A leitura disciplinada de jornais pode trazer ensinamentos curiosos que, se não suficientes para compor uma tese sobre comunicação, servem pelo menos como exercício mental.
Leia-se, por exemplo, reportagem do Estado de S. Paulo sobre as perspectivas econômicas da Argentina para este ano. O texto começa assim:
“O ano promete ser complexo para a Argentina, já que em outubro o país passará por decisivas eleições parlamentares, época em que o governo da presidente Cristina Kirchner costuma gastar em programas clientelistas, aumentando a emissão monetária e, com isso, estimulando a escalada da inflação”.
Para início de conversa, observe-se que a palavra “decisivas” é dispensável no contexto da notícia, uma vez que toda eleição parlamentar é importante para qualquer governo, pois pode definir sua base de apoio. Portanto, esse adjetivo só está presente no texto para reforçar o argumento que vem em seguida, ou seja, que a presidente da Argentina vai abusar dos gastos públicos neste ano, para garantir votos a seus candidatos e assegurar sua base parlamentar.
E Cristina Kirchner vai gastar em que, segundo o jornalão paulista? Vai “gastar em programas clientelistas”.
Ideia de fracasso
O que o jornal chama de “programas clientelistas” são projetos sociais de combate à pobreza, que costumam render muita popularidade para governantes e, como acontece no Brasil, produzem a inclusão de novos consumidores no mercado e dão consistência à economia do país.
Acontece que, na imprensa brasileira, a palavra “clientelismo” foi carimbada pelo ex-deputado Ulysses Guimarães, desaparecido em 1992, após um acidente de helicóptero, como uma expressão negativa associada ao uso do poder para fazer ou manter aliados. Trata-se de uma referência à prática de conceder verbas para projetos de interesse deste ou daquele parlamentar, em troca de apoio político na consolidação de alianças. Curiosamente, o clientelismo foi oficializado pelo sistema de emendas regulamentado na Constituinte de 1988, liderada pelo próprio Ulysses Guimarães.
Mas há uma grande distância entre o sentido consagrado pela própria imprensa para essa palavra e as políticas sociais que caracterizam os governos do Brasil e da Argentina. O discurso do Estadão tem claramente a intenção de demonizar as políticas sociais como “programas clientelistas” que estimulam a inflação.
Agora, observemos a manchete da Folha de S. Paulo de quinta-feira (3/1): “Triênio de Dilma deverá ser o pior da América do Sul”.
Deixando em segundo plano a informação principal, de que as projeções para o Brasil são de recuperação, com um crescimento de 3% a 3,5% em 2013, o jornal prefere recuar dois anos, pegar o período de maior impacto da crise internacional sobre a economia nacional e fazer uma espécie de futurologia do passado.
Com isso, personaliza as consequências da crise na figura da atual presidente, isola os elementos negativos num período em que se pode associar a imagem dela à ideia de fracasso e omite as análises positivas feitas pelas mesmas fontes consultadas para a reportagem.
Estatística criativa
A ginástica que faz o jornal para dar alguma consistência à sua versão dos fatos inclui algumas pérolas do discurso impositivo dos editoriais.
Veja-se, por exemplo, as associações que podem ser feitas entre determinadas frases:
1. “O Brasil deverá ser o país com menor crescimento na América do Sul no primeiro triênio da gestão Rousseff.”
2. “Se isso se confirmar, será a primeira vez, desde o governo Collor de Mello (1990-1992) – quando a economia contraiu 1,2% – que o Brasil perderá para todos os vizinhos no primeiro triênio de governo.”
3. “Diferenças entre o tamanho das economias e seu nível de desenvolvimento podem ajudar a explicar taxas distintas de expansão.”
Em seu esforço por demonstrar que estamos à beira do abismo, a Folha inclui ainda comparações com o México e a Hungria, extrapolando a proposta original de contextualizar os fatos no âmbito da América do Sul.
Ora, nenhuma lição de estatística autoriza a definir aleatoriamente determinado período de tempo para a análise de dados, a não ser que se queira manipular os números para demonstrar uma tese preexistente.
Alguns dados extraídos do estudo sobre a América Latina publicado no dia 28 de dezembro pela Economist Business Intelligence, empresa associada à revista britânica The Economist – principal fonte do jornal para a reportagem –, indicam o contrário do que afirma a Folha: que o Brasil vai crescer mais em 2013 e 2014 e que a presidente Dilma Rousseff venceria as eleições de 2014, mesmo diante dos desafios da economia.
Se as taxas de expansão dependem do tamanho da economia de um país e de seu nível de desenvolvimento, que critérios o jornal utiliza para comparar, por exemplo, o Brasil com a Bolívia ou o Chile, que mal cabem na região metropolitana de São Paulo?
E como comparar, por exemplo, o governo Collor, que agonizava no seu terceiro ano, e os três primeiros anos do governo Rousseff?
Uma palavra resume a novela: manipulação.