As manchetes de grande imprensa na sexta-feira (3/4) concentraram-se na decisão tomada pelo grupo das 20 maiores economias em controlar os mercados e, sobretudo, os paraísos fiscais em todo o mundo.
O destaque era legítimo, não se tratava de um paliativo, os jornalões acertaram. O controle da especulação desenfreada e, sobretudo, o fim da clandestinidade que cerca as grandes movimentações de capital não acabarão com a recessão e não devolverão os postos de trabalho perdidos nos últimos meses. Mas deverão sanear definitivamente uma rede de vasos comunicantes que alimenta a corrupção, estimula o crime organizado, abastece o terrorismo e sonega preciosos recursos para o desenvolvimento sustentável.
O que chama a atenção, no entanto, é que as redações tiveram três dias para oferecer aos leitores informações complementares e análises. O comunicado do G-20, emitido em Londres na quinta-feira (2/4), exigia nos dias seguintes a produção de argumentos capazes de despertar no leitorado a disposição de enfrentar o capitalismo podre, tóxico, selvagem e seus tremendos efeitos colaterais e morais.
A corrupção que assola o Brasil será naturalmente controlada quando os corruptos e os corsários não contarem mais com esses santuários para esconder o fruto da rapinagem. Nossas redações não compreenderam ou tiveram preguiça para avaliar que os paraísos fiscais representam a desregulação absoluta, a libertinagem financeira. Deixaram o assunto esfriar quando estava mais quente.
Como sempre, o último fim de semana interrompeu abruptamente o salutar desdobramento do noticiário. A crise da mídia contemporânea fica muito mais visível aos sábados e domingos, quando a avalanche de anúncios coincide com uma generalizada vontade de ir para a casa e gozar o descanso.
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Na máquina do tempo
Alberto Dines # reproduzido do Último Segundo, 3/4/2009
Os historiadores estão interessados na Grande História, biógrafos (e também jornalistas) adoram a Pequena História. O encontro do G-20 em Londres foi uma rara confluência da grand histoire com a petite histoire, pororoca do transcendental com o trivial.
O baile de egos na beira do abismo produziu magníficas decisões e intenções, a mais badalada foi a decretação do fim da era do sigilo bancário. Vão acabar os paraísos fiscais. O cidadão honesto nada tem a temer, ao contrário dos corsários – os santuários onde guardavam seus botins estão, aparentemente, com os dias contados.
O anúncio não chega a configurar-se como uma nova ordem econômica mundial, mas sinaliza com clareza para um consenso moral em relação a três pontos: 1) o capitalismo selvagem e suas manipulações clandestinas podem estar chegando ao fim; 2) a indomável corrupção poderá ser drasticamente limitada; e, 3) o crime organizado está prestes a perder a sua ilimitada capacidade de infiltração e capilaridade.
Sentido e direção
Nos paraísos fiscais estão os ninhos onde se incubam os ovos das serpentes que ameaçam o mundo contemporâneo. A designação de ‘paraíso’ é, em si, uma aberração porque confere uma indevida aparência bíblica à fabricação de perversidades e malefícios. Mais apropriado seria denominar estas lavadoras de dinheiro sujo como ‘infernos fiscais’, dada a sua capacidade de corromper os conceitos de erário, democracia, isonomia, regulamentos e obediência cívica.
Outras manifestações logo virão à tona, mas a fala de Barack Obama, ainda que desacompanhada de medidas concretas, deverá produzir alterações psicológicas muito além do grupo dos vinte países mais ricos: o mundo não deve contar exclusivamente com os excessos do consumo do Tio Sam. A febre comprista da sociedade americana convertida em paradigma do comportamento internacional deverá ser redirecionada para a poupança. No lugar do consumo conspícuo, o consumo consciente, a defesa do meio ambiente, o desenvolvimento de novas matrizes energéticas, o bem-estar público. Aos emergentes caberá atender as demandas dos seus próprios mercados, socialmente legítimas.
A reunião londrina do G-20 emitiu uma inconfundível atmosfera de austeridade. Se confirmada e mantida, poderá redirecionar o próprio desenvolvimento econômico mundial e estimular uma reversão cultural cujos efeitos podem ser comparáveis aos do Renascimento. Nas últimas duas décadas, graças aos efeitos perversos das tecnologias, assistimos à degradação dos valores que a humanidade levou séculos para aperfeiçoar e acumular.
Talvez tenha chegado a hora de dar sentido e direção aos avanços que a ciência propiciou. Talvez tenha chegado a hora de pensar no ser humano e desatrelá-lo das exigências que ele próprio criou para distrair-se das suas missões.
Panoramas passados
O G-20 deu um belo empurrão no ego de alguns líderes mundiais. O do presidente Lula foi massageado algumas vezes e, merecidamente. Mas eventos são pontos no espaço-tempo, transições. Deixarão de ser eventuais para se transformarem em algo perdurável quando os líderes assumirem que representam nações inteiras, interesses nacionais conjugados, e não parcelas do todo.
Barack Obama, estrela da festa, não estava ali como o primeiro presidente negro dos EUA, ele era a reedição do sonho americano. Sem pele branca e olhos azuis. Gordon Brown, chefe do governo anfitrião, mais do que a China semi-comunista, encarnou a tradição socialista inglesa que Margaret Tatcher, John Major e depois Tony Blair desfiguraram com tanta determinação.
A reunião do G-20 coincidiu com o 70º aniversário do fim da Guerra Civil na Espanha e a vitória do caudilho fascista Francisco Franco sobre as forças legalistas, republicanas. O encontro londrino foi estritamente econômico, a política não foi convidada, porém ninguém pode nos impedir de entrar na máquina do tempo e lembrar panoramas passados.
Se entre 1936 e 1939 os países democráticos tivessem se reunido para evitar aquele banho de sangue na terra de D. Quixote, a catástrofe da Segunda Guerra Mundial teria sido certamente evitada.