiu reduzir o preço, pagando R$ 62,7 mil. E que o projeto foi
‘descartado’, ‘esquecido’ pela diretoria.’


***


Governo de SP e banco negam favorecimento


‘‘É absolutamente falso que os gastos em comunicação do Governo do Estado de
São Paulo obedeçam a quaisquer critérios que não sejam os técnicos’, afirmou
Roger Ferreira, assessor especial de comunicação do governo Geraldo Alckmin. ‘O
dinheiro é pouco e é usado tecnicamente.’


O banco ‘possui autonomia para realizar a sua comunicação da maneira que
considerar mais adequada’, e o governo ‘não faz interferências nessas ações e
não interfere nas ações de comunicação de outras estatais’, disse.


O secretário disse que a sindicância concluiu ‘não haver despesas
não-justificadas nem acima dos padrões nos serviços de comunicação’. Sobre a
contratação dele pelo banco, disse que ‘o porte da instituição justifica a
contratação de uma assessoria de imprensa profissional, feita de forma
inteiramente legal’.


A Nossa Caixa informou a Ferreira que os veículos citados pela Folha
receberam apenas 1% do total de gastos de comunicação do banco, que no período
fez veiculações em mais de 500 veículos.


‘Pobreza enorme’


O presidente da Nossa Caixa, Carlos Eduardo Monteiro, disse que não consegue
‘ver direcionamento político na veiculação de anúncios de R$ 200 mil e poucos’,
diante dos R$ 18 milhões que o banco gastou em publicidade no período sob
investigação. ‘Dizer que é direcionamento político é de uma pobreza enorme.’


Monteiro afirmou que quem decide a propaganda é a Nossa Caixa. Sobre o
pagamento antecipado ao evento no Credicard Hall, disse que ‘se não pagar metade
antes, não tem show’. ‘É diferente de prestação de serviços.’


Sobre a contratação de Roger Ferreira, na gestão anterior, disse que essa
prática é comum: ‘Assessoria parlamentar e assessoria de imprensa são
contratadas por notória especialização. Esse especialista não entende de
licitação’.


‘O governador não mistura as situações. Não tinha negócios comigo, não dá
nada para deputados’, disse Wagner Salustiano (PSDB). ‘Não tenho publicidade do
governo há mais de um ano. Quem procurou a revista foi a agência de publicidade
do governo, da Caixa. (…) Não tenho culpa se a Caixa e as agências de
publicidade estavam com problemas, usando verbas indevidas.’


‘A revista é bem conceituada, recebeu prêmio. Vendia para o governo pelo
preço que vendia para a iniciativa privada’, disse.


Rui Nogueira, diretor de redação da ‘Primeira Leitura’, negou favorecimento.
‘A revista, de circulação nacional, 25.000 exemplares, teve durante algum tempo
anúncios da Nossa Caixa, de página dupla, recebidos e pagos, como todas as
outras publicidades. E ponto final’, afirmou.


‘Não me parece que a Nossa Caixa anunciou na revista porque ela é tucana.
Então, o Santander e o governo de Pernambuco também anunciaram porque é tucana’,
afirmou Nogueira.


Questionado se o pedido para a veiculação partiu de Roger Ferreira, explicou
que o procedimento foi feito pela gerência comercial da revista. ‘A gente tem um
gerente comercial, esse gerente faz o serviço de procura de anúncios.’


A assessoria do deputado Vaz de Lima (PSDB) afirmou que não existe um ‘Jornal
D’Hoje’ em Araçatuba, como citado na correspondência, mas em São José do Rio
Preto, e que acha ‘difícil’ ter havido favorecimento.


O deputado Afanázio Jazadji (PFL) confirmou que a Nossa Caixa veiculou ‘pouca
coisa’ na Radional, com nota fiscal por meio da Full Jazz. Ele disse que o
banco, a Sabesp e a Secretaria de Educação veicularam anúncios na rádio, ‘coisa
esporádica’. ‘O que o governo bancava foi algo tão diminuto’, completou. ‘Não
sei de cabeça quanto foi veiculado, mas informei ao Ministério Público, não
tenho que esconder nada.’


Para Afanázio, ‘é óbvio’ que o governo Alckmin orientava a publicidade da
Nossa Caixa. Ele disse que a gestão cortou os anúncios em seu programa pouco
antes da eleição do deputado Rodrigo Garcia (PFL), presidente da Assembléia
Legislativa, como forma de retaliação, já que não votou em Edson Aparecido
(PSDB).


‘Cortou porque eu não ia votar no candidato dele. Uma forma que ele tinha,
como ‘olha, não vou mais anunciar no seu programa, não vou liberar mais isso’,
um tipo de uma chantagem. ‘Vota no meu candidato que eu libero verbas’,
prometeram mil e uma coisas, não diretamente ele [Alckmin], mas seus
secretários, inclusive o pessoal que cuidava de publicidade’, disse o
deputado.


Quanto ao e-mail em que Saint’Clair Vasconcelos diz que precisava ‘acalmar o
deputado’, o pefelista disse desconhecer do que se trata. ‘Esquisito isso.
Acalmar seria o quê? Votos? Eu jamais negocio votos, isso é loucura’, diz.


O deputado estadual Geraldo ‘Bispo Gê’ Tenuta (PFL) negou que tenham sido
veiculados anúncios da Nossa Caixa ou de qualquer outra estatal na Rede Gospel e
afirmou nunca ter ouvido falar da agência Full Jazz. ‘O pior de tudo é que é uma
denúncia anônima, que está querendo denegrir a minha imagem.’


João Monteiro Neto, diretor da Rede Vida, negou favorecimento ao canal e
disse que era ‘desafeto’ do candidato tucano à Prefeitura de Barretos em 2004,
Antonio Cesar Gontijo de Abreu. ‘Gontijo andava muito irritado com as nossas
organizações’, disse.


‘A verba do governo do Estado na Rede Vida é ridícula’, afirmou Monteiro
Neto. ‘Ficamos profundamente chateados com o valor que o governo dispõe,
especialmente a Nossa Caixa’, que, segundo ele, investe mais em outras emissoras
e ‘não pôs um centavo’ na Rede Vida em 2005.


Oscar Colucci afirmou que ‘o banco nunca pediu para fazer publicação em
jornal ou revista de ninguém’. ‘A Colucci fazia mídia altamente profissional,
técnica. Se o jornal era de um padeiro ou de um político, a diferença é
nenhuma.’ Colucci disse que não recebeu pedidos da Casa Civil.


Lárcio Benedetti, da Articultura, disse que a empresa foi procurada pelo
banco para planejar uma diretriz de patrocínio, área em que é especializada. ‘O
trabalho foi aprovado, mas pouco antes de finalizado, o banco informou que, por
questões administrativas, não daria seqüência ao projeto.’


Saint’Clair de Vasconcelos, da Contexto, e Maria Christina de Carvalho Pinto,
da Full Jazz, não se manifestaram. O deputado Edson Ferrarini (PTB), o
ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros e a organização do Troféu Talento de
Música Cristã não responderam aos recados deixados pela Folha até o início da
noite de sexta-feira.’


***


Em e-mails, anúncios são chamados de ‘lixão’


‘Os pedidos para veiculação de anúncios e patrocínios de interesse dos
tucanos tinham um código (‘lixão’) e eram transmitidos à Nossa Caixa, por meio
eletrônico, pelo publicitário Saint’Clair de Vasconcelos. Ele é presidente da
Contexto, a agência de propaganda que detinha, na época, a conta da Casa Civil.
Hoje, a Contexto atende a Nossa Caixa.


Os e-mails juntados ao processo, segundo o ex-gerente Jaime de Castro Júnior,
são ‘uma pequena amostra das ingerências políticas’ e ‘não representam nem de
perto as pressões sofridas’.


O que a comissão de sindicância tratou como ‘solicitações externas’ eram
‘imposições’, disse.


A verba distribuída aos veículos de interesse dos parlamentares era definida
antes da escolha do produto ou da peça da Nossa Caixa que seriam divulgados.


Em linguagem coloquial, por exemplo, Saint’Clair recorreu a Castro Júnior, em
agosto de 2004: ‘Outro abacaxi: preciso da sua ajuda para acalmar o deputado
Afanázio Jazadji. Acertei com ele um montante que estou distribuindo entre os
nossos parceiros. Você consegue programar uns 8 mil nos programas que ele tem no
Canal SP-TVA? Já aprovei nos setores competentes este assunto’.


O pagamento de veiculações em valores acima do praticado pelo mercado é
confirmado em mensagem de Castro Júnior a Saint’Clair, em agosto passado:
‘Estamos efetuando os ajustes no plano de mídia encaminhado, incluindo verba
para Rede Vida. O valor proposto por você é de R$ 200 mil. Porém, você sabe
melhor que ninguém que este valor é absolutamente desproporcional em relação às
outras emissoras’.


No mês seguinte, o presidente da Contexto voltaria a apelar para Castro
Júnior, novamente sugerindo um gasto já fixado antes da definição de como a
despesa seria justificada: ‘Preciso que você dobre a verba da Rede Vida
Televisão agora em setembro, de R$ 49.470,00 para R$ 98.940,00. Pode veicular o
filme que melhor lhe convier’. O ex-gerente da Nossa Caixa reagiu: ‘Quase R$ 100
mil, para apenas 15 dias de programação, me parece muita coisa. Teríamos uma
carga extremamente pesada na emissora’.


Depoimentos de funcionários da Nossa Caixa à comissão de sindicância
confirmam que Castro Júnior se empenhava em reduzir os custos dos serviços
contratados. ‘Invariavelmente, o gerente do departamento de marketing conseguia
reduzir os preços’, afirmou à comissão o presidente do banco, Carlos Eduardo
Monteiro.


A vinculação entre anúncios e interesses dos tucanos fica clara no email que
Saint’Clair repassou à Nossa Caixa, em setembro de 2004. Nele, o jornal ‘O
Diário’, de Barretos, alerta a Contexto para visita que o presidente do PSDB
faria à região. E lembra que os veículos do grupo estariam ‘cobrindo essa
visita’.


‘Precisamos segurar esta batata quente’ -Saint’Clair preveniu o banco-
‘porque estamos ‘costurando’ uma solução para um problema local em Barretos,
inclusive amanhã o [João] Monteiro Neto [da Rede Vida] vai receber lá o deputado
[Antonio Carlos] Pannunzio [PSDB] e vai dar um grande espaço para o candidato a
prefeito, o César [Antonio Cesar Gontijo de Abreu, do PSDB], nos veículos
dele’.


Em setembro de 2004, o presidente da Contexto comenta, em e-mail a Castro
Júnior, a veiculação de anúncios da Nossa Caixa na revista ‘Primeira Leitura’:
‘Sugiro que você dê uma apertada neste pessoal, tipo uns 30/40 mil por mês, pois
este din-din [dinheiro] vai fazer falta para nós em outras demandas. Enfim, um
pedido do Roger é um pedido ‘irrecusável’, diz Vasconcelos.


De outubro de 2004 até julho de 2005, quando foram suspensos os serviços da
Full Jazz, ‘Primeira Leitura’ circulou com anúncios de página dupla da Nossa
Caixa.


Um email de Roger Ferreira a Castro Júnior, em setembro de 2004, confirma
quem dava as cartas nessa área: ‘Jaime, favor atender as considerações do
Saint’Clair. E lembre-se do orçamento de nossa campanha. É daquele número para
cima’.’


ECOS DA DITADURA
Mauricio Puls


Livro de Frota traz a versão da ‘linha-dura’


‘Nove anos após a morte do general Sylvio Frota (1910-1996), a editora Jorge
Zahar publica sua versão sobre os acontecimentos que culminaram na demissão do
então ministro do Exército pelo presidente Ernesto Geisel, em 12 de outubro de
1977. Escrito entre 1978 e 1980, ‘Ideais Traídos’ expõe o ponto de vista dos
militares da chamada ‘linha-dura’, que se opunha frontalmente ao
restabelecimento da democracia no país.


A esse respeito, Frota é bastante claro: ‘As revoluções não marcam limites no
tempo. Elas, dentro da doutrina que esposaram e vêm difundir, elaboram e impõem
as leis que vigorarão na nova ordem. Semeiam seus princípios, especialmente na
juventude, visando a dar-lhes raízes para sustentá-la até longínquo futuro. Por
conseguinte, não têm prazos e somente se exaurem com a integral concretização de
seus objetivos’.


Dessa perspectiva, o presidente Geisel era um traidor, que chefiava um
‘governo de centro-esquerda’. Ora, a centro-esquerda é a posição daqueles que,
‘tendo pendores marxistas, vêem nas reações conjunturais obstáculos difíceis de
transpor para uma realização completa de seus objetivos; é apenas uma posição de
espera. Defino-os como criptossocialistas’. O ministro não tinha dúvidas de que
seu governo conduziria o Brasil ao socialismo e, a longo prazo, ao
comunismo.


Muitos eram os sinais dessa orientação: as pressões de Geisel para ‘destruir
o sistema de segurança interna’, o reconhecimento da República Popular da China,
em 1974, que abriu caminho para ‘a penetração amarela no Brasil’, e o
reconhecimento da República de Angola. O próprio Frota enviou ao SNI, em 1977,
uma lista com 96 comunistas infiltrados na administração pública, mas o governo
não lhe deu importância.


O leitor contemporâneo provavelmente ficará espantado com a facilidade com
que Frota divisava comunistas em toda parte -da Democracia-Cristã até a Anistia
Internacional. A linha-dura possuía um critério muito claro para distinguir os
bons dos maus: quem não está conosco está contra nós. Desse ponto de vista,
todos os adversários pareciam infectados pelo esquerdismo. Nem os articuladores
do golpe de 1964 estavam a salvo: o grupo de Castello Branco tinha inclinações
‘liberais centro-esquerdistas’, e o do general Afonso de Albuquerque Lima,
‘fortes tinturas socialistas’. Como observa Sartre em ‘Questão de Método’, o
pensamento totalitário consiste numa empresa de eliminação que se identifica com
‘o Terror pela sua recusa inflexível de diferenciar: seu objetivo é a
assimilação total ao preço do menor esforço. Não se trata de realizar a
integração do diverso guardando sua autonomia relativa, mas de suprimi-lo’.


Problema da obediência


Em contraposição ao presidente, Frota julgava ser o verdadeiro defensor dos
ideais de 1964. Nesse sentido, ele não devia obediência a Geisel: ‘Um ministro
militar é, do meu ponto de vista, primordialmente, o representante e defensor de
sua Força junto ao presidente e, secundariamente, um delegado deste na
instituição. Em última análise, quando no confronto de opiniões os obstáculos
tornam-se intransponíveis e a conciliação impossível, impõe-se ao titular da
pasta solidarizar-se com o pensamento de sua Força’.


É fácil perceber que o modelo de Frota é o general Costa e Silva que, tendo
tomado o Ministério da Guerra após a queda de João Goulart, impôs sua
candidatura à Presidência. Frota não esconde sua admiração por ele: ‘O general
Costa e Silva definia-se em todos os seus atos como chefe ‘dominante’, destinado
a imperar nos períodos de desintegração e violência, em que a acomodação é
ridícula ingenuidade e durante os quais só a força é argumento entendido e
obedecido’. A tentativa de reeditar a história fracassou: o o ministro foi
exonerado, e o presidente impôs o nome de seu candidato à sucessão. Aqui reside
o núcleo do livro: o problema da insubordinação militar. Frota sustenta que foi
traído pelos demais generais, pois estes deviam obediência a ele, e não ao
presidente.


Os demais generais, não pensavam do mesmo modo. Antes de sua demissão houve
muitos sinais de que Frota não tinha suficiente apoio no Exército para enfrentar
Geisel. O primeiro deles surgiu em outubro de 1975, quando ‘suicidou-se o
jornalista Wladimir Herzog, como provado ficou em inquérito policial militar’.
No Congresso, o senador Leite Chaves, ao fazer um aparte, comparou os
torturadores à SS de Adolf Hitler. Frota exigiu a cassação do senador. Geisel se
recusou, afirmando que o senador faria uma retratação. Frota esperava que o Alto
Comando do Exército enquadrasse o presidente, mas isso não ocorreu, pois os
generais avaliaram que ‘o ministro não tinha razão; o presidente era o
comandante supremo das Forças Armadas, podia tomar aquela decisão’.


Derrota


Frota julga que, naquele episódio, Geisel já tinha conseguido ‘subjugar o
Exército’: ‘Os generais curvaram-se, com excessivas flexibilidade e rapidez,
diante da decisão presidencial. Não deveriam tê-lo feito’. O mesmo fato se
repetiu em janeiro de 1976, quando Geisel determinou a exoneração do comandante
do 2º Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, após outro ‘suicídio’ em São
Paulo, o de Manoel Fiel Filho.


Apesar disso, o ministro inicia, ainda em 1976, sua aproximação com os
congressistas da Arena que logo lançariam sua candidatura à Presidência. Frota
nega que tenha incentivado esse movimento (‘esses fatos e entendimentos, está
claro, ocorreram à minha revelia’), mas deixa claro que nunca desestimulou seus
aliados.


Ele narra com detalhes todos os acontecimentos que resultaram em sua
demissão, em 12 de outubro de 1977, e sua tentativa de reunir o Alto Comando do
Exército naquele mesmo dia: ‘O que eu procurava, naqueles momentos difíceis, era
expor aos meus colegas do Alto Comando uma série de fatos e manipulações
astuciosas que os homens do quarto governo da Revolução punham em prática para
sua preservação no poder. Dir-lhes-ia que a Revolução estertorava, no abandono
de seus princípios, acalentando idéias que condenávamos em 1964… Minha missão
revolucionária terminaria aí; meus colegas que agissem como bem entendessem’.
Com isso, Frota esperava forçar o presidente a recuar.


O Palácio do Planalto, porém, entrou em contato com os generais que
desembarcavam em Brasília, que foram conduzidos até Geisel. Abandonado até por
velhos amigos, Frota passou o cargo ao sucessor nesse mesmo dia.


A parte mais interessante do livro são as reflexões finais. Ele observa que
1964 não foi uma verdadeira Revolução, mas um golpe de Estado. Assinala que a
Arena tinha muito pouco de renovadora, pois representava a restauração dos
‘comportamentos oligárquicos’, e afirma que a cassação dos antigos líderes de
esquerda favoreceu a oposição, pois abriu caminho para sua renovação de seus
quadros, o que que não ocorreu com o partido governista.’


TV DIGITAL
Luís Nassif


TV digital e acesso a mercado


‘O que está por trás de toda essa polêmica sobre TV digital não é o padrão a
ser escolhido. Converse com os europeus e terá vários argumentos contra o padrão
japonês; e vice-versa. Também não é uma disputa entre TV aberta e telefonia
celular ou fixa. Os três setores vão acabar se entendendo mais cedo ou mais
tarde. O que está em hoje é a disputa pelo mercado de produção.


À medida que se criam novos canais de distribuição, abre-se espaço para novos
produtores de conteúdo, que podem ser empresas de audiovisual ou afiliadas das
atuais redes. Se o modelo de TV digital a ser adotado for flexível, haverá
espaço no espectro para os novos entrantes. Se não for, não haverá.


Essa definição deveria constar de uma Lei Geral das Comunicações -que não
existe até hoje. O padrão japonês não permite pensar em modelos flexíveis,
portanto condiciona antecipadamente o que a lei poderá definir e cria um fato
consumado.


Trata-se de uma luta legítima das emissoras comerciais por sua própria
sobrevivência, já que, a rigor, existe uma única rede consolidada e com um pé em
várias mídias. Mas é importante que isso fique claro para parar com essa falsa
discussão técnica.


Todos os países estão mudando sua legislação para adaptá-la aos novos tempos.
O Reino Unido é considerado o que melhor tratou da questão da convergência
digital, embora as emissoras brasileiras tenham razão ao afirmar que o modelo de
TV comercial do Reino Unido é bastante diferente do brasileiro.


Em 2003 o Parlamento decretou o Ato das Comunicações, que criou o Escritório
das Comunicações, mais conhecido como Ofcom, ou Office of Communications. Em 29
de dezembro de 2003, a ‘super-agência’ assumiu os papéis das Comissões de
Padrões de Radiodifusão e Independente de Televisão, do Escritório de
Telecomunicações (Oftel), além da Autoridade sobre o Rádio e da Agência de
Radiocomunicações. Desde então, passou a regular todas as empresas de
comunicação atuantes no Reino Unido, abrangendo as de telecomunicações,
televisão, rádio -incluindo as comunitárias- e provedoras de serviços de
comunicação wi-fi (sem fio).


As duas funções principais da Ofcom são promover a competição apropriada
entre os meios de comunicação e proteger os consumidores de matérias
prejudiciais ou ofensivas.


Seu trabalho está baseado nos seguintes pressupostos. Primeiro, o de
assegurar a otimização do uso do espectro eletromagnético. Depois, garantir que
os serviços de comunicação eletrônica em grande escala, incluindo os de
transmissão de dados em alta velocidade, estejam disponíveis para todo o Reino
Unido. Também zelar para que os serviços de rádio e TV em grande escala sejam de
alta qualidade e de grande apelo e preservar a pluralidade na rádio e
teletransmissão.


Foi constituído um conselho -atualmente presidido pelo lorde Currie de
Marylebone- e mais oito membros, integrantes da comunidade acadêmica ou de
empresas do setor. Eles se encontram formalmente todos os meses e publicam a
agenda e as notas das reuniões no site da Ofcom.


Os membros do Conselho, por sua vez, são assessorados por diversos comitês
existentes na agência, como o executivo e o Content Board, os dois mais
diretamente ligados ao conselho. O comitê executivo é encarregado dói
acompanhamento da administração da agência, enquanto o Content Board está mais
relacionado às empresas de Radiodifusão. Cada comitê é composto por membros da
sociedade civil e representantes ligados ao assunto. Todas as decisões tomadas e
normas aprovadas pelos comitês são publicadas no site da agência na
internet.


Viagem ao Japão


Nem a Casa Civil nem o MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior) estão sabendo que foram convocados pelo ministro das
Comunicações, Hélio Costa, para ir ao Japão conhecer o consórcio da TV digital
-conforme ele declarou aos jornais de sexta. Luiz Fernando Furlan tem viagem
agendada há bastante tempo, mas em prosseguimento aos contatos iniciados na
viagem da comitiva de Lula.’


TELEVISÃO
Daniel Castro


Record arma acampamento no Pantanal


‘A Record vai montar uma base de gravações no Pantanal (MS). A base abrigará
cerca de 50 profissionais da emissora, entre atores e técnicos, durante todo o
mês de abril, para gravações da novela ‘Bicho do Mato’, que em julho sucederá a
‘Prova de Amor’.


‘Bicho do Mato’ terá um núcleo no Pantanal e outro no Rio de Janeiro. Nesta
semana, a Record fechará contrato com a fazenda eleita para servir de base. A
emissora irá aproveitar instalações da fazenda, mas construirá pequenos
cenários, como cabanas.


Depois dessa primeira estadia, a Record voltará ao Pantanal mais três vezes,
com equipes menores, para blocos de gravações de até duas semanas de duração.


A trama terá Renata Dominguez como protagonista feminina. Já estão certos os
nomes de Ewerton de Castro e de Regina Dourado. O protagonista masculino será
escolhido em testes.


‘Bicho do Mato’ contará a história de um rapaz criado pelo pai no interior,
no meio de uma comunidade indígena. A idéia do pai é proteger o filho da
violência das grandes cidades.


Mas, quando o moço tem 20 e poucos anos, estoura um conflito entre índios e
posseiros de terra. Alguém interessado na fazenda da família mata o pai do jovem
protagonista. O rapaz então se mudará para o Rio, onde irá procurar os
assassinos do pai e viver o manjado conflito de um caipira na cidade grande.


OUTRO CANAL


Grego O ‘Metrópolis’, revista cultural diária da TV Cultura, completa 18 anos
em 12 de abril, com festa. Mas o programa ganhará um ‘presente’ inusitado. No
final do mês, passa a ser semanal.


Arrogância 1 Dado Dolabella estava confirmado em ‘Cobras e Lagartos’, próxima
novela das sete da Globo. Iria fazer um metrossexual, Tomás. Mas tudo mudou. E
da maneira mais estranha: Dado foi ‘demitido’ da novela pelo autor (João Emanuel
Carneiro) e pelo diretor (Wolf Maia) na frente de todo o elenco.


Arrogância 2 Há duas semanas, em apresentação da trama aos atores, Dado se
levantou quando chamaram Martin, papel de Carmo Della Vecchia. Maia e Carneiro
entenderam que Dado não queria mais ser Tomás, mas Martin. E o dispensaram no
ato.


Corujão 1 Tem gente graúda na Band defendendo que o novo programa de Márcia
Goldschmidt seja exibido nas madrugadas de sábado para domingo. Mas bem tarde
(ou cedo demais), por volta das 4h da manhã. É que a Band não queria dar um
programa para Márcia. A emissora foi forçada a isso, para não ter que pagar uma
multa de R$ 6,8 milhões por rescisão contratual.


Corujão 2 O programa de Márcia Goldschmidt vai sair caro para a Band. Deverá
ser produzido e gravado em Miami (Estados Unidos), para onde a apresentadora
está de mudança ‘definitiva’.’


Bia Abramo


Irritando o espectador


‘‘Irritando Fernanda Young’: o título, em si, provoca uma espécie de vácuo.
Dado o horror da natureza ao vazio, a gente fica se perguntando: como? O quê
mesmo? Por que irritando? Fernanda Young? Quem mesmo? Para quê? Bem, se os
termos, assim, no éter não suscitam nada parecido com curiosidade ou sentido e
nem mesmo trazem elementos suficientes para esboçar uma resposta, vamos ao
programa (estréia hoje, meia-noite, no GNT).


Lá está Fernanda Young, que diz logo de início: ‘Esse programa foi feito para
me irritar’. Ah, bom… Então está explicado. Espera lá, está? Por que é que
alguém iria querer irritar Fernanda Young? Justo ela? Ah, aparentemente é para
ser… engraçado?


Sim, parece ser isso. É um ‘talk show’ (mais um…) em torno do tema
irritação, conduzido pelo ego descomunal de Fernanda Young. Como primeiro
convidado, o ator Luis Fernando Guimarães. Claro, eles se conhecem e são amigos,
da época em que Young escrevia os roteiros para a série ‘Os Normais’ -será que é
por isso que, por diversos momentos, a gente fica torcendo para que Fernanda
Torres, finalmente, apareça?


Por que aquilo que era engraçado com Torres -que é atriz de fato e um talento
para a comédia mais do que provado- é desenxabido com Young -que não é atriz,
apesar de pagar o mico de fazer pequenos esquetes cômicos entremeados à
entrevista. Nesses esquetes, a apresentadora-escritora encena situações
‘irritantes’ do cotidiano. Pretexto para fazer emergir seu enorme (mas
cansativo) talento para muxoxos, gestos impacientes, tiradas sarcásticas e
discursos inflamados.


E volta-se à entrevista, que prossegue, aliás, à deriva. Ela joga a isca:
‘Luis Fernando, o que mais te irrita em mim?’. O ator tenta se esquivar, mas
acaba por satisfazê-la, falando de seu assunto predileto, ela mesma e sua
desfaçatez.


Ele diz de sua prepotência, ela aumenta para megalomania e, no fundo, essas
são palavras muito grandes para descrever uma coisa tão minúscula -e
irrelevante. A irritação de que é capaz -e mais de que se orgulha- Fernanda
Young só se aproximava do humor se amparada pela dramaturgia e pelas
interpretações de ‘Os Normais’. Assim, em estado bruto, nem chega a fazer
sentido.


A tentativa de piada se encerra invadindo francamente a seara do mau gosto.
No final, Young anuncia uma atração musical. Dois pobres coitados, vestidos com
roupas típicas, interpretam uma canção italiana, daquelas consideradas
‘ridículas’, do repertório brega -e que só estão ali para ensejar mais uma
bateria de expressões de enfado e indignação. Das duas, uma. Se é de ‘verdade’,
trata-se de humilhação, bem ao gosto do que a TV faz de pior e nos programas
populares é chamado de baixaria. Se é combinado, de ‘mentirinha’, ela está
chamando o espectador de trouxa. Em qualquer um dos casos, não tem a menor
graça.’


ENTREVISTA / LIMA DUARTE


Inácio Araujo e Laura Mattos


Cansei de novela


‘Lima Duarte, 76 anos de idade, 55 de TV, logo brincou com a assessora da
Globo que chegou para acompanhar a entrevista: ‘Você veio saber o que vou dizer,
né?’.


Pois ele não se intimidou. Falou mal da emissora, do merchandising que faz em
‘Belíssima’, do sotaque grego de Tony Ramos, de Fernanda Lima. Disse que o
‘Fantástico’ transforma tudo em ‘merda’ e que há 40 anos se faz a mesma novela.
Sobrou para Lula, ‘imbecil, idiota’, e para a neta Paloma Duarte, por ter ido à
TV rebater o ‘medo’ que Regina Duarte disse ter da vitória do PT.


Lima confessou estar cansado da TV e espera que Murat, que interpreta na
novela das oito, seja o último personagem televisivo. Em cartaz no cinema com
‘Depois Daquele Baile’ e na expectativa da estréia de ‘Boleiros 2’, em 7 de
abril, no qual volta ao papel do técnico, ele só quer saber de filmes.
Especialmente após ter sido dirigido pelo consagrado cineasta português Manoel
de Oliveira, 97.


Na entrevista a seguir, o ator relembra o convite para ser candidato à
vice-presidência na chapa de Mario Covas em 1989, conta ter ‘sublimado’ o sexo e
muito mais.


‘FANTÁSTICO’


Desculpem falar muito, mas depois vocês editam. Não como o ‘Fantástico’,
hein! Dou entrevista a eles, e nos tornam imbecis. É como Silvio Santos, o
grande químico do Brasil: transformava o domingo em merda. O ‘Fantástico’
transforma qualquer opinião em merda, a edição é calamitosa. A da Globo de modo
geral.


COVAS E SASSÁ


Não me arrependo [de ter recusado convite para ser candidato a
vice-presidente na chapa de Mario Covas, em 1989]. Na ocasião, Sassá Mutema [‘O
Salvador da Pátria’] era um grande personagem, um homem que ia do nada ao
entendimento. Ele não sabia nada e aprendia a ler, a escrever, a amar, a se
entender, aprendia mais e mais até ficar um imbecil. A Globo achou que era o
Lula. Sassá era muito maior que o Lula. O PSDB me convidou a uma reunião com
José Serra, José Richa, Fernando Henrique e Covas. Nunca havia me passado isso
pela cabeça, estava envolvido com a Maitê [Proença, que fazia a professora por
quem Sassá se apaixonava]. O plano era contratar a Maitê, Chitãozinho e Xororó
para comícios e lançar a candidatura no ‘Fantástico’. Acho que ganharíamos. Fui
consultar minha filha, que disse: ‘Sai dessa. Vão te destruir’.


ÓDIO A LULA


Odeio Lula porque faz uma glamourização da ignorância, contra o que tenho
lutado a vida toda. Também sou ‘analfa’, fui criado como ele na roça, mas, puxa
vida, descobri o encanto por trás da palavra escrita, a magia. Num país carente
de conhecimento, ele não pode ter esse procedimento. É um imbecil, um idiota, um
ignorante. Quando ia ao cinema, ia com o cachorrinho no colo. Para quê?


PALOMA DUARTE


Sabe-se agora que quem tinha razão era a Regina Duarte [quando foi à TV em
2002 dizer que tinha ‘medo’ de Lula]. A Paloma falou besteira, né? [Paloma
Duarte, neta de Lima, criticou na TV o ‘medo’ da colega] Discordei dela por
brigar com a colega por causa desses merdas aí. Falei: ‘O que é isso, Paloma?
Pára com isso. Como é que você vai à TV falar da outra? Eles vão ganhar, vão ser
isso e aquilo, e você vai ficar mal com ela, que é atriz como você’. Paloma é
boa atriz, mas é muito arrebatada. Coitada, ela acreditava mesmo.’


***


Ator critica merchandising de ‘Belíssima’


‘Leia abaixo a continuação da entrevista de Lima Duarte.


ÚLTIMA NOVELA


Não quero mais fazer novela. Pretendia que ‘Belíssima’ fosse a última. Mas já
queria que a anterior fosse a última, e vieram com artilharia pesada, Irene
Ravache, Fernanda Montenegro. Mas é duro fazer novela. Está cada vez mais
cansativo. Estão escrevendo a mesma história há 40 anos. Faço o mesmo
personagem, e o público chora a mesma lágrima, no mesmo horário. Mas o povo não
deixa mudar. O povo não aceitou ‘Bang Bang’. Colocaram a moça [Fernanda Lima],
disseram que era bonita. Mas a vestiram demais. Aí teve de ser atriz e ficou
ruim para ela. Se a novela vai mal, a primeira coisa é tirar a roupa da mocinha.
A segunda é ‘Quem matou?’.


MERCHANDISING


Faço esse do Whiskas [ração para gato]. Mas pagam muito mal ao ator, é
mixaria. Faço um também com a Irene Ravache, aquele de pele. Ah é, Natura. É uma
porcaria proporcionalmente ao que ganho. Não gosto, é meio aviltante, não?
Contraria seu personagem, tem de pegar direito, virar o rótulo para a câmera. E
fica lá a garota do merchandising dizendo como fazer a cena. Pergunto: ‘Não é o
diretor que manda?’. E os diretores ficam quietos. O merchandising manda. Ouvi
dizer que um só dá para pagar quase o meu salário na novela inteira. Puxa vida,
será?


‘CIDADÃO BRASILEIRO’


Não vi a estréia, mas gostaria de ter visto. Tomara que a audiência caia. Ah,
essa igreja, essa turma. Mas vamos só falar mal da Globo, vai. É como disse o
Bertrand Russel, quando lhe perguntaram ‘que tal fazer 90 anos’. ‘Diante da
opção…’ Tal é a Globo. Diante da opção, meu amigo, ainda ficamos com a Globo,
né? Mas, imitar droga, pô [sobre a estratégia da Record de ‘clonar’ a Globo]!
Com esse tipo de edição, tudo vira clipe, tudo se repete, são os mesmos
assuntos. A vida fica uma chatice.


SOTAQUE TURCO


Sabia que há só 20 turcos no Brasil? É o meu problema em ‘Belíssima’, ninguém
me ensina a falar. Procurei usar dramaticamente o sotaque. Há horas em que não
dá para brincar com sotaque, como nas cenas com a Bia [Fernanda Montenegro].
Procuro ficar denso para não cair no que, na minha opinião, caiu o Tony Ramos.
Fica aquele sotaque entre o personagem e o público enchendo o saco, e o ator não
atenta ao drama, que é o que interessa. Acho muito chato [o Tony dizer Zúlia no
lugar de Júlia]. Adoro o Tony, mas procurei não cair nisso. Uso conforme a
situação porque é um penduricalho. Antes de mais nada, construo psicologicamente
o personagem. Por isso todos são Sassá Mutema, porque todos são da serra da
Canastra [onde Lima nasceu].


GLOBO X RECORD


Trabalho há 35 anos na Globo. Fui convidado a ir para a Record, olha que
importante sou. Fui convidado a ir para a Igreja Universal. Logo no começo da
conversa, falaram: ‘Dinheiro não é problema’. E respondi: ‘Para mim também não’.
Ganho muito bem, tenho contrato longo, acho que até o fim da minha vida, mais
cinco anos.


PODER DO PAI


Sou de Desemboque, Minas. Meu pai teve o primeiro aparelho de rádio da minha
terra. Sabia de algo que Silvio Santos, esse da Igreja Universal e Roberto
Marinho descobririam depois: quem detém a informação detém o poder. Botava o
rádio baixinho, não deixava ninguém ouvir. O povo ficava na janela assistindo ao
meu pai ouvir rádio. Ele lavava as mãos para ligar o rádio e punha o paletó. Ele
me ensinou a ser respeitoso com essa coisa da informação.


MANGA E ZONA


Cheguei a SP num caminhão de manga. Tinha 15 anos, meu pai disse: ‘Atimbora’,
como Guimarães Rosa. Percebeu que eu estava pronto. Nas primeiras noites, dormi
embaixo do caminhão. Até que um amigo me convidou para ir à zona. Eu: ‘Mulher, a
coisa propriamente dita?!’. Era acostumado com bananeira, bezerro, esses
negócios da roça. Fiquei morando com madame Paulete. Ela tinha 40. Devo ter sido
uma maravilha na vida dela, não? Ela me levou à rádio Tupi. Tinha um amigo
locutor, que me arranjou um teste. O sujeito falou: ‘De onde é que sai a sua
voz? Do sovaco?’. Mas o operador ficou com dó e me chamou a trabalhar com
ele.


VÍTIMA DA CRÍTICA


O único que estava na inauguração da TV e continua no ar sou eu. A Hebe teria
de ir, mas preferiu sair com o namorado. Ia cantar o hino, que é lindo, do
Guilherme de Almeida: ‘Vingou como tudo vinga, no teu chão de Piratininga’. Ele
fez a primeira crítica de TV, e fui vítima. Foi o primeiro Shakespeare da TV. Eu
era o Hamlet. Ele escreveu: ‘O Hamlet até que tem o ‘physique du rôle’. Quanto
ao espetáculo esteve patético, mas não esteve ridículo’. É o que tentamos ser a
vida inteira na TV: patéticos, mas não ridículos.


COMUNISMO


Tínhamos uma célula importante antes de 64. Fui prestar depoimento, o Fleury
me interrogou e o Tuma estava ao lado. Meu nome havia sido encontrado numa
agenda do Prestes, com contribuições ao partido. Mas recebi uma mensagem
avisando que deveria dizer ‘vendedor de livros’. O escrivão perguntou se conheci
Prestes. Respondi: ‘O vendedor de livros?’. Ele: ‘Ah, como são ingênuos. Ele se
passa por vendedor de livros para pegar dinheiro!’.


CHATÔ


Com o Chateaubriand, mais que trabalhei, falava por ele. Ele teve um AVC
[acidente vascular cerebral], ficou com limitações terríveis. Um dia, me chamou
para ler um discurso dele. Ficou nervoso porque eu não compreendia, até que
conseguimos nos entender, e passei a traduzir para as pessoas o que ele queria
dizer.


ROBERTO MARINHO


Do doutor Roberto, eu era amigo. Na reinauguração do Cristo Redentor, fui
apresentar a cerimônia. Com uns 90 anos, o doutor Roberto tinha quebrado a
perna. A Globo armou uma liteira com quatro negros para carregá-lo. Ele disse
que não ia subir naquilo e pediu para pegar no meu braço. Quando subimos os 200
degraus, falei: ‘Puxa, o senhor está melhor do que eu’. Ele: ‘Era capaz de jurar
que ia me dizer isso. Melhor coisa nenhuma’. Já foi me chamando de puxa-saco.
Era muito esperto! Os filhos eu não conheço. Não sei o que é a Globo atualmente.
Hoje lá tudo é dirigido a partir do comércio. Toda novela tem como prioridade a
produção: ‘O seu cabelo não está funcionando. Você gosta dele, mas é uma
porcaria, o povo não gosta’. Nunca é a partir da criação. Mas acho que isso é um
problema de todos, não é?


37 FILMES


Fiz cinema também, 37 filmes hein? Tenho cinco para entrar, e ninguém fala, é
uma tortura. É só Sassá Mutema. Não que me sinta injustiçado, não é o termo. Mas
há uma falta de cuidado em analisar a minha obra, sempre em nome de uma piada.
Além de ‘Depois Daquele Baile’ e ‘Boleiros 2’, vou estrear um do Manoel de
Oliveira.


MANOEL DE OLIVEIRA


É um querido amigo, nem penso nele como cinema. Penso como é legal, gostamos
de comer e beber vinho. Sabe que ele vai fazer uma continuação da ‘Belle de
Jour’ [A Bela da Tarde]? Com a Catherine Deneuve. Vai se chamar ‘Encore Plus
Belle’ [Ainda mais Bela]. ‘Plus belle et plus putaine’ [mais bela e mais puta].
Ele é muito jovem, 97 anos. Numa entrevista, uma moça lhe perguntou: ‘E o
futuro?’. Ele: ‘Futuro? O futuro para mim é o paraíso ou o inferno. É o paraíso
pelo clima ou o inferno pelas companhias’.


SEXO SUBLIMADO


Não tenho paciência [para conquistar uma mulher. Para valer a pena,] hoje que
estou com 76 anos, teria de ter outros encantos que não os da Maitê. Talvez a
Fernanda [Montenegro], que é brilhante, ou o Manoel de Oliveira [risos].
Sublimei o sexo.


GUIMARÃES E BRUNA LOMBARDI


Sou leitor compulsivo de ‘O Grande Sertão: Veredas’. Aquela adaptação da
Globo [86] não podia dar certo. Pôr a Bruna Lombardi para fazer jagunço! O que é
isso!? Uai, com aqueles olhos? Quis fazer a adaptação há muito tempo, com a
Regina Casé. Ela é interessante como mulher e muito feia como
homem.’


FALCÃO, O DOCUMENTÁRIO
Alba Zaluar


Ensaio Sobre A Cegueira


‘Falcão é a ave que enxerga longe e mata sem hesitar qualquer ser que ameace
o seu ninho. No imaginário dos apelidos, revela uma ruptura com os apelidos
afetivos, em diminutivo, que tanto inspiraram Sérgio Buarque de Holanda a
refletir sobre a cordialidade brasileira. Estará o Brasil desmantelando-se
enquanto cultura e personalidade nacional?


Essa talvez seja a menor das reações ao impacto que o documentário ‘Falcão’
[exibido pelo ‘Fantástico’, da TV Globo, no domingo passado], do rapper MV Bill
e do empresário Celso Athayde, provocou nos que o assistiram. Fica provado mais
uma vez o poder de comunicação que o veículo televisão tem sobre os demais, não
só pela sua capacidade de penetrar em tantos lares mas pela força das imagens,
associadas à voz e à letra do que é dito.


Textos, especialmente se acadêmicos, não poderão jamais competir com tanta
veracidade contida na imagem e na voz nem com a velocidade da comunicação
televisiva.


De fato, o documentário não traz nenhuma novidade do ponto de vista da
pesquisa. O que está dito pelos meninos entrevistados já fazia parte do acervo
colecionado pelos pesquisadores que se embrenharam nas favelas do Rio de
Janeiro, Recife, São Paulo e Porto Alegre, principalmente na primeira cidade, já
na década de 80. Eu estava ouvindo mais uma vez as entrevistas que fiz
inicialmente só e, depois, com estudantes universitários que moravam na Cidade
de Deus, com os mais importantes personagens dessa tragédia urbana
brasileira.


Qual a contribuição do documentário ‘Falcão’? Sem nenhuma orientação
acadêmica, mas provavelmente usufruindo um roteiro já traçado pelos
pesquisadores há anos, o rapper e seu empresário se embrenharam por locais pouco
ou nunca visitados nas cidades brasileiras, ouvindo os meninos e suas mães,
reconhecidos apenas pelo sotaque, colocando-os lado a lado em um painel de
sofrimento, tragédia e desalento.


O desalento é evidente: no beco sem saída, na lucidez dolorosa da vida
desperdiçada, marcada para morrer, que os meninos e suas mães repetem sem que
vejam nenhuma possibilidade de saída. Os falcões e suas mães já têm seu destino
traçado numa tragédia que parece não deixar lugar para o sujeito da ação.


Imaginário em contraste


Depois desse documentário, dificilmente vai se manter uma outra marca
oscilante do imaginário nacional: a maravilhosa cidade do Rio de Janeiro ou a
cidade fonte dos horrores do Brasil. Uma gangorra difícil de entender. Síndrome
metropolitana dos perigos e dos horrores, o Rio de Janeiro continua a ser
apontado como a cidade mais violenta do Brasil, o centro do tráfico de
drogas.


Os sotaques nordestinos, gaúchos, paulistas e as imagens de Brasília
desmentem isso e comprovam o que pesquisadores têm apontado: a questão é
nacional, que exige o cumprimento de um plano nacional de segurança pública.


Vai além: produz no espectador simpatia pelos meninos do tráfico. Não é pouca
coisa. Com sensibilidade e ternura, aberto a ouvir o outro, o documentário rompe
com uma das características da violência: a impossibilidade de pensar e sentir
desde a perspectiva do outro.


Mesmo aqueles meninos que produzem tanto medo quando se os encontram nas ruas
em situações de roubo, são humanos e, além do mais, sofrem, sentem falta de
amor, acima de tudo respeitam suas mães, têm medo e sabem que vão morrer.


Agora vai ficar difícil construir um inimigo desvalorizado, desumanizado,
estratégia comum para justificar a crueldade com que se os enfrenta na guerra,
na medida em que os meninos são apresentados, eles também, como vítimas de algo
que lhes escapa.


Mas aqui mesmo começam nossas divergências. Para sair do vitimismo, só os
considerando na sua capacidade de agir, para além dos constrangimentos que a
estrutura social lhes impõe. Nem todos os meninos de tráfico saíram de famílias
chefiadas por mulheres, nem todas essas famílias são produtoras de meninos
destinados a se tornarem traficantes. Só muito recentemente ouvi falar de
crianças brincando de ‘boquinha’, o que ainda aumenta mais a impressão de que
não há mais saída.


Mesmo na Cidade de Deus, no auge da guerra entre Batata e Zé Pequeno, na
praça onde morou e morreu Manoel Galinha, vi crianças jogando bola, capoeira,
aprendendo a bater nos instrumentos de percussão e tudo isso que pode ser
encontrado em qualquer favela do Rio de Janeiro, mesmo as mais abandonadas pelo
poder público. A favela é muito, muito mais que o tráfico.


O que importa é saber que muitas dessas crianças, cerca de 80% delas, não são
atingidas pela cultura que se desenvolve nas ruas, que as prepara para a
crueldade e as anestesia para o sofrimento alheio, para a vida, para a morte.
Não fora o trabalho constante e dedicado de muitos voluntários de vários tipos
de organização, certamente o exército dos traficantes, matadores e
exterminadores seria muito maior.


Unilateral


Nesse sentido, não teria sido mais frutífero fazer com que também os meninos
que desejam agora matar e roubar -e se acostumam com a violência no uso das
armas da morte, dos pneus do sadismo- desenvolvam a capacidade de olhar o
próximo sem ódio e sem visões persecutórias que só podem acabar com a destruição
completa do outro?


O documentário é unilateral. Poderia ter sido mais se pusesse vítimas dos
assaltos, muitas delas tão destituídas quanto os meninos assaltantes e
assassinos, a falar do que sofrem quando perdem seus bens e entes queridos.


Por que não ouvir também os policiais que, apesar da função guerreira que
lhes é destinada na estratégia policial de hoje, se negam a assumir as mesmas
posturas sádicas e cruéis de outros colegas que perderam o controle sobre a sua
capacidade de serem violentos, exatamente como os meninos? Serão todos,
policiais e meninos do tráfico, meros fantoches da banalidade do mal que os faz
tão obedientes às ordens superiores?


Estudos recentes dizem que não. Até mesmo na Alemanha nazista havia os que se
recusavam a cumprir ordens, que adoeciam, que fugiam. O documentário de João
Moreira Salles sobre a guerra particular entre policiais e bandidos na favela
Santa Marta [‘Notícias de uma Guerra Particular’] é, nesse sentido, mais
completo. São muitas as vozes, muitos os atores do drama.


Trata-se, então, de dissolver um círculo vicioso que atrela os medos e ódios
em cadeias de vingança e desconfiança sem fim. Para isso, é preciso tirar as
vendas que cegam sobre tudo o que se passa fora do território mais próximo, das
identificações mais restritas. O veículo para isso é a transposição para outros
mundos, a abertura para quem, de fora, fala daquele e de outros mundos, seja
pelo texto, seja pela imagem.


Tanto no documentário quanto nas falas antes e depois da apresentação, seus
diretores constroem o lugar da autenticidade única que só os que vivem nas
favelas podem ter para falar do lugar. Nem cineastas nem antropólogos ou
sociólogos teriam a legitimidade para pensar e falar sobre esses locais, também
considerados territórios fechados, exclusivos de seus moradores, os únicos que
poderiam escrever a sua própria história. Uma das armadilhas da pesquisa
etnográfica parece ter sido abraçada como missão pelos dois diretores: afundar
no próprio universo, com o risco de manter a cegueira.


No fundo, uma continuidade com o movimento que também é próprio das
organizações juvenis baseadas no território. No fundo, a cultura do gueto, que
também aprisiona pelo lado de dentro, fechando as pontes, os laços, os contatos
com o mundo de fora. É justamente isso o que mais alimenta a violência.


E faltou também esse personagem principal da tragédia dos meninos: os
traficantes, os chefes de quem são fiéis seguidores. Os meninos ganham pouco,
são carentes, têm medo, sofrem. E os traficantes que, com uma lógica
instrumental, apenas os usam para acumular lucros extraordinários? Qual a dúvida
que têm sobre o seu papel aliciador de menores? Qual a justificativa que
oferecem para o seu negócio que destrói mentes, corações e vidas?


Nas entrevistas que fiz, sujeitos com fraturas expostas que sujeitam meninos,
conhecidos pelos trabalhadores como teleguiados, não conseguem esconder suas
dúvidas e contradições.


Não há razão para crer que nenhum desses personagens está sem saída, que seu
destino foi marcado inexoravelmente pela miséria de suas famílias, pela ausência
dos pais, pelo desamparo de demais protetores, pelo fracasso dos serviços
públicos. Mas não resta a menor dúvida de que é preciso fazer muito mais para
ajudar os que ficaram presos nas malhas do crime e da violência pela
violência.


Alba Zaluar é antropóloga e coordenadora do Núcleo de Pesquisa das
Violências, ligado ao Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. É autora de ‘Integração Perversa – Pobreza e Tráfico de Drogas’
(FGV).’


Denis Lerrer Rosenfield


Falcões ou pombos-correio?


‘Há o grau zero de apresentação da realidade? Seria possível dizer que uma
realidade pode ser considerada, em si, como nua e crua, como se uma sucessão de
imagens pudesse esgotar algo que consideramos, definitivamente, como verdadeiro?
Tal é, no entanto, a pretensão do filme ‘Falcão’, feito por MV Bill e Celso
Athayde. Os comentários e as reações posteriores tenderiam a confirmar essa
aparente intenção.


Evidentemente, as imagens são impactantes e comoventes, e a tragédia daqueles
meninos banidos de uma sociedade civilizada clama por uma solução. Não se pode,
contudo, desconhecer outros autores ausentes nem cair na hipocrisia.


O próprio ministro da Justiça se declarou impactado com o que tinha visto;
será que ele desconhecia essa realidade?


A câmera, ao selecionar imagens, ao recortar a realidade sob um determinado
prisma, não deixa de julgar em sua pretensão mesma de apresentar aquele caso
como sendo exemplar e neutro. Em um primeiro momento, podemos ter a sensação de
que aquilo que é apresentado consiste numa mera descrição, à maneira de um
botânico fazendo a descrição de uma planta.


No caso de uma câmera apresentando um grau extremo de miséria humana, sob uma
ótica, digamos, naturalista, o impacto da cena -o seu mexer com nossas emoções,
o seu despertar mais fortemente valores morais- vela, por assim dizer, o ângulo
de recorte da realidade.


Ora, esse ângulo é valorativo ao escolher um enfoque, ao querer dizer que
essa é a verdadeira realidade, ao colocar aqueles meninos como presas do
destino. O presente esconde o ausente. Bandidos se tornam ‘bandidos sociais’ no
interior de uma engrenagem apresentada como se fosse inexorável.


Os ‘falcões’ são, na verdade, pobres pombinhos, vítimas de uma realidade que
os ultrapassa. A posse de armas e o portar fuzis e pistolas produz um forte
sentimento de auto-estima, que é reconhecido, inclusive, pelas meninas que
gostam de meninos assim ‘armados’. Eles são, porém, meros ‘operários’, ‘abelhas’
de uma fábrica que os emprega, pagando-lhes salários maiores que os que teriam
num emprego da sociedade normal, a que se situa fora das favelas.


Essa ‘normalidade’, eles chegam mesmo a ironizar pelos pequenos valores pagos
e pelo seu descuido para com eles, enquanto a ‘firma’ lhes dá sustento e
reconhecimento, mesmo que por um curto período de vida. As imagens daquela
‘firma’, funcionando no corte da maconha, no seu esfarelamento e no seu
empacotamento, mostram uma divisão do trabalho em estado embrionário, mas
altamente produtivo, dado o retorno que os ‘investidores’ têm.


Outro lado


Mas aí surgem perguntas. Onde estão os ‘investidores’? Onde estão os ‘donos
da firma’? Onde estão os grandes beneficiários desse negócio? A câmera não os
encontrou? A câmera não os selecionou? Não têm eles responsabilidade naquilo que
é apresentado como um destino desses meninos, como se não tivessem outra
alternativa na vida?


Drogas são vendidas e consumidas. A ‘firma’ produz para um mercado, que deve
ser altamente lucrativo, considerando a expansão de sua produção e a
sofisticação de sua rede de distribuição, o seu ‘comércio’ propriamente
dito.


O narcotráfico só tem crescido, o que mostra a pujança de sua atividade e a
ampliação do seu mercado consumidor. Apresentar a realidade como se o ‘crack’ e
a ‘maconha’ fossem principalmente consumidos pelos ‘falcões’ é uma evidente
falsificação da realidade, pois os verdadeiros consumidores são constituídos por
pessoas abastadas, que podem pagar o alto preço da cocaína e de outras
drogas.


Ou seja, o mercado consumidor é formado por uma alta classe média que não
‘aparece’ naquelas dramáticas cenas. Onde estava a câmera naqueles instantes?
Não haveria nada aqui a ser visto ou ao menos descrito por meio de palavras se a
câmera não os pôde alcançar?


O Estado aparece sob a forma de policiais corruptos, cuja única preocupação
seria uma espécie de luta de vida e de morte com aqueles ‘meninos’. Trata-se de
um combate entre o animal e a sua presa, em que os papéis freqüentemente se
invertem nos lutos que levam ao cemitério.


Grassa a impunidade, embora os meninos sejam ‘punidos’ por essa realidade,
porque raramente atingem aquilo que consideramos a vida adulta propriamente
dita, pois antes disso são mortos. Eles são ‘punidos’, sem que haja
estabelecimento de culpa, instrução de processo ou julgamento.


Num certo sentido, não haveria impunidade, pois eles seriam, de qualquer
maneira, ‘criminosos’.


No entanto uma punição sem Estado é nada mais do que a vigência de um estado
de natureza em que tudo vale: a generalização da violência. Há, porém, um outro
tipo de impunidade que tampouco aparece no filme, a impunidade dos responsáveis
do narcotráfico e dos que compactuam ou colaboram com essa situação. E dessa
impunidade, o Estado é profundamente responsável, e essa não se faz com medidas
sociais, mas propriamente institucionais, isto é, jurídicas e policiais.


Menos hipocrisia


Antes do filme de MV Bill e Celso Athayde, um outro filme, igualmente forte,
‘Notícias de uma Guerra Particular’, de João Moreira Salles e Kátia Lund,
mostrou a mesma realidade sob uma outra ótica, dando a voz a outros atores, como
os policiais envolvidos na repressão desses agentes e olheiros do narcotráfico
ou referindo-se aos consumidores.


Naquele, então, as reações foram igualmente vigorosas, com autoridades
lamentando uma tal situação e a sociedade exigindo soluções. Nada, entretanto,
verdadeiramente mudou. Passado o impacto, tudo voltou a ser como antes, talvez
no aguardo de um outro filme que despertasse transitoriamente as mesmas
emoções.


O próprio ministro da Justiça [Márcio Thomaz Bastos] chegou a se declarar
impactado com o que tinha visto. Será, porém, que o ministro e as outras
autoridades desconheciam essa realidade? Não a conheciam de suas próprias fontes
policiais? Não tinham visto o filme anterior de Moreira Salles, os clipes do
próprio MV Bill ou não tinham, ainda, escutado as suas músicas? E os comentários
televisivos de pessoas chocadas que também compactuam com o silêncio
reinante?


Contornos de compaixão não são necessariamente morais. Talvez um pouco menos
de hipocrisia faça bem à sociedade brasileira.


Denis Lerrer Rosenfield é doutor pela Universidade de Paris 1 e professor
titular de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É autor de
‘Política e Liberdade em Hegel’ (Ática), entre outros.’


Maria Rita Kehl


As Asas Quebradas


‘Falcão – Meninos do Tráfico’ mostrou a milhões de telespectadores da TV
Globo, no domingo passado, a vida de algumas crianças incapazes de alçar vôo;
aos três anos, a força arrasadora do real já lhes cortou as asas da imaginação.
Aos seis, brincam de vender maconha e cocaína, de torturar e executar os
alcagüetes queimados dentro de um pneu ou executados a bala na sarjeta. De
mentirinha? Brincam para tentar exorcizar o medo: treino de sobrevivência na
barbárie. O que você quer ser quando crescer? ‘Bandido.’


O que lhes sobra para fantasiar se a onipotência, motor da fantasia infantil,
se realiza todos os dias na forma da tirania praticada por seus irmãos mais
velhos, por tios e pais adolescentes destinados a morrer antes dos 20 anos? Do
ponto de vista da constituição psíquica, a fantasia é o suporte do desejo.
Fundamenta a experiência da interioridade, de um ‘si mesmo’ que mede sua
diferença em relação ao mundo real. Uma subjetividade sem fantasia é uma terra
devastada, sujeita a servir ao gozo do outro.


Assim, de pequenino, se torce o pepino. O discurso único do tráfico se
instala, totalitário, impedindo a imaginação das crianças das favelas cariocas.
Na falta de espaço para outras fantasias, não há um ponto de fuga onde ancorar
outro desejo senão o desejo de morte projetado na droga, na licença para matar,
no poder irresistível do terror sem lei. Um tal desejo está fadado a se
realizar, sem demora.


Desde os primeiros minutos do documentário, esse terror produziu seus efeitos
sobre mim. Flagrei-me acalentando idéias de extermínio. Quantos espectadores do
‘Fantástico’ não terão se envergonhado ao pensar que a morte desses garotos até
que poderia ser bem-vinda?


Depois, compreendi que estava contaminada pela única fantasia (ou profecia?)
deles. Destes que se pensam sem futuro e se engajam no tráfico por um salário
mínimo (!) e dois ou três anos de ‘fama’ antes da morte certa.


Na voz chapada do menino de dez anos, o jargão da crítica social se
transforma em ideologia conformista: ‘Faço isto porque ninguém me deu nada’.


No lugar desse nada, a droga instala um vazio mais suportável: ‘Não fico
triste, tô sempre se drogando’, diz a criança que já sabe que sua existência não
conta: ‘Se eu morrer, vem outro como eu’. Mas não deixa de lamentar sua
desesperança: ‘É muito esculacho nessa vida…’.


Selvageria de mercado


O tráfico de drogas não é antagônico às economias de mercado: é sua extensão
selvagem. As sociedades ditas liberais convivem com ele por uma afinidade
lógica: os lucros astronômicos formados com base em trabalho escravo
(voluntário) falam a mesma língua de outras formas de acumulação acelerada de
capital.


O capital financeiro, por exemplo, cuja lógica dispensa a negociação
política, também nos esteriliza para sonhar com um mundo mais justo.


O tráfico, como o capitalismo, produz os sujeitos dos quais se alimenta. De
um lado, no asfalto, estão os consumidores do único meio de gozo tão potente que
dispensa a publicidade. Do outro lado, da linha de montagem e da distribuição,
está um exército de servidores voluntários. São escravos: quem entrou, só sai
morto. As crianças sabem disso, mas entram. Não há poder mais eficiente do que
aquele que se sustenta sobre o desejo dos dominados.


Entre os consumidores que vivem no asfalto, há quem se sirva da droga para
sonhar. Mas na ponta de cá, quem se droga não sonha. A droga é a hiper-realidade
cotidiana, aliada ao medo e ao poder dos fuzis: quem vacilar sabe que vai
morrer. O que equivale a uma condenação sumária: impossível viver sem, vez ou
outra, vacilar. Por isso, para as crianças aliciadas desde que deixam a barra
das saias das mães, nenhum sonho é possível. Quem sonha, mais cedo ou mais
tarde, vacila. Assim se fecha o circuito do gozo mortífero contra o qual as
crianças são indefesas.


Indefesas porque lhes falta pai, dizem os pequenos entrevistados por MV Bill.
Mas sobretudo lhes falta, na favela excluída do poder público, qualquer outra
referência que sustente a lei simbólica -a que interdita o gozo e possibilita o
investimento das pulsões de vida em objetos possíveis, não absolutos. A lei da
droga é absoluta. Não há nada que interdite o discurso do gozo que gira em torno
dela.


Nada além do desejo quase impotente de algumas jovens mães. Os psicanalistas
costumam desconfiar do poder das mães; é um mal-entendido a respeito da função
paterna. A falta do pai, por morte ou abandono, fere e desampara o filho. Mas,
se a mãe está ‘na lei’, a função paterna opera por meio de seu discurso. Uma
delas, aparentemente muito jovem, diz que seu filho de dois anos ‘sabe tudo’
sobre o tráfico. Mas acrescenta: ‘Eu quero que ele saiba o que não é o tráfico.
Que ele saiba que existem outras coisas no mundo’.


É claro que para isso é preciso que o mundo, o ‘nosso’ mundo, inclua a favela
e introduza, na vida dos candidatos a falcão, outras perspectivas.


Outra mãe conseguiu legar ao filho um fragmento de sonho: prometeu levá-lo ao
circo. Morreu, deixando o menino marcado por um desejo -e uma falta- que a droga
não podia satisfazer. Desejo de infância e de magia, riso, brincadeira.


Levado pela equipe de filmagem ao circo, o jovem operário da indústria da
droga ainda teve tempo de desejar outra vida. Pensou ser palhaço: a face benigna
do ‘nonsense’. Quem sabe, esculachar o esculacho.


Mas não conseguiu deixar o tráfico e morreu (como outros 15 entre os 16
entrevistados) antes de o documentário de seu mano Bill ter ficado pronto.


Nota – Colaborou Maria Marta Assolini.


Maria Rita Kehl é psicanalista, autora de ‘Ressentimento’ (Casa do
Psicólogo).’


Sylvia Colombo


Ladainhas Das Seis Da Tarde


‘Nem ‘zelo missionário’ nem ‘bons sentimentos’. Não é com esse tipo de
arsenal que o cinema pode colaborar na discussão sobre o tráfico de drogas e a
violência nos morros do Rio. Para o cineasta João Moreira Salles, diretor do
documentário ‘Notícias de uma Guerra Particular’ (que está sendo lançado em
DVD), agora é hora de contar histórias diferentes sobre as favelas.


Ele mesmo, entretanto, diz que não quer mais voltar lá (‘o discurso da
violência é de uma monotonia acachapante’) e fala de ‘Falcão’, que faz
‘perguntas duras’, sem fazer ‘qualquer elogio ao bandido social’.


Leia a entrevista que o cineasta concedeu à Folha, por e-mail.


Folha – Na entrevista que está no DVD de ‘Notícias de uma Guerra Particular’
(Videofilmes), você diz que a idéia era fazer um filme sem sociólogo, sem
cientista político. Fernando Meirelles, quando lançou ‘Cidade de Deus’ (2002),
respondeu aos que diziam que o filme não tratava o tema com profundidade que não
queria fazer sociologia, e sim cinema. MV Bill também disse querer que ‘Falcão’
não tivesse esse tipo de explicação. Por que essa idéia, que parece
generalizada, de que uma reflexão acadêmica sobre o tema é um problema?


João Moreira Salles – Não é problema nenhum, pelo menos para mim. Certamente
a melhor reflexão sobre a violência não está sendo feita pelos escritores,
cineastas, dramaturgos ou cantores de hip hop, mas pela academia. Houve um
momento em que os escritores -penso especialmente em Rubem Fonseca- chegaram
antes ao assunto e nos avisaram com anos de antecedência o que iria
acontecer.


Hoje são cientistas sociais como Claudio Beato, Alba Zaluar, Julita
Lemgruber, Luiz Eduardo Soares, Inácio Cano, Michel Missi, entre tantos outros,
que estão na fronteira.


A relutância que você aponta nada tem a ver com a academia. Diz respeito
apenas ao documentário. Insisto em dizer que a única questão relevante para o
documentário é o próprio documentário, é o modo de fazer e de narrar.


Nenhum filme será importante se, antes de tudo, não pensar em si mesmo. A
maldição do documentário é acreditar que ele se esgota no tema. No limite, o
tema é quase irrelevante. Há grandes filmes sobre praticamente nada, e filmes
péssimos sobre grandes temas.


A estrutura clássica, velha de mais de 60 anos, na qual especialistas
sentados em seus gabinetes oferecem opiniões sobre um determinado tema, está
esgotada. É impossível fazer um filme vigoroso empregando essa maneira de
narrar. Evitei os especialistas não por descaso com eles, mas por apego ao
documentário.


É só isso. Não é pouco.


Folha – Como você vê a ação recente do Exército nos morros do Rio? É contra
ou a favor? Por quê?


Moreira Salles – Até onde sei, o Exército não tomou a decisão de se tornar um
aparelho de combate à violência urbana. Por enquanto, o incidente dessas últimas
semanas é apenas isto: um incidente, motivado por orgulho ferido.


Sem dúvida nenhuma, o Exército assumiu um risco quase irresponsável, porque,
se as armas não fossem encontradas, ele estaria desmoralizado. Por isso ele as
encontrou. Como o fez, ninguém sabe direito. Existem várias dúvidas. Talvez
tenha negociado com bandidos, talvez não.


Vê-se desde já que uma ação dessas abre a possibilidade de vasos comunicantes
entre quem reprime e quem é reprimido. Em pouco tempo, o Exército poderia ficar
parecido com a polícia.


O que menos precisamos neste momento é de um Exército infiltrado pelo
narcotráfico. A ação repressora é eminentemente técnica, o Exército não foi
preparado para empreendê-la. A população, que com razão se vê apavorada,
aplaude, sem pensar que, com o tempo, podemos estar corrompendo mais um aparelho
do Estado -e, dessa vez, aquele que mais tem armas.


Folha – Por que ‘Notícias’ não tratou do ‘outro lado do balcão’? Ou seja, por
que não houve uma preocupação de ouvir a classe média, que consome a droga
traficada na favela?


Moreira Salles – Porque meu tema não eram as drogas, era a violência. O
consumidor é importante, mas ele se mantém longe dos tiros e das mortes. Dito
isso, não seria incorreto afirmar que o consumidor é o grande sujeito oculto de
‘Notícias’.


Folha – É possível comparar ‘Notícias’ com filmes como ‘Os Donos da Rua’
(EUA, 1991) e ‘O Ódio’ (França, 1995), no sentido de que reforçam uma demanda do
público, predominantemente de classe média, por temas relativos à bandidagem?
Tem havido mais glamourização do tema?


Moreira Salles – ‘O Ódio’ eu assisti recentemente, mas ‘Os Donos da Rua’ eu
vi há muito tempo e não me lembro dele. Mas entendo a pergunta. Não acho que ela
seja específica. O desvio sempre exerceu fascínio. Dizem que, no ‘Paraíso
Perdido’, de John Milton [1608-1674], o grande personagem é Lúcifer.


É evidente que um filme sobre uma guerra sangrenta de gangues terá sempre
mais apelo comercial do que um documentário sobre carmelitas enclausuradas. Mas
isso não significa que todos os filmes que abordam a violência sejam cínicos.
Alguns são, a maioria dos americanos é; os nossos, nem tanto.


Pegue ‘Falcão’: MV Bill faz perguntas duras, fala em ‘vocês que espalham a
desgraça’, mostra que bandidos executam tanto quanto a polícia. Seria má-fé ver
ali qualquer elogio ao bandido social.


É da tradição do cinema refletir as questões do seu tempo. A violência é uma
destas questões.


Folha – Você disse que ‘Notícias’ é um ‘filme de urgência’. Hoje, quase sete
anos depois, esse ‘estado de urgência’ segue existindo no morro. O quão urgente
é debater um tema que já se tornou de uma urgência crônica?


Moreira Salles – Do ponto de vista do cinema, urgente mesmo é ir à favela -se
houver mesmo essa insistência de voltar à favela- para tratar de qualquer
assunto que não seja o da violência. Por que essa obrigação? Por que imaginar
que lá não existem outras histórias? Por que não contar uma história de amor? É
preciso tomar cuidado com isso.


A tirania do tema único é sobretudo a tirania do personagem sem movimento,
paralisado num enredo único e pobre. Nasce, vive um pouco, mata um pouco, morre.
O mundo fica achando que é só isso.


De um modo geral, nosso cinema deveria olhar menos para baixo e erguer os
olhos, se não para cima, onde estão os poderosos, ao menos para os lados:
cineastas falando do seu mundo.


Do contrário, passaremos a vida repetindo a mesma fórmula de 90% dos filmes
não-ficcionais brasileiros: os que têm, repletos de piedade e de indignação,
filmam os que têm menos ou nada têm. Chega de tanto zelo missionário, de tão
bons sentimentos. Por que não enfrentar o que é realmente difícil? A vida da
gente, os nossos afetos, a nossa eventual mediocridade, a nossa eventual
impotência?


Basta olhar a Argentina e aprender um pouco com eles. A respeito do debate do
tráfico, acho que já estamos fazendo isso há muito tempo. Certamente não é o
cinema que dará uma contribuição importante para a discussão. Não é o nosso
papel. O papel do cinema é refletir sobre si mesmo. É avançar a gramática.


Folha – Se você fosse subir ao morro hoje, que pergunta acrescentaria a seus
entrevistados?


Moreira Salles – Eu não subiria o morro novamente. Uma coisa que aprendi é
que o discurso da violência é de uma monotonia acachapante. Lembra as ladainhas
das seis da tarde. As mesmas palavras, de novo, de novo.’


***


‘A Batalha de Argel’ mudou visão dos oprimidos no cinema


‘Obra capital do cinema político, ‘A Batalha de Argel’ (1965), de Gillo
Pontecorvo, mudou a forma de registrar o olhar do oprimido. A obra retrata com
crueza e brutalidade inéditas a guerra urbana de guerrilha dos argelinos contra
a ocupação francesa. Seu realismo e autenticidade e suas seqüências sobre
tortura, intimidação e perseguição a rebeldes passaram a influenciar o cinema em
vários países. O filme narra em flashback as memórias de um membro da Frente de
Libertação Nacional da Argélia que lutava contra os colonizadores franceses.


À época, Pontecorvo (1919) foi acusado de tomar partido, simplificando temas
sociais e políticos complexos, e o filme foi proibido na França por vários anos.
No Brasil, o longa também foi censurado pelo regime militar. Financiado pelo
governo da Argélia -que conquistou a independência em 1962-, o filme precisou
ser protagonizado por atores locais. Pontecorvo, que aproveitou a tradição do
neo-realismo (fotografia em preto-e-branco, uso de atores não-profissionais
etc.), também foi assistente de Joris Ivens (1898-1988), um dos mais importantes
documentaristas da história do cinema.’


Marcos Strecker


O Cinema De Palavra


‘Encontrar o limite entre ficção e realidade é uma discussão que está na
origem do cinema. De Robert Flaherty a Joris Ivens, passando por movimentos como
o neo-realismo, a ‘nouvelle vague’ e os seus descendentes, o tema da diferença
entre o autêntico e a sua representação -ou melhor, se de fato existe essa
distinção- está mesmo na origem da discussão sobre o documentário como
gênero.


Prefiro tratar de coisas em lugares onde nada acontece


Periferia dos centros produtores e de crítica, o Brasil sofreu com a forte
ideologização que marcou a discussão sobre o cinema documental das décadas de 60
até 80. A política estava na ordem do dia. Mostrar a verdade era mostrar os
‘oprimidos’, numa forma estética que derivou ela mesma para o ideológico e
autoritário. Não é surpresa que tenha sido da ‘periferia’, à margem dessa
discussão, que se firmou no final dos anos 80 o principal documentarista
brasileiro, pai da atual geração.


Bem antes de vários cineastas subirem o morro para registrar a ‘realidade’
das favelas, Eduardo Coutinho já conversava com seus moradores. ‘Santa Marta –
Duas Semanas no Morro’ (1987), ‘Santo Forte’ (1999) e ‘Babilônia 2000’ (2000)
exploram diferentes temas sobre as comunidades. Seu cinema se aproxima dos
pioneiros do documentário, procurando compor um retrato antropológico dos seus
personagens.


Ironicamente, agora que o recrudescimento da violência provocou um excesso de
imagens e a banalização da violência, é o próprio Coutinho que não vê mais razão
em filmar os morros. Foi o que o autor de ‘Edifício Master’ e ‘Cabra Marcado
para Morrer’ disse em entrevista à Folha.


Folha – Como o cinema e a TV representam o morro hoje?


Eduardo Coutinho – Eu não falo de filmes dos outros, que não os meus… Mas
posso dizer o seguinte: o que tem aparecido não é nem a questão do morro, mas do
tráfico. A emergência das drogas e o crime mais (ou menos) organizado. Os filmes
são sobre isso, que é o que está na mídia.


Nos meus filmes -fiz três sobre favelas- simplesmente ignorei a presença do
tráfico. Ou melhor, ele entrou porque acabou entrando na voz dos outros. Mas
nunca foi meu interesse fazer filme sobre o tráfico.


Em ‘Santa Marta’, fiz um filme sobre a violência na favela, a violência
simbólica, a violência inclusive ‘terna’ do morro, entende? E nele apareceu mais
o tema do tráfico. Mas nos outros dois -um sobre religião e ‘Babilônia’- eu não
queria incluir nenhuma questão sobre o tráfico. Agora, apareceu nos depoimentos,
eventualmente. ‘Meu irmão morreu’, por exemplo. Então entra como um elemento
acessório, embora seja essencial para as pessoas.


Folha – Sua forma de filmar quase criou um estilo, um gênero de filme do
morro, um novo realismo. Você acha que criou seguidores?


Coutinho – Na verdade, vários desses filmes [feitos atualmente] são de
observação, não são filmes de entrevista. Eu só posso te responder o seguinte:
eu tento não usar a palavra entrevista nem depoimento. Tento conversar com as
pessoas. Quando realizei ‘Santo Forte’, era um filme que ninguém queria fazer, e
eu fiz. Chamo isso de cinema da palavra.


Folha – Você parece se preocupar muito com a intimidade e a individualidade
dos moradores. Até onde o cineasta pode ou deve mostrar?


Coutinho – Cada filme é um filme. No meu caso, eu não trabalhei com máscara.
Toda referência que houve ao tráfico era o de um tráfico antigo, porque do novo
ninguém vai falar. É evidente que referências [sobre tráfico ou violência]
jamais entrariam na medida em que envolvesse o bem-estar da pessoa e de mim
mesmo. Isso até é um detalhe.


Mais complicado, na verdade, é tratar de coisas pessoais. Nem é uma questão
da favela. Aconteceu quando entrevistei uma garota de programa. Faço questão de
dizer que ela não está falando para mim, mas para a câmera. Cada vez que
entrevisto uma pessoa, me pergunto: por que ela está dizendo isso? No caso da
garota de programa, ela sabia que ia aparecer e não via problema nisso, porque a
família sabia. As questões éticas aparecem caso a caso.


Folha – Você fala da diferença entre o tráfico antigo e o novo…


Coutinho – Nos meus filmes em que aparece o morro, quando aparecia o tráfico,
foi no começo da guerra civil, em 86, 87. Essa guerra civil séria que tem já 20
anos e que vai continuar. Bem, isso aparecia mais. Agora, mesmo sem eu perguntar
sobre isso, algumas pessoas se referiam ao grupo antigo que dominava o morro,
era um grupo considerado odioso por eles. Eu deixei no filme porque era um grupo
que não voltaria mais, é um outro cuidado.


Folha – Seu segredo é filmar sem um objetivo definido, procurando uma
realidade que deve ser apreendida?


Coutinho – Enquanto puder fazer filmes em que não tenha nada a dizer,
continuarei a fazer filmes… Se tiver que fazer algo para denunciar, a guerra
de sei lá o que, a luta de classes, o lixão… Isso não faço. Faço filmes para
saber como vivem as pessoas. No caso, pessoas que vivem em condições que não são
as minhas. O que penso delas é secundário.


Folha – Você acha que seus filmes acabam mostrando uma certa realidade
brasileira, o conflito entre o arcaico e o moderno, por exemplo?


Coutinho – Todos os tipos de conflito aparecem. Eu não filmo o Brasil, filmo
um lugar. Isso em todos os filmes que tenho feito, praticamente. O que não
significa que eu não esteja interessado no geral. No caso de ‘Edifício Master’,
por exemplo, não estou procurando o morador típico, que vai dizer aquilo que
para mim é típico da classe média.


Quando estou falando com uma pessoa da comunidade rural, falo dela. E acho
que dela se alude ao tipo de cultura, de conflitos, de coisas que permeiam o
Brasil, entende? Cabe aos que ouvirem essas pessoas fazerem as leituras mais
diversas.


Folha – Voltando ao caso específico do Rio, com o recrudescimento do
conflito, agora até com o Exército, isso inspiraria você de alguma forma? Se
você fosse filmar hoje o morro, isso te influenciaria como?


Coutinho – Dada essa conjuntura explosiva, que ainda vai durar muito, eu
simplesmente não vou mais filmar os morros. Enquanto tiver essa situação, não me
interessa, entende? Eu não estou interessado em filmar conflitos. A guerra de
Israel com os palestinos não me interessa, por exemplo. Acho que cada vez mais
vai haver filmes e programas de televisão que podem, sem dúvida, ser
necessários. Mas não estou nessa, não. Prefiro tratar de coisas em lugares onde
nada acontece. Onde a única coisa que acontece é o seguinte: você coloca uma
câmera e algo acontece dentro da câmera. Nada aconteceu antes nem
depois.’


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