Há poucas dúvidas de que o jornalismo local é essencial ao desenvolvimento político, social e cultural nas pequenas e médias cidades, mas quando se trata de buscar fórmulas para garantir sua sobrevivência surgem mais divergências do que consensos. O problema é complexo porque a questão financeira está atrelada a fatores sociais, políticos, culturais e jornalísticos.
O professor Robert McChesney e o jornalista John Nichols, ambos norte-americanos, ousaram propor um plano para incentivar o jornalismo local rompendo um impasse que já se arrasta há pelo menos três décadas. O plano, apresentado no dia primeiro de dezembro, prevê financiamento público para projetos jornalísticos comunitários sem fins lucrativos, tudo sob controle dos moradores das cidades contempladas pelo projeto.
Trata-se de uma ousadia porque o futuro da imprensa local desperta de imediato as mais diversas paixões que vão desde o idealismo de jovens em início de carreira, até o maquiavelismo dos gestores municipais na administração de recursos públicos, passando pelo ceticismo de empresários que já abandonaram o negócio da imprensa ou estão em vias de pular fora antes que seja tarde demais. Até agora se gastou muita saliva ou papel no debate sobre o futuro da imprensa local, com raras ideias concretas.
Obviamente a proposta está baseada na realidade norte-americana, mas ela tem todos os elementos para ser adaptada a países como o Brasil, onde o jornalismo local também enfrenta tempos duros e difíceis. A diferença é que nos Estados Unidos, o jornalismo local está agonizante depois de quase 200 anos de relativo progresso, enquanto aqui no Brasil ele nunca conseguiu uma estabilidade mínima, apesar dos muitos esforços.
O jornalismo local é a modalidade noticiosa que mais sofreu com a digitalização da imprensa porque as novas tecnologias de informação e comunicação quebraram o precário equilíbrio entre receitas e despesas na maioria das iniciativas em pequenas, médias e até em grandes cidades. A crise endêmica no jornalismo local deu origem ao que os especialistas batizaram de “desertos noticiosos”, cidades sem nenhum tipo de publicação informativa comunitária.
A orfandade informativa
McChesney e Nichols propõem em seu projeto (*), em síntese, a formação de um fundo público alimentado por verbas governamentais, mas controlado e orientado pelos moradores de cada cidade ou bairro (quando em cidades grandes) beneficiado pelo plano, tendo como preocupação obrigatória a promoção da diversidade e confiabilidade das notícias publicadas.
A sugestão de que o governo deve garantir parte do orçamento de um jornal local imediatamente gerou inúmeras polêmicas e críticas, mas duas delas predominaram: a de que o dinheiro estatal vai influenciar a linha editorial das publicações beneficiadas pelo fundo; e a de que os problemas financeiros dos jornais locais não serão resolvidos sem que mude a relação do jornalismo e da imprensa com os seus respectivos públicos.
O uso do poder econômico pelos governos para manipular o noticiário não é uma novidade, mas a crise no modelo de negócios da imprensa criou uma situação inédita no mundo financeiro tanto das grandes empresas como dos jornalistas autônomos. No passado, a troca de publicidade por audiências garantiu a sobrevivência do modelo, que hoje faliu porque as receitas minguaram e a audiência migrou para a internet. Assim, no curto e médio prazo, não há fórmula financeira que garanta a existência da imprensa e do jornalismo, justo quando a informação passou a ser peça vital na sobrevivência de comunidades e organizações sociais.
Mais do que nunca as pessoas precisam de informações confiáveis como mostra a enorme confusão criada pelas notícias falsas, pelas omissões e pela desinformação no noticiário sobre a pandemia da Covid 19. É claro que em algum momento, num futuro imprevisível, surgirão projetos jornalísticos autofinanciados por comunidades, por meio de assinaturas, doações, permutas e/ou prestação de serviços. Mas até lá como as pessoas tomarão decisões sem informações confiáveis?
Os “abutres” do sucateamento
No momento, só há dois segmentos econômicos com recursos financeiros suficientes para subsidiar o jornalismo até a etapa do autofinanciamento: os governos e o setor financeiro privado. Entre estes dois, o poder público não tem um passado abonador, com raras exceções, no trato com a informação jornalística, mas ainda assim é mais socialmente controlável do que os fundos privados de investimento, que receberam o pouco honroso apelido de “abutres” depois de comprar jornais falidos para transformá-los em sucata ao prostituir a produção jornalística por meio de demissões em massa de repórteres, editores e comentaristas.
A salvação do jornalismo local não pode esperar uma década ou mais, porque a orfandade informativa das pessoas não aguenta todo este tempo. Se o preço da intervenção dos “abutres” é o sucateamento do jornalismo, a opção dos fundos públicos é a escolha menos traumática. Mas ela tem um custo não financeiro muito importante e que exigirá novas atitudes, regras e valores tanto dos profissionais do jornalismo, como das empresas e principalmente do público. Inevitavelmente, um novo jornalismo local terá que ser não lucrativo.
Para receberem a informação que as permitirá saber o que fazer em casos como o da prevenção e cura da Covid, as pessoas terão que abandonar a passividade atual e participar diretamente do controle na fixação dos valores, na distribuição e na gestão do dinheiro público entregue à imprensa e ao jornalismo locais. Omitir-se neste tipo de vigilância, significa cumplicidade com a corrupção e malversação do dinheiro oriundo de impostos pagos por todos nós.
É neste ponto que entra em questão o surgimento de um novo tipo de relacionamento entre o público e o jornalismo na produção e distribuição de notícias. No momento em que as pessoas são forçadas a assumir um papel proativo na função jornalística, elas passam a ter todo direito de fazer cobranças na linha editorial das publicações locais, alterando a relação atual. Até agora as pessoas tinham uma participação periférica na produção jornalística porque a publicidade é que mantinha financeiramente os profissionais e as empresas. Isto alimentou uma conduta passiva e tolerante, só quebrada ocasionalmente em situações específicas, como no caso de eleições, disputa futebolísticas, crimes impactantes ou denúncias de corrupção.
A participação proativa vai cobrar das pessoas uma mínima alfabetização informativa e um aprendizado básico na gestão coletiva dos interesses e necessidades comunitárias. É um desafio e tanto para pessoas comuns que foram relegadas, até agora, à posição de espectadoras no processo informativo comunitário. É um dilema também, e não menos complexo, para os profissionais do jornalismo que deixam de ser os donos da verdade em matéria de informação para se tornarem moderadores na produção de notícias.
(*) Detalhes no texto To Protect and Extend Democracy, Recreate Local News Media (Para Proteger e Ampliar a Democracia, É Preciso Recriar as Mídias Noticiosas Locais) publicado em 1º de Dezembro de 2021.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.